sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

NHS, como funciona o SUS britânico

Camas de hospital no Estádio Olímpico de Londres, em 2012
Julho de 2012, zona leste de Londres. Chega o grande dia da abertura das Olimpíadas, em uma cerimônia coreografada minuto a minuto, com o objetivo de celebrar o esporte, historia e cultura britânicos. Em dado momento, dezenas de camas de hospital adentram o gramado do Estádio Olímpico, cada uma com uma criança deitada, empurradas por enfermeiras vestidas de azul. Logo em seguida, no clima de musical, médicos trajados de branco dançam em volta dos leitos, em um ato que tomou quase quatro minutos de toda a cerimônia. No centro disso tudo, uma sequência de luzes gradualmente começa a se acender, formando uma gigantesca sigla bem no meio do campo: NHS (National Health Service).
Os britânicos têm um imenso orgulho do seu serviço universal de saúde, que presta atendimento gratuito e universal a todos os cidadãos, custeado exclusivamente pelos impostos. Criado em 1948, durante a estruturação do Welfare State (o Estado do Bem-estar Social), o sistema é centralizado e administrado integralmente pelo governo, deixando pouco espaço aos serviços privados nas terras da rainha. Se fosse pensado algo parecido para a cerimônia de abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro de 2016, com a glorificação do SUS (Sistema Único de Saúde), qual seria a reação da plateia? A resposta dá a medida da diferença entre os dois modelos de saúde pública.
O NHS impressiona só pelos números. O serviço é o quinto maior empregador do planeta, com 1,7 milhão de funcionários – atrás do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, do Exército chinês, da rede varejista Walmart e da cadeia de lanchonetes McDonald’s. São 146 mil médicos e 275 mil profissionais de enfermagem. Só para lembrar, o Reino Unido tem uma população de 63 milhões de pessoas, enquanto o Brasil já vai pelos 200 milhões...
Um sistema desse porte não pode funcionar sem investimento – e pesado. O governo britânico gasta em torno de 100 bilhões de pounds (R$ 380 bilhões) por ano com o NHS, o equivalente a 6,25% do PIB (Produto Interno Bruto) do país em 2012. Enquanto isso, no Brasil, o SUS recebe 3,8% do PIB nacional. A questão central no funcionamento do serviço por aqui, porém, não está apenas no dinheiro.
A homenagem ao NHS na abertura da Olimpíada
Uma organização, para dizer o mínimo, diferente da nossa, está no centro do funcionamento do NHS – é um sistema que tenho dúvidas se agradaria aos médicos brasileiros. Para começar, o National Health Service (e em última instância, o Estado) é o principal empregador dos profissionais de saúde na Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte. Médicos e enfermeiras podem ter um segundo emprego e prestar serviços particulares, mas poucos conseguem viver só disso.
Outra característica única do NHS é a forma como o acesso aos serviços médicos é administrado. Se você precisa de algum atendimento, tudo começa com uma visita a um GP (General Practitioner), o chamado clínico geral no Brasil. Esse profissional vai examiná-lo e, se julgar necessário, encaminhar o caso a um especialista. Mesmo que você tenha um plano de saúde privado (sim, existem aqui também), não é permitido a um especialista agendar uma consulta solicitada diretamente pelo paciente – é preciso antes passar pelo GP.
Os GPs funcionam como os moderadores do sistema, filtrando e direcionando os atendimentos. Essa centralização é a chave para o serviço funcionar, mantendo os custos sob controle – pelo menos até aqui.
Como qualquer serviço de saúde no mundo, o NHS também está sob uma pressão crescente. O envelhecimento da população e o avanço da tecnologia médica vêm aumentando a demanda e ampliando os custos – e em um período em que há menos recursos disponíveis, dada a crise econômica que se abate sobre a Europa desde 2008.
Parece um shopping center, mas é um hospital público, o Royal Derby
A estimativa no Reino Unido é de que dois terços dos leitos hospitalares são ocupados por pessoas com mais de 65 anos. Hoje mais pessoas conseguem sobreviver a quadros de câncer, derrames e ataques cardíacos, por exemplo, mas muitos desses ficam com sequelas que requerem tratamentos caros e cuidados intensivos.
E há ainda os chamados “males do estilo de vida”: um em cada quatro britânicos é obeso, número que dobrou nos últimos 40 anos e alimenta os casos de diabetes, câncer e doenças coronárias – o que acarreta ao NHS um gasto estimado de 4 bilhões de pounds (R$ 15,2 bilhões) anuais. Ao lado da obesidade, complicações de saúde derivadas do tabagismo e do abuso do álcool abocanham outros 3 bilhões de pounds (R$ 11,4 bilhões) cada por ano.
Todos esses fatores se juntam para formar a “tempestade perfeita” no inverno, quando o volume de atendimentos nos hospitais aumenta consideravelmente em decorrência de doenças relacionadas ao frio, o que já levanta previsões de que o próximo, que começa no sábado, pode ser o pior de todos os tempos. No inverno passado o NHS simplesmente não conseguiu cumprir as metas mínimas do tempo em que um paciente deve receber atendimento entre janeiro e março.
O governo já colocou em prática um processo de reforma do NHS, com medidas que vão do fechamento de hospitais menores a cortes de pessoal – a meta é que o sistema economize 20 bilhões de pounds (R$ 76 bilhões) até 2015. Mas há outras medidas, que aos olhos dos médicos brasileiros podem parecer vindas diretamente de Caracas...
O governo quer o NHS funcionando de segunda a domingo, e já planeja obrigar os médicos a trabalhar durante os finais de semana, dando consultas e realizando exames, não só em regime de plantão. Atualmente há uma cláusula contratual trabalhista que proíbe o expediente, mas isso não vem sendo considerado um problema. “Há uma cláusula que diz que as organizações não podem forçar um médico a trabalhar no fim de semana – eu acho que podemos ter essa cláusula removida”, afirmou à BBC o diretor médico do NHS, Bruce Keogh.
Considerando que o serviço público é o principal pagador e empregador dos médicos no Reino Unido, não dá nem para mudar de emprego – pelo menos não sem mudar de país... A iniciativa não é puro ato de sadismo, o governo tem em mãos uma pesquisa mostrando que 4.400 pessoas morrem por ano como resultado de uma cobertura inadequada dos quadros profissionais hospitalares durante os finais de semana.
Royal Derby Hospital por dentro
Um levantamento publicado pelo jornal The Guardian nesta semana oferece outra medida de comparação entre as classes médicas do Reino Unido e do Brasil. Uma pesquisa mostrou que médico foi a quinta profissão mais bem paga por aqui (excluídas as categorias de atletas profissionais e o showbiz) neste ano.
A média salarial de um médico britânico foi de 63,7 mil pounds (R$ 242 mil) por ano em 2013, o equivalente a 5,3 mil pounds (R$ 20,2 mil) mensais. A título de referência, o salário mínimo na Inglaterra gira em torno de 12 mil pounds (R$ 45,6 mil) anuais, ou seja, 1 mil pounds (R$ 3,8 mil) por mês.
No polêmico programa Mais Médicos do governo petista, a bolsa para os médicos necessários no interior do país é de R$ 10 mil por mês, além de auxílios moradia, transporte e alimentação, custeados pelo município onde vão atuar. Esses valores não se mostraram muito atrativos aos profissionais brasileiros, o que abriu a portas aos estrangeiros.
Dizem que perguntar não ofende. Será que há muitos médicos no Brasil dispostos a se mudar para a Inglaterra, para ganhar R$ 20 mil mensais, trabalhar aos finais de semana e ter o governo como único empregador? Ah, esse salário é bruto, antes do imposto de renda, do qual aqui é difícil escapar...

Veja abaixo o trecho da cerimônia de abertura da Olimpíada de Londres 2012 com a homenagem ao NHS: 
http://vimeo.com/47528368

