quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

"Don't cook, just eat"

Vidraça de um restaurante na Normanton Road, em Derby
Caminhando pela Normanton Road, uma das mais movimentadas avenidas de Derby (Reino Unido), a convocação se repete uma e outra vez, pintada nas vidraças ou em placas especialmente desenhadas para chamar a atenção de quem passa. Mais do que uma sugestão, o imperativo no anúncio soa mais como uma ordem: “Don’t cook, just eat” ("Não cozinhe, apenas coma"). Pensado para o universo dos conectados – como quase todo negócio surgido nos dias atuais –, parte do slogan já é o próprio endereço do site na internet, bastando acrescentar o “.co.uk” no final.
Ao visitar a página, o clima conspiratório se mantém. A apresentação começa com um “Welcome to the rebellion” ("Bem vindo à rebelião") e segue no tom de protesto social bem humorado: “A tirania de cozinhar em casa tem se mantido por tempo demais”. E vai além: “Cozinhar significa dedos queimados. Cozinhar são receitas complicadas para o que você precisa de PHD em Comidologia Avançada. Cozinhar significa bugigangas recomendadas por chefes-celebridades que você compra e nunca usa. Cozinhar é passar horas na cozinha para terminar com uma gororoba que não se parece em nada com a foto da receita (e provavelmente tem o gosto do papel em que a receita foi impressa)”.
O chefe bigodudo que é um símbolo da rede de takeaways
O discurso da rebelião finalmente chega ao ponto desejado, em letras garrafais. “É tempo de deixar os profissionais fazerem o trabalho, peça um takeaway (que vou traduzir aqui por tele-entrega) e ajude a combater jantares desastrosos, grite de cima do telhado: NÃO COZINHE, APENAS COMA!”. (Veja aqui o texto completo, em inglês: www.just-eat.co.uk/dontcook).
Ao lado do manifesto há um campo para digitar um endereço, ou apenas o CEP. Faço isso e encontro nada menos que 91 restaurantes de 18 categorias culinárias dispostos a despachar um takeaway para a minha casa, entre os quais estabelecimentos de comida jamaicana, indiana, turca, marroquina, de pizza (não pergunte...), o clássico fish & chips (tradicional peixe com batata frita inglês, duro de engolir), nepalesa e até de Bangladesh. Ao clicar em um dos listados, o site informa o tipo de comida, distância para o endereço digitado, horário de funcionamento e o desconto oferecido, além de uma avaliação do negócio pelos usuários, em um sistema de estrelinhas. Ah, se o restaurante estiver fechado no momento da consulta, é possível postar uma pré-ordem, que será executada quando o cozinheiro chegar. (Veja aqui: www.just-eat.co.uk).
O serviço foi criado por cinco dinamarqueses, nos anos 90, mas decolou mesmo a partir da chegada à Inglaterra, em 2006 – não à toa a empresa hoje é baseada em Londres. A estratégia atual foi moldada para surfar em uma tendência massificada na sociedade britânica há décadas, a de pedir comida fora de casa em vez de cozinhar.
Especialidades indianas para tele-entrega
Como já dizia o economista liberal Milton Friedman antes mesmo de eu nascer, “não existe almoço grátis” e o preço a pagar pela comodidade tem sido alto para os britânicos. A Inglaterra tem a segunda maior taxa de obesidade entre os 28 países da União Europeia – de 26%, atrás apenas da Hungria (os dados são de 2012). Ou seja, um inglês em cada quatro é obeso, e o problema vai além, com adicionais 41% dos homens e 33% das mulheres classificados como estando acima do peso. (Para as definições de obesidade e sobrepeso, veja notas no final do post.)
O NHS (National Health Service), sistema único de saúde britânico, inclui o acesso a “comida altamente energética e barata, que é com frequência colocada agressivamente no mercado” entre os três pilares causadores da epidemia de excesso de peso no país. O segundo passa pela mudança de estilo de vida e ocupações profissionais menos ativas nos últimos anos, combinadas a distrações crescentemente sedentárias, como assistir televisão, jogar videogames e navegar na internet. Em terceiro lugar, aparece a tendência atual de caminhar menos, com o uso do automóvel ou transporte público para se deslocar.
Se o quadro é negro nos dias de hoje, o futuro parece ainda pior. O National Obesity Forum, uma associação britânica que estuda a obesidade, veio recentemente a público para fazer um alerta sobre uma previsão feita em 2007. O presidente do grupo, David Haslam, disse à BBC que a estimativa de que metade dos britânicos estaria obesa em 2050 pode ser tímida.
