terça-feira, 3 de maio de 2016

Para Leicester, com amor

Dois amigos Sikhs conversam no Leicester Market
Imagino que enquanto escrevo alguns milhares de moradores de Leicester devem estar tentando curar uma terrível ressaca, depois da comemoração pelo título inglês conquistado ontem. Há quase três anos eu estive por lá, uma típica cidade de patamar médio no Reino Unido, encravada nas East Midlands, bem no meio da maior ilha britânica. Nesse caso, talvez o que Leicester tenha de interessante seja justamente isso - não tem nada demais -, o que torna ainda mais inacreditável o acontecimento que a BBC qualificou como “fairytale football” (futebol de conto de fadas).
Preciso confessar que a minha ida a Leicester teve uma motivação bastante prosaica. Logo que cheguei à Inglaterra fui atrás de um novo telefone celular. Depois de alguma pesquisa, descobri que para funcionar no Brasil, no meu retorno, o smartphone da marca escolhida teria que ser “desbloqueado”, o que só podia ser comprado nos estabelecimentos próprios da fabricante. Derby, a cidade em que eu fiquei durante um ano, não tinha nenhuma dessas lojas. Uma rápida consulta à internet mostrou que a mais próxima ficava em Leicester, 40 quilômetros distante dali.
Depois de pouco mais de uma hora de ônibus, encontrei em Leicester a mesma miscelânea entre culturas imigrantes da África, Ásia e do Leste Europeu de Derby, britanicamente amalgamadas pelos pubs e casas de apostas, tão comuns por todo o Reino Unido. Falando nisso, a conquista do Leicester era tão improvável no início do campeonato que os bookers pagavam 5.000 libras para cada pound apostado no time. Como por lá é possível arriscar dinheiro em qualquer coisa mesmo, essa é a mesma taxa de retorno para quem apostar na descoberta do monstro do Lago Ness ou no reaparecimento de Elvis Presley – vivo, é claro.
O prejuízo causado às casas de jogo pela vitória do Leicester na Premier League foi calculado em cerca de 20 milhões de libras, cerca de R$ 103 milhões. Para tentar amenizar as perdas, algumas delas começaram a procurar os apostadores, oferecendo recomprar o possível tíquete premiado antes do fim do torneio. A Ladbrookes, uma das maiores redes, anunciou ter pago 72 mil libras (R$ 374 mil) a um desses malucos, que tinha casado 25 libras (R$ 130) na vitória do time - caso o absurdo fato se confirmasse, ele teria direito a embolsar 225 mil libras (R$ 1,2 milhão). Certamente ele deve estar arrependido...
Interior da Leicester Cathedral, que hoje abriga os ossos de Richard III
Leicester foi castigada para valer pelos bombardeios alemães durante a Segunda Guerra Mundial e a reconstrução não foi exatamente bem planejada – ao andar pela cidade você vê alguns viadutos horripilantes, construídos para acomodar o trânsito dos automóveis. Na região central, porém, tanto o Guildhall (um edifício do século XIV que abrigava a prefeitura medieval) quanto a catedral estão bem preservados, um do lado do outro, no calçadão reservado só para pedestres.
Hoje a catedral abriga os restos mortais de Richard III, morto em 1485 logo ali nas cercanias da cidade, na Batalha de Bosworth, o combate decisivo da Guerra das Rosas, que marca o fim da Idade Média na Inglaterra. Os ossos dele permaneceram desaparecidos por séculos, até que em 2012 uma escavação em um estacionamento de Leicester encontrou o esqueleto do último monarca plantageneta, a quem Shakespeare dedicou uma peça inteira.
Quando eu estive por lá os ossos do rei ainda eram motivo de uma disputada judicial entre a cidade de Leicester e seus descendentes distantes, que queriam levar o que restava dele para York, a sede da sua casa real no século XV. Em 2014, porém, a Justiça deu vitória a Leicester, que via nos restos mortais da sua figura mais conhecida uma boa chance de atrair mais visitantes. É claro que isso foi antes do surgimento de personagens tão atraentes como o atacante Jamie Vardy, um ex-operário de Sheffield que se tornou jogador de futebol. Aos 28 anos, nessa temporada ele marcou gols em cada uma das 11 primeiras partidas disputadas pelo Leicester na liga, quebrando o recorde do holandês Ruud van Nistelrooy – e de quebra alcançando a Seleção Inglesa.
Guildhal, de onde a cidade era comandada no período medieval
Só a partir dos anos 60 é que Leicester começou a receber o volume maciço de imigrantes que deu à cidade o aspecto atual, em especial trabalhadores da Índia e do Paquistão, em busca de trabalho nas indústrias têxteis da região. A marca deles está bem viva na cidade, em especial na chamada Golden Mile, nome pelo qual é conhecida a Belgrave Road, uma rua que fica cerca de um quilômetro e meio ao norte do centro, onde restaurantes de culinária do subcontinente indiano alinham-se quase um ao lado do outro.
Fui até lá e almocei em um deles, o Bobby’s, onde me serviram uma condimentada sequência de iguarias indianas, todas vegetarianas, acompanhada do tradicional pão sem fermento. A história do local resume a combinação de sofrimento e esperança que impulsiona qualquer imigrante. Expulsa de Uganda pela terrível ditadura de Idi Amin em 1972, a família Lakhani buscou refúgio em Leicester. Deparando-se com a crescente colônia de asiáticos vindos do leste da África e conhecedor das habilidades culinárias da esposa, Manglaben, o senhor Bhagwanjibhai decidiu abrir um restaurante.
Comida indiana de primeira no Bobby's
Para dar nome ao local, ele escolheu o título do seu filme favorito de Bollywood (Bobby), que conta a ancestral estória de amor entre um garoto rico e uma moça pobre, estrelado por Rishi Kapoor e Dimple Kapadia. Quando estive lá o restaurante já tinha sido assumido por uma filha do casal, que me contou parte dessa estória.
Na minha visita, em 2013, o Leicester disputava a segunda divisão inglesa, de onde subiria com méritos naquela mesma temporada, conquistando o título da chamada Championship com algumas rodadas de antecipação. Quem em sã consciência poderia sonhar, ainda mais naquela época, que dentro de três anos o time levantaria o troféu da Premier League, sob o comando de um treinador italiano considerado o grande azarado da Europa? Mal comparando, é como se no o Avaí ganhasse o Brasileirão, treinado pelo Jair Picerni...
Pensando bem, talvez seja justamente essa a razão da simpatia que o Leicester desperta em tanta gente - ver um sonho improvável transformado em realidade renova as esperanças de qualquer mortal. Afinal, se um imigrante indiano escapou de um ditador e conseguiu se estabelecer na Inglaterra como dono de restaurante, um apostador ficou milionário em troca de um punhado de moedas entregues ao booker e até os ossos de um personagem sheakespereano foram descobertos enterrados em um estacionamento, o que pode me aguardar atrás da próxima esquina?

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