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Façam suas apostas

Betfred, na nobre esquina da rua da catedral, em Derby
O assunto não é exatamente uma novidade, mas pegou fogo na semana passada aqui na Inglaterra, com a prisão de seis pessoas no último domingo, acusadas de envolvimento na combinação de resultados em partidas de futebol para beneficiar apostadores. Entre eles há até um jogador profissional, DJ Campbell, atualmente no Blackburn, que disputa a Championship (a Segunda Divisão inglesa), mas com passagens por três clubes da Primeira Divisão (a Premier League), Birmingham, Blackpool e Queens Park Rangers.
Apostar em jogos é mais do que uma simples brincadeira de fim de semana no Reino Unido, é um hábito fortemente arraigado na cultura e que movimenta bilhões de pounds anualmente. Uma estimativa da Sportradar, uma agência de monitoramento de apostas, aponta que o segmento gira entre US$ 700 bilhões e US$ 1 trilhão por ano (algo entre R$ 1,6 trilhão e R$ 2,3 trilhões) no mundo todo.
Atualmente a indústria de apostas é um gigante nas terras da rainha e o futebol tomou a dianteira como esporte favorito, à frente até das tradicionais corridas de cavalos – 70% do volume de apostas é destinado a ele. A profunda crise econômica na qual o país se arrasta desde 2008 deu fôlego extra ao negócio do jogo por aqui. Não só há mais gente vulnerável à tentação de ganhar dinheiro fácil nas apostas, mas os agentes, transformados em grandes corporações, passaram a ocupar os melhores pontos comerciais nas cidades, galgando ao que os ingleses chamam de High Street. Em Derby, por exemplo, na principal rua da região central, a área mais nobre (e cara) para o comércio, em um trajeto de pouco mais de duzentos metros contei cinco casas de apostas.
Do outro lado da rua, em frente à Betfred, uma loja da Ladbrokes
A impressão ao entrar em uma delas é a de estar em uma “lotérica tecnológica”, com telões para acompanhar os eventos e máquinas de autoatendimento para cada modalidade. Há uma só para o futebol, claro, e não é preciso nem falar inglês para jogar. De olho no polpudo mercado dos imigrantes, todas as informações estão disponíveis nas línguas clássicas (francês, espanhol e alemão), mas também em chinês, russo, turco, polonês, checo, romeno e até lituano.
O grande impulso à atividade foi dado mesmo pela tecnologia. Com computadores e algoritmos cada vez mais sofisticados, hoje é possível calcular os chamados odds (a probabilidade de um evento ocorrer e a taxa que a casa de apostas paga em caso de acerto) para qualquer situação – e quase instantaneamente. Além disso, os grandes no negócio do jogo enxergaram de imediato os benefícios da mobilidade digital. Com a popularização dos smartphones, eles passaram a disponibilizar plataformas online que permitem ao apostador jogar de onde estiver, ao mesmo tempo ampliando exponencialmente o alcance do próprio negócio e tornando a atividade potencialmente muito mais viciante.
Ah, e existe uma terceira vertente não menos importante do avanço tecnológico a mover a roda da indústria: hoje é possível acompanhar praticamente qualquer evento esportivo no planeta, não só porque há muito mais partidas sendo transmitidas, mas porque elas estão acessíveis pela internet, via streaming, seja nos canais oficiais dos proprietários dos direitos esportivos ou nos sites “piratas”. Juntando tudo, o resumo da equação é simples: há mais partidas para se apostar, está mais fácil e rápido para a indústria do jogo estabelecer taxas de apostas para esses jogos e toda a informação está globalmente disponível aos apostadores.
Interior de uma unidade da Ladbrokes, a "loteria tecnológica"
Essa combinação tem mais um efeito colateral. Hoje não se aposta apenas em resultados, em quem vai ganhar, de quanto ou em um empate. Pode-se jogar em fatos bem mais triviais, como quem vai ser o primeiro jogador ou o último a marcar um gol na partida, quantos gols terá o jogo, o placar no intervalo, se vai haver um pênalti, quantos escanteios ou até o número de cartões amarelos e vermelhos distribuídos pelo árbitro... Com isso, um mundo de oportunidades se descortina aos apostadores, e uma luz – ou um holofote – se acendeu para o mundo do crime.
Um exemplo de como funciona. Na terça-feira passada eu assistia a Manchester United x Shaktar Donetsk, pela Champions League, uma das raras oportunidades de futebol transmitido em um canal aberto de televisão por aqui. No intervalo do jogo, quando o placar ainda estava zero a zero, fui surpreendido por um anúncio criativo de uma das gigantes do jogo por aqui, a Ladbrokes. Na propaganda, dois caras comuns são levados à presença do Oddsfather (uma brincadeira com o Godfather, como o Poderoso Chefão, clássico personagem mafioso de Marlon Brando no cinema, é conhecido aqui). Eles beijam o anel do “padrinho” e perguntam: “O que você pode fazer por nós?”. O Oddsfather levanta uma placa em que está escrito: “Robey next to score, 7 to 1” (ou seja, o holandês Robie Van Persie, que estava no banco, ser o próximo a marcar no jogo, pagava 7 pounds para cada um apostado). Embaixo da placa, um letreiro anuncia: “Before, 5 to 1” (Antes, 5 para 1).
Resumindo, no intervalo do jogo a casa de apostas lança uma “promoção” – com 45 minutos a jogar, aumenta o valor pago em caso de o artilheiro do Manchester United marcar um gol. Mas ele ainda não tinha nem entrado em campo, e poderia nem entrar... Quem caiu no canto da sereia se deu mal. Van Persie entrou, o Manchester United venceu por 1 a 0, mas o gol foi do meio-campista Jones.
Ligas para apostar: Bulgária, Bahrein, Jordânia ou Omã? 
Como tem o componente cultural, o hábito de apostar não envolve só o cidadão comum, afeta também aqueles diretamente ligados ao esporte: os jogadores. Em uma entrevista à revista FourFourTwo, na edição de novembro, um ex-futebolista falou sobre o assunto. O irlandês Keith Gillespie, com passagens por Manchester United e Newcastle nos anos 90, disse ter perdido 7 milhões de pounds (hoje R$ 26,6 milhões) no jogo. Nas palavras dele: “Futbolistas ainda apostam. Eles gostam da sensação de ganhar, tem tempo e dinheiro”, afirma. “Eu diria que dois a três jogadores por time da Premier League (Primeira Divisão inglesa) apostam excessivamente”.
As prisões desta semana no Reino Unido foram a consequência de duas investigações sem relação entre si, por dois jornais britânicos. A primeira, do Sun on Sunday, ouviu de um ex-jogador profissional com passagens por Reading e Portsmouth, Sam Sodje, que ele recebeu 70 mil pounds (R$ 266 mil) para “cavar” um cartão vermelho, em uma partida do Portsmouth contra o Oldham, válida pela League One (a Terceira Divisão inglesa).
Isso não foi há anos, mas em fevereiro. O vídeo do lance é surreal, mostra Sodje golpeando Lee Barnard, digamos, abaixo da linha de cintura, em uma discussão na lateral do gramado – não uma, mas duas vezes, como que para ter certeza de que o árbitro iria ver (o vídeo do lance pode ser visto aqui: http://www.youtube.com/watch?v=15CXZn_7_T4). Sem saber que estava sendo filmado, Sodje disse ainda ao Sun on Sunday ter intermediado o pagamento de 30 mil pounds (R$ 114 mil) a um jogador escalado em uma partida da Championship (a Segunda Divisão da Inglaterra) para que ele “cavasse” um cartão amarelo. Ainda no vídeo, Sodje afirma ser capaz de realizar feitos semelhantes na Premier League (a Primeira Divisão) e que estava se preparando para atuar em jogos da Copa do Mundo no Brasil.
"Fiesta" de apostas no anúncio da Paddy Power, em Derby... Para quem?
A segunda investigação, do Daily Telegraph, revela o alcance e a complexidade criada pela indústria do jogo, muito além da Inglaterra. Nesse caso, entre os detidos pela polícia britânica estão dois cidadãos de Cingapura, Chaan Sankaran e Krishna Ganeshan. Em uma série de encontros em Manchester, um fixer (o encarregado de combinar os resultados), também de Cingapura, afirma ter o poder de controlar jogos realizados na Inglaterra e que apostadores fazendo uso de sites de apostas na Ásia ganhariam centenas de milhares de pounds com isso.
De acordo com o fixer, o custo de fazer resultados na Inglaterra era “muito elevado”, afirmando que em geral o valor ficava em 70 mil pounds (R$ 266 mil) por jogador envolvido. Ele deu o exemplo de um jogo em que quatro gols precisariam ser marcados, dois em cada tempo, o resultado final da partida não importava. O sinal “de confiança” de que estava tudo certo para iniciar a cadeia de apostas na Ásia seria dado por um jogador no campo. Ele “cavaria” um cartão amarelo logo nos primeiros minutos, para indicar que o acerto estava de pé - pelo que receberia 5 mil pounds (R$ 19 mil). O mesmo fixer previu quantos gols seriam marcados em uma partida no dia seguinte – e acertou.
Loja de tintas? Não, mais uma casa de apostas
Olhando por cima, isso tudo parece a anos-luz do futebol brasileiro. Será? Conto uma estória só para ilustrar. No último dia da minha estadia em Budapeste (Hungria), em outubro, conheci um macedônio que ficou eletrizado ao saber que eu era do Brasil. Não parecia o cara mais confiável do mundo, mas ele não sossegou enquanto não me fez sentar em frente ao computador do albergue, abriu um site de apostas e começou a me questionar sobre as minhas previsões para a próxima rodada do Brasileirão. Tentei me esquivar, explicando a ele que não é nada fácil prever resultados no futebol, que uma das grandes graças do jogo era justamente essa, de que tudo pode acontecer...
Não adiantou, tive que dar meus palpites para toda a rodada. No meio do processo, expliquei a ele que no Brasil não se pode apostar em futebol – pelo menos não legalmente. Ele pareceu surpreso e emendou: “Mas o futebol brasileiro é a grande máfia das apostas!”. Tentei defender a integridade do esporte nacional, ainda que sem muita convicção, e consegui escapar antes que ele começasse a me perguntar sobre a rodada da Série B.
Se o macedônio estava certo ou errado sobre a honestidade do nosso futebol não sei, mas a questão é que há um cara nos Balcãs acostumado a jogar em resultados dos campeonatos brasileiros, da primeira e segunda divisão – e não deve ser o único. Ou seja, as ferramentas estão disponíveis.
Na Inglaterra estão de olho. E no Brasil?
Hoje em dia pouco se fala de qualquer influência de apostadores no Brasil, estamos mais preocupados com besteiras como “malas brancas” (acertos entre times para ganhar jogos que não são muito relevantes para o recebedor do dinheiro) em quase todo final de campeonato. Mas há oito anos, em 2005, tivemos nossa própria “máfia do apito”. Quem se lembra? Os árbitros Edílson Pereira de Carvalho e Paulo José Danelon foram denunciados por interferir em resultados, para beneficiar apostadores em sites fora do país. A consequência foi a anulação – e posterior repetição - de 11 partidas, que mudaram a história do Campeonato Brasileiro daquele ano e fizeram o Corinthians campeão, em detrimento do Internacional. Os dois árbitros envolvidos, embora banidos do esporte, hoje estão soltos, e a ação penal foi suspensa em 2007.
A realidade do futebol brasileiro é um prato feito para os fixers... A grande maioria dos jogadores é mal paga, o calendário deixa clubes já desestruturados e deficitários sem atividade durante metade do ano, há atletas e até agremiações “ciganas”, que mudam de cidade quando seus “donos” bem entendem, sem saber o que será do dia de amanhã. Os árbitros são amadores, dependem de outro emprego para se sustentar. Se não fosse suficiente, o “organizador” do futebol brasileiro, a CBF (Confederação Brasileira de Futebol), vive para a Seleção, demonstrando pouco interesse nos campeonatos nacionais.
A Sportradar, a agência de monitoramento de apostas que citei no início do post, disse à BBC ter contratos para avaliar apostas em cerca de 55 mil partidas por ano, com algoritmos que cobrem 350 agentes globais de jogo, para detectar padrões suspeitos. Preocupações surgem em 1% dos casos, o que significa cerca de 500 jogos de futebol por ano. E no Brasil, será que tem alguém olhando? Façam suas apostas...