A expectativa anunciada há sete anos é conhecida como o Foresight Report, um relatório elaborado pelo Foresight Programe, um grupo ligado ao Department of Business, Innovation & Skills (o Ministério de Negócios e Inovação) que tem por objetivo aconselhar o governo britânico sobre o futuro, produzindo estudos estratégicos sistematicamente. “Estamos agora sete anos além do relatório”, afirmou Haslam. “Não só a situação da obesidade no Reino Unido não está melhorando, como o cenário apocalíptico determinado naquele estudo pode subestimar a escala do problema”.
O poder da indústria alimentícia é inegável, mas por aqui também há aqueles engajados no outro lado da batalha, alguns bem poderosos. O mais famoso – e talvez ativo – deles é um chefe-celebridade, provavelmente o maior motivo para incluir a categoria entre as definições negativas do que seja cozinhar da rede online de entregas de takeaways. Ele se chama James Trevor Oliver, mais conhecido por Jamie Oliver, um inglês de 38 anos nascido em uma pequena cidade do sudeste do país, na região de Essex.
Kan Zaman, comida libanesa para takeaway
Há dez anos ele começou uma campanha para mudar a forma como é servida a merenda escolar no Reino Unido, na tentativa de substituir alimentos processados (mais baratos e fáceis de preparar, mas carregados de gordura saturada, sal e açúcar) por opções mais saudáveis. A campanha, colocada em prática em uma escola de Greenwich, no sudoeste de Londres, transformou-se em uma série de televisão, que mostra o quanto a cultura britânica de se alimentar com takeaways e comida pronta está enraizada.
Em um dos pontos mais chocantes da série, Jamie leva uma série de vegetais a uma classe de crianças do chamado first grade (6 anos de idade) na Inglaterra, que simplesmente não reconhecem quase nenhum deles. Anos depois, o experimento é repetido nos Estados Unidos. Ele mostra alguns tomates e pergunta se alguém sabe o que são, no que um garotinho responde: “batatas!” Em seguida ele pergunta quem sabe o que é ketchup e quase todos os pequenos levantam a mão. Aí o chefe explica: “Sim, é disso que ele é feito”.
Na sequência, as crianças confundem couve-flor com brócolis, beterraba com aipo e cebola, além de berinjela com pera e até com salada de ovo (há um link para o vídeo no final do post). Para comparar, Jamie repete o teste em uma escola da Itália e os alunos, da mesma idade, mostram-se familiarizados com todos os alimentos mostrados.
O chefe criou uma fundação, a Jamie Oliver Foundation, com filiais nos Estados Unidos e na Austrália, e colocou em prática uma série de ações que ele batizou de Food Revolution (a “Revolução da Comida”). A missão da organização é definida como “compartilhar nosso amor pela comida e manter a habilidade de cozinhar viva”.
Entre as iniciativas, a fundação fornece material para escolas ensinarem às crianças a cozinhar com alimentos frescos. Outra linha, o Fifteen Apprentice Programme, treina jovens desempregados para trabalhar na indústria de restaurantes. Jamie também apresenta um programa na televisão aberta do Reino Unido, o Channel 4, chamado Jamie’s 15-Minute Meals, em que ensina receitas preparadas “from scratch” (algo como “do zero”), a partir de ingredientes básicos, executáveis em 15 minutos.
“Cozinhar é, sem dúvida, uma das habilidades mais importantes que uma pessoa pode aprender. Uma vez que alguém tem esse conhecimento, pronto – isso vale para a vida toda”, diz o chefe.
Jamie Oliver, em anúncio do programa de receitas-relâmpago no Channel 4
Olhando para os números crescentes da obesidade no Reino Unido, a batalha não será fácil – e não se pode dizer que esteja sendo vencida. A fundação de Jamie Oliver ainda não chegou ao Brasil, mas o Don’t cook, just eat já. Entre os 13 países em que o serviço de tele-entrega na internet está presente, incluem-se 78 cidades brasileiras.
A radiografia do excesso de peso do Brasil não é exatamente favorável. A última pesquisa divulgada pelo Ministério da Saúde, no ano passado, mostrou um salto de 54% na taxa de obesidade brasileira em seis anos, entre 2006 e 2012, de 11,6% para 17,1%.
Talvez a máxima valha para qualquer país: em vez de simplesmente comer, pense um pouco antes...

