Dois amigos Sikhs conversam no Leicester Market |
Preciso confessar que a minha ida a Leicester teve uma motivação bastante prosaica. Logo que cheguei à Inglaterra fui atrás de um novo telefone celular. Depois de alguma pesquisa, descobri que para funcionar no Brasil, no meu retorno, o smartphone da marca escolhida teria que ser “desbloqueado”, o que só podia ser comprado nos estabelecimentos próprios da fabricante. Derby, a cidade em que eu fiquei durante um ano, não tinha nenhuma dessas lojas. Uma rápida consulta à internet mostrou que a mais próxima ficava em Leicester, 40 quilômetros distante dali.
Depois de pouco mais de uma hora de ônibus, encontrei em Leicester a mesma miscelânea entre culturas imigrantes da África, Ásia e do Leste Europeu de Derby, britanicamente amalgamadas pelos pubs e casas de apostas, tão comuns por todo o Reino Unido. Falando nisso, a conquista do Leicester era tão improvável no início do campeonato que os bookers pagavam 5.000 libras para cada pound apostado no time. Como por lá é possível arriscar dinheiro em qualquer coisa mesmo, essa é a mesma taxa de retorno para quem apostar na descoberta do monstro do Lago Ness ou no reaparecimento de Elvis Presley – vivo, é claro.
O prejuízo causado às casas de jogo pela vitória do Leicester na Premier League foi calculado em cerca de 20 milhões de libras, cerca de R$ 103 milhões. Para tentar amenizar as perdas, algumas delas começaram a procurar os apostadores, oferecendo recomprar o possível tíquete premiado antes do fim do torneio. A Ladbrookes, uma das maiores redes, anunciou ter pago 72 mil libras (R$ 374 mil) a um desses malucos, que tinha casado 25 libras (R$ 130) na vitória do time - caso o absurdo fato se confirmasse, ele teria direito a embolsar 225 mil libras (R$ 1,2 milhão). Certamente ele deve estar arrependido...
Interior da Leicester Cathedral, que hoje abriga os ossos de Richard III |
Hoje a catedral abriga os restos mortais de Richard III, morto em 1485 logo ali nas cercanias da cidade, na Batalha de Bosworth, o combate decisivo da Guerra das Rosas, que marca o fim da Idade Média na Inglaterra. Os ossos dele permaneceram desaparecidos por séculos, até que em 2012 uma escavação em um estacionamento de Leicester encontrou o esqueleto do último monarca plantageneta, a quem Shakespeare dedicou uma peça inteira.
Quando eu estive por lá os ossos do rei ainda eram motivo de uma disputada judicial entre a cidade de Leicester e seus descendentes distantes, que queriam levar o que restava dele para York, a sede da sua casa real no século XV. Em 2014, porém, a Justiça deu vitória a Leicester, que via nos restos mortais da sua figura mais conhecida uma boa chance de atrair mais visitantes. É claro que isso foi antes do surgimento de personagens tão atraentes como o atacante Jamie Vardy, um ex-operário de Sheffield que se tornou jogador de futebol. Aos 28 anos, nessa temporada ele marcou gols em cada uma das 11 primeiras partidas disputadas pelo Leicester na liga, quebrando o recorde do holandês Ruud van Nistelrooy – e de quebra alcançando a Seleção Inglesa.
Guildhal, de onde a cidade era comandada no período medieval |
Fui até lá e almocei em um deles, o Bobby’s, onde me serviram uma condimentada sequência de iguarias indianas, todas vegetarianas, acompanhada do tradicional pão sem fermento. A história do local resume a combinação de sofrimento e esperança que impulsiona qualquer imigrante. Expulsa de Uganda pela terrível ditadura de Idi Amin em 1972, a família Lakhani buscou refúgio em Leicester. Deparando-se com a crescente colônia de asiáticos vindos do leste da África e conhecedor das habilidades culinárias da esposa, Manglaben, o senhor Bhagwanjibhai decidiu abrir um restaurante.
Comida indiana de primeira no Bobby's |
Na minha visita, em 2013, o Leicester disputava a segunda divisão inglesa, de onde subiria com méritos naquela mesma temporada, conquistando o título da chamada Championship com algumas rodadas de antecipação. Quem em sã consciência poderia sonhar, ainda mais naquela época, que dentro de três anos o time levantaria o troféu da Premier League, sob o comando de um treinador italiano considerado o grande azarado da Europa? Mal comparando, é como se no o Avaí ganhasse o Brasileirão, treinado pelo Jair Picerni...
Pensando bem, talvez seja justamente essa a razão da simpatia que o Leicester desperta em tanta gente - ver um sonho improvável transformado em realidade renova as esperanças de qualquer mortal. Afinal, se um imigrante indiano escapou de um ditador e conseguiu se estabelecer na Inglaterra como dono de restaurante, um apostador ficou milionário em troca de um punhado de moedas entregues ao booker e até os ossos de um personagem sheakespereano foram descobertos enterrados em um estacionamento, o que pode me aguardar atrás da próxima esquina?
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