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Trens, carros e o velho ônibus

Royal Scots Grey, uma locomotiva histórica, movida a diesel, na Escócia
É comum ter ideias pré-concebidas sobre um lugar antes de conhecê-lo de fato. São os chamados preconceitos, nada mais do que conceitos prévios, estabelecidos com base em informação arrebanhada ao longo do tempo - ou em pura ilusão mesmo. Estes podem ser tanto positivos quanto negativos. Bom, o meu maior pré-conceito favorável antes de chegar ao Reino Unido era em relação à infraestrutura de transporte.
Já falei um pouco aqui sobre o transporte coletivo urbano e aeroviário de Londres, que supera qualquer expectativa (veja o post “Ah, a infraestrutura”, postado em julho). Mas uma coisa me surpreendeu negativamente: a relação do país com o transporte terrestre de longa distância. O que eu esperava? Sempre ouvi falar da famosa rede ferroviária britânica, os pioneiros no mundo em transportar materiais e pessoas através de trilhos. A primeira estrada de ferro inglesa – e mundial –, com 40 quilômetros de extensão, começou a operar em 1820, em Darlington, no norte da ilha.
A rede continua aqui, embora bem menor do que já foi, mas andar de trem no Reino Unido hoje em dia não é nada barato e deixou de ser a opção mais popular. A alternativa? O que se vê por aqui é parecido com o que seguimos vendo no Brasil, a insistência em ir na contramão e abraçar o transporte rodoviário. Viajar de ônibus – ou até mesmo de carro – é quase sempre mais barato do que tomar o trem.
Passagem de trem, no horário de pico
Selecionei um exemplo para mostrar como isso funciona, de uma passagem entre Derby e a estação de St. Pancras, uma das principais de Londres. A primeira coisa a fazer se a intenção é viajar pela ferrovia é fugir do horário de pico, no começo da manhã e final de tarde. Para ir à capital britânica amanhã de manhã (06/12), por exemplo, o tíquete no horário cheio (às 7h20) sai por 64 pounds (R$ 250), comparado a 49 pounds (R$ 190) fora dele (às 8h16).
Derby fica 180 quilômetros a noroeste de Londres, trecho coberto de trem em uma hora e cinquenta minutos.  Para se ter uma base de comparação do quanto significam esses valores aqui, o salário mínimo no Reino Unido está em torno de 1.100 pounds (R$ 4.290) por mês. Assim, uma viagem de ida e volta no horário de pico, em um trajeto de menos de 200 quilômetros, sai por 128 pounds (R$ 500), o equivalente a mais de 10% do salário mínimo.
Programar a viagem de trem com antecedência pode ajudar, mas não chega a resolver. A mesma passagem daqui a dois meses (6/02) custaria os mesmos 64 pounds (R$ 250) no horário de pico e um pouco menos, 39 pounds (R$ 150), no off-peak. É bom ressaltar que o nível do serviço prestado em geral é bastante satisfatório, pontual, cabines limpas e modernas, além de boas estações. Mas, como sempre, tem aquele componente britânico para causar estranheza... Ao comprar uma passagem pela internet, por exemplo, é preciso retirar o tíquete de papel nas máquinas disponíveis na estação. Até aí, tudo bem. Mas se você fizer uma alteração na passagem (mudança de horário ou dia da viagem), é preciso emitir um novo bilhete e pagar de novo. Aí você precisa imprimir as duas versões na máquina e – pasmem – enviar pelo correio a passagem antiga à empresa para receber o reembolso do que pagou por ela...
Pomba descansa sobre o a tela, na Victoria Coach Station, em Londres
Impulsionada pelos altos preços do transporte ferroviário e pela crise econômica persistente em que se arrasta o Reino Unido desde 2008, desenvolveu-se por aqui uma rede bem capilarizada de linhas de ônibus. Há mais de uma empresa e os preços, comparados ao trem, são invariavelmente mais baixos – embora nem sempre signifique que isso compensa.
Primeiro é preciso dizer que o serviço prestado é pior do que o que estamos acostumados no Brasil – pelo menos nas regiões Sul e Sudeste, das quais posso falar por ser um usuário frequente. Os motoristas são britanicamente educados, os ônibus são novos, mas as viagens levam normalmente o dobro do tempo em comparação ao trem, atrasos são frequentes, não há lugares marcados, a limpeza está longe de ser o forte e as estações rodoviárias são um capítulo à parte...
A maior companhia chama-se National Express, com rotas nacionais e internacionais (é possível ir até a Bulgária de ônibus, embora uma viagem dessas de Londres a Sofia leve 26 horas).  Até pelo preço, essa tem sido minha opção aqui na Inglaterra, o que às vezes pode ser um certo tormento. A principal rodoviária de Londres, por exemplo, é a Victoria Coach Station, que é bem central. Mas, claramente, a estrutura não acompanhou o crescimento no volume de passageiros transportados. É rotina ver as pequenas salas de embarque abarrotadas, com mais gente em pé ou sentada no chão do que na meia dúzia de assentos disponíveis. Ah, e até por ser quentinho lá dentro, é um dos destinos preferidos das pombas londrinas.
Vamos à comparação. A mesma viagem entre Derby e Londres pela National Express, amanhã (6/12), sai por 20 pounds (R$ 78) no horário de pico (saindo às 7h05), mas demora mais do que o dobro em relação ao trem, quatro horas e quinze minutos. No off-peak (parte às 9h10) custa um pouco menos, 15 pounds (R$ 58), e leva quatro horas. No caso do ônibus, o planejamento ajuda a reduzir bem os gastos. O mesmo trajeto daqui a dois meses (6/02) custa a bagatela de 5 pounds (R$ 19) em qualquer dos dois horários.
Ou seja, a viagem de ônibus no horário de pico sai por menos de um terço do preço do trajeto ferroviário no mesmo horário, neste mês, e em fevereiro o trecho off-peak custa 12% do valor do tíquete de trem. Não é pequena a diferença.
O Bentley anunciado por R$ 3.500
E o automóvel? Como quase tudo, mesmo considerando o câmbio e uma moeda que vale quase quatro vezes mais que a nossa, é mais barato do que no Brasil, especialmente os usados. Uma rápida busca em um site especializado (www.autotrader.co.uk) pode deixar qualquer um por aí de queixo caído. O que você prefere, um Mercedes-Benz 230 (ano 1988) ou uma BMW 318i (ano 1995)? Os dois veículos estão anunciados por 500 pounds (R$ 1.950) cada. Quem estiver disposto a gastar um pouco mais pode escolher entre um Land Rover Freelander (ano 1998), por 695 pounds (R$ 2.710), ou até mesmo um Bentley Continental Coupe (ano 2009) por 895 pounds (R$ 3.500).
Com esses preços, quase todo mundo que quer tem um veículo. Em Londres é diferente – até por que não há onde estacionar o próprio automóvel, a maioria das habitações não tem garagem -, mas em Derby se vê bons carros parados mesmo na frente das casas mais modestas. É preciso dizer que para ser motorizado no Reino Unido é obrigatório ter seguro (o valor varia de acordo com a categoria e poder poluidor do veículo, além dos dados do motorista),quee parte de uns 500 pounds (R$ 1.950) por ano.
Por outro lado, não há sequer um pedágio nas estradas do país - o que existe é a cobrança urbana. Em Londres, por exemplo, há a chamada Congestion Charge, uma taxa instituída para combater os engarrafamentos, praticada em toda a região central da cidade, de segunda a sexta-feira, das 7h às 18h. A licença para circular durante um dia inteiro custa 10 pounds (R$ 39), se paga antecipadamente.
Se eu comprei um carro? Sem uma carteira de motorista britânica ou europeia, o seguro fica, digamos, um pouco caro – em torno de uns 2.000 pounds (R$ 7.800) por ano. Assim, continuo mesmo a andar de ônibus...

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Encontros bósnios

O cão do Veliki Park, em Sarajevo
Sarajevo, começo da tarde. Depois de dois dias de frio na casa dos cinco graus e chuva, o sol saiu. Caminho até o Veliki Park, na verdade uma grande praça gramada e coberta de árvores, entremeada por algumas trilhas de calçamento. O parque fica bem em frente ao BBI Center, onde os bósnios comemoraram a classificação para a Copa, dois dias antes.
A temperatura está agradável, na casa dos 20 graus. Subindo pelo meio de uma das trilhas, me deparo com um ensolarado banco desocupado. Quando me aproximo, vejo que há um cão debaixo dele, dormindo satisfeito, aproveitando o inesperado calor do sol em meados de outubro, época em que às vezes até neva na cidade. Ele escuta eu me aproximar, abre os olhos preguiçosamente mas não me dá maior importância e retoma o sono.
Eu me sento ao lado dele e dou a mão para ele cheirar – ele não se mexe. Quando me abaixo para fazer um carinho na cabeça do bicho, vejo uma pequena plaquinha presa a uma das orelhas, com um número: 2236. Me recosto para também aproveitar o sol, mas nosso sossego não dura muito. Logo aparece uma cachorrinha que parecia um filhote de hiena e começa a morder o focinho do meu companheiro de praça.
O 2236 e a pequena hiena
Ele se levanta, pacientemente, e observa a pequena. Ela quer brincar, pula sobre a cabeça dele, morde as orelhas, depois uma das patas do 2236. Nada parece tirar o cão do sério, até que uma das mordidas parece ter doído – aí ele decide entrar na brincadeira e derruba a hiena no chão, com delicadeza.
Abraçado pelo sol da tarde, fico por uns bons minutos observando a brincadeira dos dois, rolando pela grama, até que uma série de latidos mais altos fazem a pequena correr para a parte alta da praça, logo seguida pelo 2236. Os dois desaparecem atrás de uma moita. Eu me levanto e sigo meu caminho.