Obesidade: uma pessoa é considerada obesa se tiver um IMC (Índice de Massa Corporal) acima de 30. Para calcular o IMC é preciso dividir o peso do indivíduo por sua altura ao quadrado (peso/altura x altura). 
Sobrepeso: quando o IMC da pessoa é maior que 25.

Veja abaixo vídeo no YouTube do experimento de Jamie Oliver com as crianças nos Estados Unidos, em que elas tentam nomear os vegetais:
http://www.youtube.com/watch?v=bGYs4KS_djg

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Uma crise em pílulas

"Apesar da crise, Cádiz melhora"
Cádiz, sábado de manhã, Mercado Central. Sempre que posso, gosto de visitar o chamado “mercadão” de uma cidade, um dos melhores pontos para observar pessoas, práticas, hábitos e sentir o pulso de um lugar.
Nas dezenas de boxes, os peixes e frutos do mar alcançam tamanhos e cores inacreditáveis – dos camarões carabineros cor de sangue ao choco, uma lula gigante de proporções Julio Vernianas. O que mais impressiona, porém, é a estrutura do mercado em si, organizado, novo e bem iluminado.
Ao sair dali, em uma das praças principais da cidade, me deparo com um cartaz do Ayuntamiento de Cádiz, sobre a recente reforma do mercadão, que diz: “Apesar de la crisis, Cádiz Mejora (Apesar da crise, Cádiz melhora)”. Não há governo nesse planeta que deixe de louvar as próprias obras, mas quando a crise se incorporou até à propaganda do setor público, o primeiro a fazer todo esforço para negar qualquer sinal dela, é porque algo não vai bem...

Sevilha, manhã de domingo, centro. O primeiro encontro foi na saída da Catedral. Meio ofuscado pelo contraste do sol com a semiescuridão do interior da igreja, só noto sua presença quando ela já está bem perto, estendendo um pequeno ramo de alecrim: “Toma, te regalo (Toma, te dou de presente)”.
Pego o galhinho de tempero e faço menção de seguir meu caminho, mas aí já é tarde - pede para ler a minha mão. Compreendo o processo, agradeço e tento devolver o alecrim, mas ela não aceita e começa a pedir dinheiro, caminhando atrás de mim. Consigo finalmente entregar o ramo de volta e continuo em frente.
Cigana em ação, em Sevilha
Logo adiante, mais duas ou três delas estão a postos, as cabeças cobertas por lenços e saias coloridas, o maço de ramos verdes visíveis à distância nas mãos. São ciganas – ou Roma, como esse povo com antiga origem na Índia e hoje sem pátria é conhecido na Europa - e estão presentes em todas as principais atrações turísticas nas grandes cidades da Andaluzia.
Passo a observá-las em ação. A estratégia é sempre a mesma, primeiro a isca do alecrim, em seguida a tentativa de ler a sorte e por último o apelo final por algum dinheiro. Não presenciei nenhuma delas obter sucesso. Os locais já conhecem o procedimento e as ignoram, enquanto os turistas caem só na primeira vez e logo aprendem a se esquivar. A atividade das ciganas parece mais resultado de uma situação desesperada do que qualquer outra coisa. Atravesso a rua.