Mostar, meio da tarde. É o meu segundo dia na cidade e estou caminhando desde cedo pelos dois lados do Rio Neretva, impressionado com a quantidade de ruínas ainda sem solução, 18 anos depois do fim da guerra. A fome aperta. Procuro um lugar para comer algo e encontro uma modesta casa de cevapcici, o prato típico da Bósnia.
Entro e tento pedir comida, mas o homem junto à grelha não me entende. Ele chama uma garçonete, que me indica uma mesa. Estou na parte norte de Mostar, longe da área mais turística, que fica nos arredores da Stari Most, a histórica ponte otomana. Eu me sento e arrisco o pedido, seguindo o que aprendi em Sarajevo: quero sete rolinhos. Ela me olha, sorri e me explica, em inglês, que ali só posso pedir cinco ou dez. Vou de cinco, e peço também uma cerveja.
Ela me olha, sorridente, e pergunta: “Então você bebe e fuma?”, trazendo um cinzeiro para a mesa.
Insistente a pequena hiena
Digo que não, que fumar faz mal à saúde, que só bebo. Ela me olha como se eu fosse louco, como é que fumar pode causar algum mal e a bebida não? Percebo que o restaurante só pode ser de uma família muçulmana. A cerveja vem logo à mesa, morna, mas sem maiores recriminações, e espero pelo meu prato.
O cevapcici é uma espécie de croquete de carne bovina, assado como churrasco, servido em pequenas porções (ali de cinco ou dez unidades), acompanhado de um pão parecido com o pita, cebola crua e iogurte. É bastante saboroso, mas recomendo maneirar na cebola.
Enquanto tomo a cerveja, entra pela porta um homem alto, barbudo, aparentando quarenta e muitos anos, carregando uma pasta. Pede licença, senta na minha mesa e faz um pedido à garçonete, em sérvio-croata. Em seguida ele vira para mim, fala algo na mesma língua e dá uma gargalhada. Rio também, mas peço desculpas por não entender a piada, em inglês.
Começamos a conversar, em uma mistura de alemão, espanhol e sérvio-croata – das quais eu só falo espanhol. Com boa vontade e um pouco de mímica, porém, qualquer comunicação sempre flui bem. Ele me conta que é de Mostar, mas que passou muitos anos na Alemanha, para onde fugiu durante a guerra, para trabalhar na unidade da Goodyear de Fulda, perto de Frankfurt. Voltou à sua cidade natal há três anos, apenas.
Meu cevapcici chega e começo a comer, com apetite. Ele me conta que nos seus tempos de escola, na Iugoslávia, não se aprendia inglês, mas alemão, francês e russo. Diz que alemão ele domina, fala algo de francês e esqueceu todo o russo. Sorrindo, afirma que inglês ele deixa para os jovens, já está muito velho para aprender.
O prato dele chega, um cozido que parecia bastante apetitoso. Termino meu cevapcici (com exceção de metade das cebolas), pago, agradeço à garçonete, me despeço do barba e volto para a rua.

Estação de trem de Mostar, no dia da partida
Mostar, 7h15 da manhã. É dia de voltar para Sarajevo e chego cedo à estação, para comprar minha passagem e embarcar no trem de volta à capital, que partia às 7h50. Depois de garantir o tíquete, sento em uma mesa na área externa da estação, coloco minha mochila sobre a cadeira ao lado e peço um café, para fazer hora.
Ele se aproxima devagar, vestindo um sobretudo cinza. Sobre a cabeça, uma boina azul escura ao estilo Lênin deixava escapar pela parte de trás uma juba de cabelos cinzentos, desgrenhados e gordurosos. Claramente ele está curioso sobre a minha presença ali.
Passa pela minha mesa, me observando, faz meia volta sobre si mesmo e caminha na mesma direção em que veio. Na segunda passagem, ele não resiste e se aproxima. Quando chega mais perto, consigo ver dois olhos bem azuis brilhando no rosto encardido, barba de uma semana por fazer, pelo menos.
“Italia?”, ele pergunta.
Aceno negativamente com a cabeça.
“España?”
Nego.
“Portugal?”, arrisca.
Balanço de novo a cabeça para lá e para cá.
“França, Germania, Checoslovaquia?”, ele atropela, buscando no seu mapa imaginário de países que não existem mais.
Sigo negando. Ele coça a cabeça por baixo da boina, acima da orelha, pensativo. Tento ajudá-lo e digo, em inglês, fazendo um sinal de ir além com as mãos: “Another continent” (“Outro continente”).
Ele não parece entender, então resolvo abrir o jogo: “Brasil”!
“Brasil...”, ele repete, como que para ganhar tempo e assimilar a informação. De repente ele desperta e segue numa mistura de alemão e sérvio-croata.
“Brasil, gut musica!”, diz, sorridente.
Concordo, surpreso. Eu esperava algum comentário sobre futebol e a Copa do Mundo, o que mais ouvi enquanto estive na Bósnia.
Mas ele vai além. Com gestos, me faz entender que uma vez conheceu um soldado brasileiro, que musicou alguns versos do alcorão. E completa, batendo o indicador na cabeça: “Inteligentsia!”
Aceno positivamente, sem saber o que mais acrescentar. Ele acrescenta: “Brazila, universala musica!”
Só consigo concordar com a cabeça, o queixo provavelmente mais caído do que deveria. Ele agradece e se retira, fazendo um sinal de que não quer atrapalhar meu café.

Aconchego no Kosevo Park
Sarajevo, final da manhã de um domingo ensolarado e inacreditavelmente quente para o final de outubro, temperatura na casa dos 25 graus. Compro uma cerveja em um mercadinho e atravesso a rua para aproveitar aquele sol e calor no Kosevo Park, ciente de que não veria nada parecido com isso na Inglaterra pelos próximos seis meses.
Sento na grama e me recosto em uma árvore, o sol na cara, observando um pai e um filho brincando com seu cachorro, com uma bolinha que o bicho trazia de volta.
No meu campo de visão, do lado direito, vejo um cão se aproximar, entrando no parque pela mesma escada que eu tinha descido, a uns 20 metros de mim. Ele alcança a grama e se deita ao sol, olhando na minha direção.
Estalo os dedos e assobio, ele se aproxima, devagar. Aproximo minha mão do focinho, ele cheira e entra no meio das minhas pernas, a cabeça baixa. Faço um carinho, ele faz uma volta sobre si mesmo e se deita, aconchegado, a cabeça sobre o meu joelho.
Passando a mão sobre a cabeça do cão, vejo uma plaquinha presa à orelha: 2236. Era o mesmo cachorro amigo da pequena hiena, que eu tinha encontrado no outro parque, 15 dias antes.
Perguntei aos meus anfitriões do hotel o que significavam aquelas plaquinhas numeradas nos cachorros de rua e eles me disseram que servem para identificar os animais que foram esterilizados. Mesmo assim, eles continuam nas ruas – e muito bem alimentados por sinal, vi várias vezes donos de lojas dando comida (inclusive ração) para eles.
Depois de uma meia hora com o 2236 no meu colo o cachorro que brincava com a família se aproxima, abanando o rabo. Meu amigo fica louco e parte pra cima dele, rosnando – tive que separar a briga.
Quando me levanto para ir embora do parque, ele me segue, inclusive pela rua, a caminho do centro. Sinto que isso não vai dar certo. Entro em um mercadinho, compro a maior linguiça que encontro e, quando saio, lá está o 2236, sentado na porta à minha espera. Chamo ele de volta para o parque e entrego a guloseima, ao pé da árvore em que estávamos sentados.
O 2236, aproveitando o domingo no parque
Indeciso, ele cheira a linguiça e olha para mim. Eu me abaixo, recolho o pedaço de carne e o deposito mais perto dele. O 2236 dá uma lambida e volta a olhar para mim. Espero ele se decidir a começar a comer e me afasto, devagar. Ele levanta a cabeça e me observa, parado, mas em seguida volta a atenção para a comida. Eu me viro e saio pelo outro lado do parque, sem olhar para trás.
No caminho para o centro, passo pelo Mali Park, na verdade uma pequena praça que serve de ligação entre duas avenidas movimentadas, a Alipasina e a Marsala Tita. Encontro um banco vazio, curiosamente ocupado só por uma pilha de guardanapos limpos, e decido fazer uma pequena pausa.
Escuto os passarinhos cantando com força nas árvores ao redor e volto a aproveitar o sol, fechando os olhos e agradecendo interiormente por tudo aquilo que eu tinha vivido na Bósnia. No meio do meu devaneio, sinto uma cagada de pássaro cair sobre o meu braço esquerdo. Abro os olhos e a primeira coisa que vejo são os guardanapos, branquinhos, brilhando ao meu lado. Recolho dois deles e me limpo. É hora de voltar para casa.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

"Rum para Corkan!"

A ponte sobre o Drina
O que nos leva a viajar, ter vontade de conhecer determinado lugar? Pode ser uma foto embelezada de rede social, uma reportagem de revista de turismo, um filme, uma música, um programa de televisão ou até o relato de algum amigo que esteve lá. Para mim foi uma estória. Uma não, várias - na verdade um livro, A ponte sobre o Drina, de Ivo Andric.
Já mencionei ele aqui, em um post anterior. Apesar de ser uma obra de ficção, é provavelmente a melhor introdução que existe para a história dos Balcãs. Não pode ser considerado um romance – o escopo é muito vasto, tem uma quantidade impressionante de personagens e o período de ação coberto é longo demais (cerca de 350 anos, de meados do século XVI à Primeira Guerra Mundial). O próprio Andric o considerava uma crônica.
A grande constante no livro, porém, é a ponte do título, uma incrível estrutura de pedra com dez majestosos arcos, unindo os dois lados do Rio Drina, em Visegrad, uma pequena cidade do leste da Bósnia, perto da fronteira com a Sérvia. Se eu estava ali, em Sarajevo, o grande motivo eram aquelas páginas escritas por Andric há 70 anos, que levei comigo para reler durante a viagem – e a ponte, em última instância. Eu tinha que ver aquela ponte de perto... Bom, ninguém disse que ia ser fácil.
Para começar, como já contei no post sobre Sarajevo, não há ônibus entre a capital e Visegrad partindo da estação central – eles saem de Lukavica, a rodoviária do Cantão Sérvio, vizinho à capital, que serve a República Srpska. São ainda as cicatrizes da guerra, as unidades federativas bósnias não se entendem muito bem e ainda há bastante ressentimento no ar, tornando essa viagem um pequeno desafio logístico.
Vista do alto, quando a neblina começava a se dissipar
Aos fatos. O ônibus para Visegrad parte de Lukavica às 6h30 da manhã e chega às 9h50. A rodoviária fica a uns 15 quilômetros do centro de Sarajevo. Para voltar, o último ônibus entre a cidade à beira do Drina e a capital sai de lá às 12h45. Ou seja, era preciso reservar um táxi no dia anterior, acordar às 5h da manhã e, dando tudo certo, eu teria menos de três horas para admirar a ponte.
Durante minha estadia na Bósnia mencionei para algumas pessoas meus planos de ir até Visegrad, o que invariavelmente era recebido com um estranhamento surpreso por parte do interlocutor. Depois da terceira ou quarta vez, eu me limitava a explicar meu desejo de visitar a cidade com uma frase verdadeira e simples: “Eu tenho que ver a ponte” - isso parecia despertar certa compreensão, como se eu estivesse me referindo a um parente morto. A sensação era de que eles conseguiam vislumbrar meus motivos, mas continuavam achando que eu só podia ser louco de querer ir até lá por causa de uma ponte.
A única pessoa que teve uma reação diferente e pareceu compreender exatamente o porquê de eu querer tanto ir até Visegrad foi a dona do hotel em que eu estava, em Sarajevo. Ex-professora da universidade, Neema, uma senhora de uns sessenta e tantos anos, conhecia bem o livro de Andric. No meu retorno de Mostar, enquanto eu carregava minhas malas para o quarto, ela ligou para Lukavica, checou os horários dos ônibus e se ofereceu para reservar o táxi para mim. Concordei e na manhã seguinte, antes de o sol nascer, eu já estava a caminho do Cantão Sérvio.
A rodoviária era na verdade uma cobertura de metal com baias de estacionamento para uns três ônibus. Algumas pessoas ocupavam o interior de um café e o saguão central estava fechado. Tento me comunicar, mas ninguém se mostra disposto a me entender. Encontro uma vendinha aberta, compro um pão coberto de sal e uma água para o café da manhã e o homem atrás do balcão, mesmo sem falar inglês, se dispõe a me ajudar, batendo na porta para o guarda abrir o saguão central.
Retrato de Ivo Andric, em frente à ponte que ele imortalizou
Entro, tento comprar minha passagem, mas o máximo que consigo é pagar a taxa de embarque, recebendo um pequeno quadrado encardido de recibo. O tíquete eu paguei na porta do ônibus, ao motorista, e subi. Também à espera da viagem, três policiais da República Srpska me seguem, me medindo de cima abaixo – finjo que não é comigo. Um outro homem que aguardava para embarcar é abordado por um guarda da rodoviária, porque não tinha pagado a taxa. Ele não teve dúvida, saiu da área coberta, cruzou o portão por onde saía o ônibus, fez sinal para o motorista e subiu – fora da rodoviária ninguém podia cobrá-lo...
Foi uma longa viagem. Se tem uma coisa que se aprende rápido na Bósnia é que a distância tem pouca ou nenhuma relação com o tempo gasto para cobrir um trajeto. De Sarajevo a Visegrad são apenas 120 quilômetros, mas aí não estão previstos os desvios...
O cenário era agradável, apesar de inóspito. Passamos por Pale, com pastos verdinhos e vários pastores de ovelhas, o que tornou a estória que ouvi de Faruk no Túnel da Vida muito mais real (ver post “Um túnel, futebol e duas estórias”). Ao longo da estrada, vi alguns carneiros inteiros sendo assados diretamente no fogo, empalados, à moda sérvia. Depois veio uma parada de uns 20 minutos e troca de ônibus em Rogatica, o que ampliou o atraso – chegamos só às 10h30, 40 minutos depois do previsto.
Ela apareceu inesperadamente, depois de uma curva, envolta pela neblina... A estória da ponte sobre o Drina é tão fantástica que parece ficção. Durante o período de dominação otomana nos Balcãs, de tempos em tempos as famílias cristãs eram obrigadas a entregar um menino para servir no exército turco, o chamado Feudo de Sangue. Essas crianças eram confiscadas e levadas em procissão pelos soldados, seguidos por dias pelas mães, chorosas, na expectativa de ter uma última visão dos filhos que nunca mais voltariam a encontrar.
Kapia, no vão central da ponte
Um desses meninos, nascido na vila vizinha de Sokolovici, logo atrás das montanhas que cercam Visegrad, subiu tanto na hierarquia otomana que alcançou a posição de grão-vizir, o administrador de todo o império, abaixo apenas do Sultão. Mehmed Pasha, que cruzou o Drina de balsa, provavelmente em 1516, lembrava com clareza de sua Bósnia natal e mandou construir a ponte ali, para ser lembrado no lugar onde nasceu, além de estrategicamente conectar o território bósnio aos dominadores do oriente.
É de se imaginar que a construção de uma estrutura desse porte, não tenha sido fácil nem rápida – havia apenas outras duas dessas proporções em todo o Império Otomano. Foram seis duros anos, entre 1571 e 1577, descritos com maestria por Andric nos primeiros capítulos do livro, em que os turcos engajaram praticamente toda a população masculina não-muçulmana de Visegrad e seus arredores em trabalho forçado.
Em dado momento os camponeses sérvios se revoltaram e começaram a desfazer na calada da noite o trabalho que faziam de dia, na tentativa de forçar os turcos a desistir da ponte. Descobertos, tiveram seu líder executado em uma das cabeceiras – o comandante otomano, o cruel Abidaga, prometeu um pagamento extra ao cigano encarregado do empalamento se o homem sobrevivesse até o amanhecer do dia seguinte. Merdjan tomou todo o cuidado possível ao inserir a lança de madeira com ponta de aço, a marteladas, para não danificar nenhum órgão vital, e Radisav agonizou até o anoitecer do outro dia, suspenso no ar, como exemplo aos revoltosos.
Sofa, centro dos acontecimentos na velha Visegrad
Odiada no início, a ponte se tornou o centro da vida em Visegrad pelos séculos seguintes, impávida mesmo diante das piores enchentes que arrasavam a cidade sazonalmente. No seu vão central se realizavam as solenidades históricas, tragédias familiares se sucediam, procissões de casamento e de batismo festejavam e a rotina do dia-a-dia tomava forma. De um lado está a Kapia, uma lápide vertical de pedra com a inscrição em árabe que agradece ao grão-vizir e pede a bênção de Alá à construção, bem no meio da estrutura. Ali, nos velhos tempos, havia sempre uma barraquinha a servir café à moda turca, carregado de pó. O café era degustado do outro lado do vão central, no chamado Sofa, um banco de pedra em formato de U.
Sempre em volta da ponte, Andric desenrola a história dos Balcãs do século XVI até o início da Primeira Guerra Mundial, apresentando a cada capítulo cinco, seis, sete personagens inesquecíveis - alguns ganham vida e desaparecem em menos de dez páginas, por vezes.
Debruçado no Sofa, observando a majestade da Kapia, materializaram-se na minha frente alguns dos meus preferidos. Revi Fata Avdagina mergulhar no Drina em direção à morte, para fugir do casamento acertado pelo pai. Experimentei a ansiedade de Pop Nikola, o patriarca da Igreja Ortodoxa, ao receber o exército austríaco após o protetorado de 1878, ao lado do líder religioso muçulmano, Mula Ibrahim, e do rabi judeu, David Levi. Senti a dor pulsante da orelha de Alihodja, pregado no dia anterior ao solo da ponte pela milícia turca. Fui testemunha do encontro de Milan Glasicanin com o Diabo, em um jogo de cartas marcadas sob a luz da lua, ali mesmo na Kapia. Assisti à desgraça do streifkorp ruteno Gregor Fedun, iludido pelo encanto feminino durante o serviço de guarda. Vi-me observado por Lotte, a protetora dos judeus da Galícia, recostada em seu abrigo secreto no hotel. Escutei as intrigas políticas dos jovens nacionalistas e a revelação de Nikola Glasicanin sobre quem na verdade era Janko Sticovic, guiado pelo amor e pela inveja da conquista da professora Zorka. Por fim, acompanhei maravilhado o miserável zarolho cigano Corkan bailar pelo parapeito da ponte, de um lado a outro, completamente bêbado após mais uma noitada de insultos e gozações no Zahir In, incentivado pelos gritos inebriados de Santo Papo: “Rum para Corkan!”
Os dez arcos refletidos no Drina
Infelizmente, pelo menos em Visegrad essa convivência de culturas e religiões é passado. O cenário descrito por Andric - ele mesmo um defensor da convivência multiétnica nos Balcãs enquanto serviu como diplomata, antes mesmo da criação da Iugoslávia – não existe mais. Localizada no leste da Bósnia, a cidade faz parte da zona em que as maiores atrocidades tomaram forma durante a guerra, com os militares e paramilitares sérvios realizando a “limpeza étnica” da população muçulmana, incluindo o massacre de Srebrenica.
Atualmente, Visegrad é parte da República Srpska e uma caminhada pela cidade deixa isso bem claro. A área do antigo mercado, descrita no livro como o vivo e movimentado ponto das lojas dos comerciantes muçulmanos e judeus mais ricos, agora é uma melancólica rua ocupada por algumas vendinhas, lanchonetes e uma banca de revistas. Andric, que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura pelo conjunto de sua obra descrevendo a diversidade dos Balcãs, certamente ficaria triste em ver no que se transformou o lugar em que passou a infância e o começo da adolescência, antes de continuar os estudos em Sarajevo, Zagreb, Cracóvia, Viena e Graz.
Não posso negar que também fiquei decepcionado ao me deparar com a cidade inexpressiva, que não faz nenhuma justiça ao vivo entreposto comercial à beira do Drina descrito no livro. Mas, a caminho do ponto para pegar o ônibus de volta a Sarajevo, cruzo de novo a gloriosa ponte de Mehmed Pasha. E essa, mesmo depois de 400 anos, continua a mesma...