Granada, terça-feira pela manhã. São pouco mais de 9h e entramos para tomar café da manhã em um bar-restaurante da Gran Via de Colón, uma das principais e mais afluentes avenidas da cidade.
Depois de pedir pão, café e suco para quatro, observo o ambiente. Há umas dez mesas dentro do estabelecimento, metade delas ocupadas, além de umas duas pessoas sentadas na barra, o balcão para nós. No salão, um garçon (aparentemente um dos donos do lugar) se desdobra para anotar os pedidos, tirar os cafés na máquina de expressos, servir as mesas e depois cobrar. Dentro da cozinha, outro homem (provavelmente o outro dono) preparava os pães, sucos e ajudava nas cobranças. Nesse mesmo dia voltei ao bar depois das 21h, e lá estavam os dois, agora servindo bebidas e petiscos...
Bodegas Castañeda, Granada, onde a tradição da tapa grátis ainda vive
O impacto da crise não se faz sentir só no ritmo de trabalho e volume de pessoal na Espanha, uma prática antes tradicional nas bodegas e bares da Andaluzia aos poucos vai rareando. Ao pedir uma bebida – uma taça de vinho ou uma cerveja, por exemplo -, o freguês era presentado com uma tapa, algo de comer selecionado pela casa. A cada novo drink, nova tapa.
Fui brindado com algumas tapas acompanhando copas em Granada, mas em Sevilha, Puerto de Santa Maria, Cádiz e Málaga não vi a tradição se materializar.

Granada, começo da noite. Entro em uma loja de vinhos, em busca de alguma barganha para levar comigo de volta à Inglaterra, e me deparo com a garrafa. No rótulo bege-avermelhado, o desenho de um porco alado, graciosamente flutuando no espaço, destaca-se sobre o nome do vinho: “Gran Cerdo (Grande Porco)”.
Ao lado do desenho, em vez das batidas frases sobre aromas de framboesa ou baunilha no palato, há três definições para a palavra cerdo, que traduzo do espanhol:
O porco que voa, apesar da crise
1. Mamífero doméstico de corpo largo, patas curtas, cabeça grande, orelhas caídas, focinho chato e quase cilíndrico e cauda em forma de hélice, que se cria para aproveitar sua carne.
2. Aplica-se à pessoa que não cuida do próprio asseio pessoal ou que gera asco por sua falta de limpeza: é um porco, sempre arrota às refeições.
3. Aplica-se à pessoa que mostra ter pouca educação ou poucos princípios morais: o porco só queria se aproveitar da minha má situação.
Abaixo das definições de Cerdo, aparece a breve apresentação do vinho, um tinto, que também traduzo: “Gran Cerdo é um grande vinho dedicado aos diretores de bancos que nos negaram empréstimos, alegando que o vinho não era um bem embargável. Personagens corpulentos, sudorosos e metidos em ternos, algum dia descobrirão que as coisas importantes da vida não se podem embargar. Obrigado aos amigos, pois com sua ajuda conseguimos por fim completar o engarrafamento. Agora que podes disfrutar de nossa criação mais ácida, prove-a com massa ou jamón (presunto espanhol), de porco.”
Compro o vinho, que custou 5 euros.

Por definição, crise é uma mudança brusca em uma situação. No caso europeu – e mais ainda no espanhol -, parece que essa mudança se incorporou de tal forma à rotina que já faz parte definitiva do dia a dia das pessoas.
"O ano dos que veem o copo meio cheio"
No final de 2013, os espanhóis tiveram uma pálida boa notícia, com uma leve queda na taxa de desemprego do pais - para assustadores 25,9%. É o segundo pior indicador entre os países da União Europeia, melhor só do que o índice da Grécia (27,8% em outubro do ano passado).
O ano que passou foi o primeiro nos últimos oito (desde 2006) em que o número de desocupados não cresceu. Em dezembro, havia 4,7 milhões de desempregados na Espanha. Se o número já parece chocante para o país, a situação da Andaluzia é ainda mais grave, onde a porcentagem da população sem trabalho supera os 35%. Ou seja, se na Espanha uma em cada quatro pessoas não tem emprego, nessa região do sul da Península Ibérica uma a cada três está sem ocupação.
A dificuldade de encontrar emprego e a preocupação com a crise não se infiltraram só na propaganda oficial. Em uma das principais praças de Granada, até o anúncio do McDonald’s remete à crise, oferecendo bebidas (inclusive cerveja) a 1 euro, sugerindo um otimismo com 2014: “El año de los que ven el vaso medio lleno (O ano dos que veem o copo meio cheio)”.
E se a própria União Europeia pena para não se desintegrar em meio à crise, a Espanha também redobra os esforços para não perder territórios. Às históricas demandas separatistas dos bascos e catalães, juntam-se os andaluzes. Nas ruas de Granada, Cádiz e Málaga, não são poucas as pichações hostis a Madri, que faz de tudo para mostrar um copo meio cheio, nem que seja de espuma...