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Na Herzegovina havia uma ponte

Stari Most, ligando os dois lados de Mostar
"Uma vez meu finado pai ouviu do Sheik Dedije e me contou, quando eu era criança, como as pontes vieram a esse mundo e como a primeira ponte foi construída. Quando o misericordioso e compassivo Alá criou o mundo, a terra era macia e regular, como uma placa finamente esculpida. Isso desagradou o diabo, que invejou o homem por esse presente de Deus. E enquanto a terra estava exatamente como surgiu das mãos de Deus, úmida e suave como argila ainda a ser modelada, ele a roubou e arranhou a face da terra de Deus com suas unhas, o máximo e mais profundamente que pode. A seguir, a estória diz, rios profundos e ravinas se formaram, o que dividiu um distrito do outro, mantendo os homens separados, impedindo que eles viajassem por essa terra que Deus tinha dado a eles como um jardim para cultivar sua comida e seu sustento. E Alá teve pena quando viu o que o Amaldiçoado tinha feito, mas não foi capaz de reverter o que o diabo tinha deformado com suas unhas, então ele mandou seus anjos para ajudar os homens e tornar as coisas mais fáceis para eles. Quando os anjos viram como os desafortunados homens não podiam atravessar os abismos e ravinas para terminar o trabalho que tinham a fazer, e, atormentados, olhavam em vão e gritavam de um lado para o outro, eles estenderam suas asas sobre os vãos nesses lugares e os homens foram capazes de cruzá-los. Então os homens aprenderam com os anjos de Deus como construir pontes. E, depois das fontes, a maior bênção é construir uma ponte e o maior pecado é interferir com uma delas, porque qualquer que seja ela, de um tronco de árvore sobre um riacho na montanha a essa grande construção de Mehmed Pasha (a Ponte sobre o Drina), toda ponte tem seu anjo guardião que zela por ela e a mantém pelo tempo que Deus ordenou que ela permaneça em pé.”*
Mesquita Koski Mehmed Passa, no lado oriental do Neretva

Mostar, Bósnia-Herzegovina, a cidade que vive em torno de uma ponte, a Stari Most. A grandiosa estrutura em arco foi terminada pelos turcos em 1566, para unir os dois lados do Rio Neretva e facilitar o caminho das caravanas que viajavam de leste a oeste (e vice-versa), conectando Istambul, a capital do Império Otomano, a cidade-estado de Ragusa, a maior potência comercial deste lado do Mar Adriático, atual Dubrovnik, na Croácia, além de Sarajevo e Trieste, hoje na Itália.
Em novembro de 1993 nada disso parecia ter qualquer importância. Há pouco mais de vinte anos, mais uma guerra se espalhava pelos Balcãs, com a desintegração da Iugoslávia. A Bósnia havia declarado independência em março de 1992 e logo em seguida começaram os combates contra paramilitares sérvios, apoiados pelo exército iugoslavo, dominado pela Sérvia. No início, bósnios e croatas lutavam juntos contra os sérvios, mas em 1993 esses dois lados também se desentenderam, transformando o conflito em uma sangrenta disputa tripartite por território.
"Não se esqueça de 1993"
Em Mostar, então uma cidade em que muçulmanos, católicos e cristãos ortodoxos viviam lado a lado, as diferenças religiosas se consolidaram geograficamente. A minoria sérvia fugiu da cidade, enquanto seus militares ocupavam posições nas montanhas ao redor. Os muçulmanos se concentraram na margem oriental do Neretva, com os croatas no lado oeste. Daí em diante, croatas e muçulmanos eram bombardeados pelos sérvios, das montanhas, enquanto croatas bombardeavam os muçulmanos - que não bombardeavam ninguém, porque não tinham artilharia pesada.
Em 8 de novembro de 1993, os croatas começam a dirigir fogo de tanques deliberadamente em direção à Stari Most. No dia seguinte, depois de ser atingida por 64 disparos, a ponte de 427 anos veio abaixo (o triste vídeo do desabamento está no YouTube: http://www.youtube.com/watch?v=CM3B-6CFo9k).
Sabendo disso tudo, é estranha a sensação de se deparar com o arco de pedra brilhando sob o sol, cruzando o Neretva, bem verdinho. A Stari Most foi reconstruída, usando materiais e técnicas otomanas originais, entre 2001 e 2003, sob a supervisão da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Aliás, ao fim da guerra, não havia nenhuma ponte em pé na cidade anterior a 1994...
Cheguei a Mostar no começo da manhã, depois de uma viagem bonita mas penosa, de 2h40 de trem, que partiu às 6h05 da capital bósnia. O cenário era fantástico, os vagões antigos e confortáveis, mas a doença insistia em me perseguir (uma gripe balcânica brava) e, para piorar, todo mundo fumava dentro do trem.
Prédio do Lyubljanska Banka
A boa nova é que meus anfitriões em Sarajevo tinham arrumado hospedagem para mim em Mostar e a senhora dona do hostel foi me buscar na estação, de carro. Depois de deixar a mochila no quarto, saí para dar uma volta pela cidade.
As imagens que se vê de Mostar pela internet ou na televisão na maioria das vezes mostram só o centro histórico próximo à Stari Most. Mas saindo da Kujundziluk, a ruazinha de pedra que concentra lojinhas e restaurantes para os turistas, o cenário é bem mais triste.
As cicatrizes da guerra estão logo ali, nas duas margens do rio, é só sair da rua principal. As ruínas são de todos os tipos, casas (muitas queimadas pelos próprios vizinhos), uma escola de música, um hotel centenário (o Hotel Neretva), o prédio de nove andares de um banco (o antigo Ljubljanska Banka), um edifício de apartamentos de cinco andares, a igreja ortodoxa (em restauração), e tantas outras. No muro metralhado de uma casa, uma mensagem anônima: "You must learn to see things trough the eyes of those who can no longer see" ("Você precisa aprender a ver coisas pelos olhos daqueles que não podem mais ver"). Nessa parte, há pouco ou nenhum dinheiro para remover o entulho ou para a reconstrução.
Cemitério muçulmano e mais ruínas de guerra
Em volta das mesquitas, os cemitérios muçulmanos se espalham, inconfundíveis com os túmulos brancos e datas de morte de 1992 a 1994. Mostar tinha 64 mesquitas no início da guerra e só uma escapou intacta aos combates (a Roznamedzi Ibrahimefendi) – a maioria delas já foi reconstruída, com a ajuda de países muçulmanos do Oriente Médio. Ao final do conflito, a principal cidade da Herzegovina estava praticamente arrasada, a ponto de ser comparada a Dresden, na Alemanha, ao fim da Segunda Guerra Mundial.
Os Balcãs são um lugar difícil de entender. Como vizinhos que viveram lado a lado durante anos, famílias que se conheciam e se diziam bom dia e boa tarde todos os dias, cujos filhos brincavam juntos pelas ruas, podem de um dia para o outro por fogo na casa ao lado?
Mostar era uma espécie de mini-Sarajevo no que diz respeito à tolerância religiosa. Dominada pelos turcos no século XV, era a capital comercial, militar e religiosa dos otomanos no território da Herzegovina. Nas décadas seguintes a cidade também recebeu parte do fluxo de judeus expulsos da Espanha e no século XIX já contava com um bispo católico e um arcebispo ortodoxo.
Hoje Mostar tenta se projetar como destino turístico, o que em parte vem conseguindo. No verão a cidade é tomada por visitantes que “esticam” uma estada em Dubrovnik, a 140 quilômetros de distância. Em outubro, porém, quando estive lá, o máximo que se vê são poucas excursões que chegam no final da manhã, amontoam-se ao redor da ponte e partem de novo, logo após o almoço.
"Você precisa aprender a ver coisas pelos olhos daqueles..."
De manhã e durante a tarde, a cidade era toda dos seus habitantes – e minha. Aproveito um dia brilhante de sol e logo cedo subo ao minarete da Mesquita Koski Mehmed Pasa, originalmente construída em 1618, destruída na guerra e depois reconstruída. Sozinho, passo uns bons 40 minutos desfrutando da vista, observando a vida da cidade, uns bons 20 metros abaixo.
Quando desço, me deparo com uma banca de livros no pátio da mesquita – para minha alegria, encontro uma tradução para o inglês de mais uma obra do Ivo Andric (The Damned Yard and other stories), um inacreditável escritor bósnio de origem sérvia, autor das linhas iniciais citadas nesse post. Pago, com um sorriso de orelha a orelha, e o atendente da banca parece perceber minha felicidade. Começamos a conversar.
Aneem, de 27 anos, é um muçulmano que acredita em karma e no poder da educação. Nascido e criado em Mostar, fala um inglês perfeito e trabalha na mesquita – aquele era seu dia de folga, mas mesmo assim ele apareceu, só para tomar um café com os amigos. Quando digo que sou brasileiro, imediatamente começa a me perguntar sobre cidades, distâncias e preços no Brasil - é mais um bósnio que faz contas para tentar ir à Copa do Mundo.
Roznamedzi Ibrahimefendi, única das 64 mesquitas que sobreviveu intacta
Nos cálculos dele, com cinco mil euros daria para passar dez dias em solo brasileiro e assistir à primeira fase. “É dinheiro para uma vida, mas essa é uma oportunidade única na vida também”, ele diz. Não quero desanimá-lo em relação aos valores, então concordo, reticente.
Aneem é um muçulmano liberal, nos moldes da maioria dos que habitam os Balcãs. Não consome álcool, mas não tem nada contra quem bebe – fuma e toma café, é claro. Ele diz ter tido uma má experiência com bebida (deve ser um dos poucos que jurou nunca mais beber durante uma ressaca terrível e cumpriu a promessa).
Ao saber que vivo em Derby, ele se mostra bem informado sobre o futebol inglês – conhecia até o Derby County. Aneem é primo do goleiro da seleção bósnia, Asmir Begovic, que joga no Stoke City, na briga para se manter na Premier League, a primeira divisão inglesa. “Tentei convencê-lo a me levar para a Inglaterra, para assistir um jogo”, conta, meio desanimado. “Mas você sabe como é família, quando alguém fica rico, logo se esquece da parte pobre...” Conversamos mais um pouco, desejo sorte à Bósnia e me despeço.
Pôr do sol, igreja católica na margem esquerda e mesquita na direita
Fiquei três dias em Mostar e nos finais de tarde meu destino era a margem oriental do Neretva, para assistir o pôr do sol, de frente para a ponte. E não era só pela vista. Perto das seis da tarde eu já estava lá, debruçado no parapeito da Kujundziluk. Primeiro vinham as quatro badaladas do lado oeste, com os sinos da igreja católica marcando a hora cheia. Logo em seguida começavam os chamados para oração, vindos das várias mesquitas, dos dois lados do rio. Os cantos se sobrepunham, em tons diferentes - do lado oeste mais agudo e musical, do leste, mais próximo, grave e solene. Bem ao longe dava para ouvir um terceiro chamado, descendo do alto de um minarete, que pela distância soava como várias vozes misturadas.
Dezoito anos depois da guerra, a tolerância parece ter voltado a Mostar, com muçulmanos, católicos e ortodoxos vivendo de novo juntos, dos dois lados do rio. Que continue assim.

Carreguei um vídeo do pôr do sol em Mostar no YouTube, com os chamados das mesquitas para oração ao entardecer. O link segue abaixo: 
http://youtu.be/KByxVn3RuPM

*Trecho de A Ponte sobre o Drina, de Ivo Andric

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Um túnel, futebol e duas estórias

"Sweet lies do not help, while bitter truths can have a healing power."*
Alija Izetbegovic, presidente da Bósnia-Herzegovina (1992-1996)
Sarajevo, vista das montanhas ao redor da cidade
Era a tarde de um belo domingo de sol quando chego à estação central de ônibus de Sarajevo, capital da Bósnia-Herzegovina, com o objetivo de comprar uma passagem para Visegrad, no dia seguinte – eu tinha que ver de perto a fabulosa ponte sobre o Rio Drina. Para minha surpresa, descubro que ali não se vende essa passagem, e nem é dali que sai o ônibus. Como Visegrad fica na República Srpska, uma das unidades federativas da atual Bósnia-Herzegovina, seria necessário comprar o tíquete (e embarcar) na rodoviária de Lukavica, a 20 quilômetros dali, no chamado Cantão Sérvio, vizinho a Sarajevo....
O que fazer? Como chegar lá? Como quem não quer nada, eu me aproximo de um grupo de motoristas de táxi para assuntar. Um deles propõe me levar até Lukavica, por 20 euros. Outro oferece uma corrida diretamente até Visegrad, por 140 euros, ida e volta - tudo em uma mistura de sérvio-croata, alemão e algum inglês, mas na língua universal dos taxistas, todos se entendem.
Meu plano de fundo para aquela tarde na verdade era conhecer o chamado Túnel da Vida, a estrutura que manteve Sarajevo viva durante a guerra, quando a cidade permaneceu sitiada por quase quatro anos, entre abril de 1992 e fevereiro de 1996. Já que estava ali, pergunto aos taxistas quanto sairia uma ida até Ilidza, uns dez quilômetros a oeste, onde fica o que restou do túnel, nas proximidades do aeroporto. Um deles se oferece para me levar, esperar por mim lá e me trazer de volta por 15 euros. Fechamos negócio e entro no carro. Só eu ponho o cinto de segurança e ele fuma – definitivamente, a Bósnia me lembra muito o Brasil da minha infância, nos anos 80.
Mapa do cerco, com o faixa de território que permitiu o túnel
A corrida leva dois cigarros e uns 25 minutos. Chego a Ilidza pouco depois das 15h, na porta do museu que preserva os restos do túnel. O horário de fechamento é às 16h, mas sou muito bem recebido por Faruk, um bósnio muçulmano nos seus vinte e muitos anos, que em um inglês perfeito me guia pelo lugar.
Ele me conta que os bósnios não esperavam – ou não queriam acreditar – na guerra. Só depois do massacre à população croata de Vukovar por tropas sérvias, no oeste da Croácia, em 1991, a Bósnia começou a abrir os olhos. Mas já era tarde... Quando perceberam, militares e paramilitares sérvios já tinham dominado as posições nas montanhas ao redor de Sarajevo e se preparavam para fechar o cerco, em 1992. Uma representação da ONU (Organização das Nações Unidas) conseguiu manter o aeroporto na neutralidade e uma resistência heroica e obstinada de voluntários bósnios sustentaram um estreito corredor entre a vila de Butmir e o Monte Igman, o único cordão que ligava a capital às outras áreas a oeste, sob controle bósnio.
Enquanto os sérvios lutavam com o apoio de toda a estrutura e armamento pesado do antigo exército da Iugoslávia, os bósnios só tinham armas leves - para piorar, estavam impossibilitados de ir às compras, uma vez que um embargo armamentista estava em vigor para todas as ex-repúblicas iugoslavas durante o conflito. Para piorar, sob constante bombardeio sérvio, era muito arriscado trafegar pelo corredor, para trazer suprimentos a Sarajevo...
O Túnel da Vida de Ilidza
A solução encontrada pelos bósnios foi construir um túnel sob o corredor, de 800 metros de comprimento, um metro de largura e 1,60 metro de altura, para trafegar em segurança entre as próprias posições. A estrutura foi cavada a mão, uma vez que eles não tinham equipamentos pesados, e sem qualquer tecnologia de navegação por satélite. As escavações começaram simultaneamente dos dois lados, com o plano de se encontrarem no meio do caminho – mas sem GPS, algo saiu errado e eles tiveram que fazer uma curva subterrânea para conectar as duas partes.
A construção levou quatro meses e quatro dias e foi terminada em 30 de junho de 1993. Não havia nenhum sistema de exaustão e na maior parte do tempo uma camada de 20 centímetros de água cobria o piso. Ainda assim, uma brisa suave soprava sem parar pelo buraco, algo que os engenheiros da ONU nunca conseguiram explicar... O túnel começou a ser usado no dia seguinte.
Faruk me aponta uma mochila militar verde escura no chão e sugere que eu a levante – é um exemplo do peso que as pessoas carregavam pelos subterrâneos, trazendo munição, comida e remédios para a Sarajevo sitiada. Mal consigo colocar as alças nos ombros, são 50 quilos... Claro que isso era carregado em uma posição de semi agachamento (dada a altura de 1,60 metro entre o piso e o teto), em uma fila ininterrupta, através do chão alagado.
Depois de assistir um vídeo que mostra as incursões pelo túnel durante a guerra, entro nele de fato – ou no pequeno trecho que restou em pé. Na saída, Faruk me espera, fumando um cigarro. Ele me pergunta de onde eu sou e abre um sorriso inevitável ao ouvir Brasil. Explico que estava em Sarajevo no dia da classificação da Bósnia para a Copa e seguimos conversando. Em algum momento, digo a ele que, para nós, brasileiros, é difícil entender essa intolerância racial-religiosa – temos outros milhares de problemas, mas não esse.
Faruk me olha nos olhos e começa a contar uma estória. Ele me diz que sua família é de Pale, uma cidade que fica uns 20 quilômetros a leste de Sarajevo. A infância ele passou ali mesmo, em Ilidza, mas vivia em Pale, ainda criança, quando começou a guerra. Forçados a fugir para as proximidades da capital, conta que não conseguia reconhecer as ruas onde tinha crescido quando chegou, tamanha a destruição causada pelos bombardeios sérvios.
Saída do túnel do lado de Sarajevo - foto do Museu do Túnel
Há dois anos, diz Faruk, ele decidiu voltar a Pale – atualmente parte da República Srpska e área de maioria sérvia - e retomar as propriedades da família. Munido de uma marreta, madeira e material para fixar uma cerca plástica, dirigiu até seu terreno. A casa não existia mais, só restaram as ruínas, queimada pelos vizinhos sérvios. Quando ia pelo meio do serviço, com parte da cerca já fixada, ele ouviu uma voz próxima.
“Depois disso tudo eles ainda têm coragem de voltar aqui e colocar cercas na minha terra”, alguém dizia. Era um pastor sérvio, tocando um bando de ovelhas.
“Como o carro estava estacionado atrás das ruínas da casa, que fica protegida por um morro, ele não me viu. Ele estava falando sozinho, ou com as ovelhas, sei lá”, conta Faruk. “Aquilo me irritou bastante, saí de trás da casa e perguntei a ele onde está o papel que diz que aquela terra era dele.”
Pego de surpresa, o sérvio começou a se desculpar de imediato, dizendo que estava só falando sozinho, que passava por ali porque as ovelhas dele já estavam acostumadas, que teria que treiná-las para fazer diferente. Faruk olha para mim e solta a inconfundível expressão em inglês: “Yeah, right... (algo como, “Certo, então tá...”).
Já são mais de quatro horas, está na hora de fechar o museu e o motorista de táxi me espera para o retorno a Sarajevo. Agradeço ao Faruk, me despeço e caminho para o carro tentando fazer algum sentido de tudo aquilo.
Na volta à cidade, envolto na fumaça de mais alguns cigarros, tento organizar as ideias. A história da Bósnia é uma das mais sui generis no planeta... Localizada no meio dos Balcãs, esse território montanhoso sempre foi a encruzilhada da Europa. A divisão religiosa começou lá atrás, entre os romanos ainda. Quando o imperador Theodosius morreu, em 395, os domínios de Roma foram divididos entre seus dois filhos - a linha divisória passava mais ou menos na atual fronteira entre Bósnia e Croácia, com os croatas no lado católico e os bósnios do lado ortodoxo.
Mesquita na Bascarsija, a parte mais antiga de Sarajevo
Os turcos conquistaram a Bósnia entre 1386 e 1463 e a conversão para o Islã foi rápida, especialmente por parte das famílias donas de terras, interessadas em manter sua influência sob o domínio otomano. Forças militares bósnias passam a guerrear pelo sultão, promovendo, de tempos em tempos, expedições punitivas sanguinárias em direção ao norte e ao oeste.
O curioso é que, etnicamente, a população que ocupava – e ocupa – Bósnia, Croácia, Sérvia e Montenegro tem a mesma origem, são todos eslavos. A língua que falam é a mesma (sérvio-croata) e os costumes são semelhantes – não há restrição dos muçulmanos bósnios ao consumo de álcool e a tolerância religiosa é a regra.
Na fronteira entre católicos, muçulmanos e cristãos ortodoxos, a Bósnia conviveu durante séculos com uma mistura de credos. O maior exemplo disso era Sarajevo, uma pequena Jerusalém, que teve a quarta fé adicionada a partir de 1492, quando a cidade começou a receber um fluxo de judeus sefardis expulsos da Espanha pelos reis católicos Fernando e Isabela.
No final do século XIX, o Império Otomano começava a se desintegrar e uma série de revoltas de camponeses ortodoxos na fronteira com a Sérvia geram incerteza para a borda do Império Austro-Húngaro. Como resultado, depois de uma conferência em Berlim, em 1878, a Bósnia e a adjacente província da Herzegovina, então um pashaluk (província) turco, são colocadas sob a proteção austríaca.
Ponte Latina, em Sarajevo
Vinte anos depois, a Áustria-Hungria anexa oficialmente os dois territórios, gerando insatisfação por parte da população sérvia (que queria juntar a área à Sérvia) e muçulmana (que temia o domínio ocidental). Os nacionalismos exacerbados desembocam no assassinato do herdeiro do trono austríaco, Franz Ferdinand (na Ponte Latina, em Sarajevo, em 1914), por um radical de origem sérvia, que acabaria na declaração de guerra da Áustria à Sérvia e depois na Primeira Guerra Mundial.
Terminado o conflito, a Bósnia integra por pouco tempo o Reino Eslavo dos Sérvios, Croatas e Eslovenos. Durante a Segunda Guerra Mundial, o território bósnio se transforma na fortaleza de Tito e dos partizans comunistas, na luta contra os nazistas. Os iugoslavos foram os únicos a se libertar dos alemães sem a ajuda do Exército Vermelho ou Americano – e em não sendo ocupados pelos soviéticos, garantiram uma certa autonomia. Sob a mão de ferro do Marechal Tito, forma-se uma federação comunista e multiétnica, a Iugoslávia, incluindo seis repúblicas: Sérvia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Eslovênia, Macedônia e Montenegro.
A união durou até pouco depois da queda do Muro de Berlim. Em junho de 1991 o primeiro país a declarar independência da Iugoslávia foi a Eslovênia, obtida após um breve conflito armado contra o exército iugoslavo, o JNA, dominado pelos sérvios. Em seguida foi a vez da Croácia, o que mergulhou o país em uma guerra com as minorias sérvias apoiadas pelo JNA, que durou até 1995.
Sob a liderança de Alija Izetbegovic, a Bósnia também declarou-se independente, em março de 1992 – então o país tinha 43% de bósnios muçulmanos, 33% de população de origem sérvia, 17% de origem croata e 7% de outras nacionalidades. Em abril, os sérvios bósnios, com ajuda do exército da Ex-Iugoslávia, declararam o território sob seu controle como uma república sérvia dentro da Bósnia. Os bósnios croatas, com apoio da Croácia, fazem o mesmo, no lado oeste. Com isso, começa um sangrento conflito tripartite por território, com os bósnios muçulmanos do lado mais fraco, sem armamento pesado. Secretamente, os líderes sérvio (Slobodan Milosevic) e croata (Franjo Tudman) fazem um acordo para repartir o território da Bósnia-Herzegovina, nos moldes do que fizeram alemães e russos com a Polônia, na Segunda Guerra Mundial.
Ex-Iugoslávia e suas seis repúblicas
As maiores atrocidades foram vistas no leste da Bósnia, na fronteira com a Sérvia, atual República Srpska, onde paramilitares sérvios, com a ajuda do JNA, colocaram em prática uma violenta campanha de limpeza étnica, baseada em estupros sistemáticos, campos de concentração e extermínio de homens e meninos muçulmanos próximos da idade militar. Pressionada, a ONU envia 7.500 homens para estabelecer alguma ordem para os refugiados na Bósnia.
A esta altura, no alto Vale do Drina, as cidades de Foca e Visegrad já tinham sido “etnicamente limpas” de muçulmanos, restando aos capacetes azuis estabelecer “Safe Zones” (“Zonas de Segurança”) ao redor de Zepa, Gorazde e Srebrenica, para onde os sobreviventes muçulmanos haviam fugido. Dessas três, só Gorazde resistiu, em grande parte por conta das próprias forças bósnias.
Em julho de 1995, os capacetes azuis holandeses não fizeram mais do que assistir a tomada de Srebrenica pelas tropas sérvias comandadas pelo general sérvio Ratko Mladic. Os sérvios amontoaram mulheres e crianças em dezenas de ônibus, sem comida ou água, e as despacharam para território dominado pelas forças bósnias. Os homens e meninos que se renderam foram fuzilados.
Uma coluna de cerca de 10 mil homens e adolescentes entre 16 e 65 anos foi formada, com dez quilômetros de comprimento, marchando pela floresta na direção oeste, perseguidos e dizimados aos poucos pelos militares sérvios. Em uma semana, 8.373 pessoas, a maioria de muçulmanos, foram massacradas e enterradas em covas coletivas. Nos anos seguintes, os sérvios desenterraram os corpos e os transladaram para outros locais, para dificultar a identificação do crime de guerra. Srebrenica é a maior matança coletiva na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.
Em frente à catedral de Sarajevo, uma galeria mantém uma exposição sobre o genocídio. Além de fotografias de centenas de vítimas, uma detalhada apresentação multimídia documenta, dia a dia, o massacre. Ninguém me contou, eu vi, vídeo atrás de vídeo, de pessoas sendo fuziladas pelos militares sérvios.
A galeria com as fotos das vítimas de Srebrenica
No dia da tomada de Srebrenica, o general Mladic falou à televisão sérvia (está no YouTube, para quem quiser ver: http://www.youtube.com/watch?v=QfInjlNoT4Q). Com orgulho, ele comemora a integração da “Srebrenica sérvia” à Sérvia e acrescenta: “finalmente, chegou o tempo de trazer vingança aos turcos dessa região”. Preso em 2011, Mladic está sendo julgado pelo Tribunal Internacional de Haia, na Holanda. Em maio seu processo foi suspenso por tempo indeterminado – a expectativa no início do julgamento era que uma decisão fosse tomada até julho de 2016.
De volta ao centro de Sarajevo, reencontro meus anfitriões, Neema e Sead, um casal de muçulmanos nos seus sessenta e tantos anos, donos do hostel em que fiquei hospedado. Ali eu me senti quase em casa – na semana seguinte, com o estabelecimento todo reservado para uma excursão de estudantes croatas, eles me instalaram confortavelmente na biblioteca da família.
Sead, bem magro, de óculos, fuma sem parar. No meu último dia em Sarajevo, dirigindo a caminho do aeroporto, me contaria sua estória. Antes da guerra ele vivia em Ilidza, nas proximidades do túnel, de onde fugiu para o centro da cidade quando os primeiros bombardeios sérvios começaram.
“Eu era um homem rico em Ilidza”, conta Sead. “Eu tinha uma boa casa, com todas as amenidades. Tive que fugir para Sarajevo em 1992, porque estavam matando muçulmanos por lá...”
Símbolo da diversidade religiosa em Sarajevo, restaurante Dveri
Ele continua: “uma família sérvia ocupou minha casa por anos e me roubou completamente. Eu tinha uma ótima casa, a maior coleção de arte de Ilidza era minha. Eu tinha um piano, para a minha filha praticar, e eles roubaram isso também. Depois do cerco, minha casa estava destruída. Eu tenho papéis, documentos para provar o que fizeram comigo, mas o que eu posso fazer?”, diz, sorrindo.
Para chegar ao aeroporto é preciso passar pelo Cantão Sérvio, vizinho a Sarajevo. O carro para em um cruzamento e Sead aponta para o outro lado da rua. “É uma coisa maluca, daquele lado é República Srpska, aqui é Bósnia...”
O farol abre e seguimos adiante, entrando na área de maioria sérvia. Sead continua seu relato: “Isso tudo é um grande complexo que eles têm na cabeça deles, os sérvios. É sempre sobre uma vingança contra os otomanos, ou turcos... Mas isso foi há 500 anos!”, diz, rindo.
“Agora eu recuperei a casa e ela está com a minha ex-esposa. Ela tem cidadania americana, vive metade do ano por lá e a outra metade aqui..."
A guerra terminou há quase 18 anos, depois de duas semanas de bombardeios da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) convencerem os sérvios a negociar a paz. Em novembro de 1995 o Tratado de Dayton é assinado, pondo fim ao conflito e criando uma colcha de retalhos com dez governos diferentes, chamada Bósnia-Herzegovina. Há duas grandes “áreas de influência”, uma reúne bósnios e croatas e a outra os sérvios, a República Srpska. A presidência é obrigatoriamente rotativa, passando pelas mãos das três etnias, alternadamente.
Memorijal Kovaci, um dos muitos cemitérios muçulmanos de Sarajevo
Ao final, a Guerra da Bósnia deixou cerca de 100 mil mortos e 2 milhões de refugiados, dos quais 1,2 milhão imigraram e outros 800 mil foram deslocados de suas regiões de origem – o que representa mais da metade da população do país.
A Sarajevo que encontrei pós-cerco está em franca recuperação, apesar de toda a carga emocional da guerra, que ainda deve levar algumas gerações para ser aliviada. Mas, pelas ruas, as cicatrizes de balas nos prédios e as chamadas “rosas de Sarajevo”, as marcas que os morteiros sérvios deixaram no asfalto, ainda estão por todos os lados, assim como os cemitérios muçulmanos, com as lápides bem brancas brilhando ao sol.
É claro que inúmeros problemas ainda estão aparentes, incluindo uma taxa de desemprego por volta de 40%, mas a classificação da seleção para a Copa do Mundo no Brasil, de certa forma, estabelece um ideal a ser perseguido pelo país. Em abril de 2011 a Uefa (União das Associações de Futebol Europeias) tinha imposto sanções à Bósnia-Herzegovina, impedindo-a de disputar partidas oficiais enquanto não reformasse a estrutura política da sua própria associação de futebol. A situação era semelhante à inoperância presente no governo do país, com desentendimentos frequentes entre representantes bósnios, croatas e da República Srpska. Esses mesmos desentendimentos faziam com que muitos jogadores se negassem a jogar pela seleção.
"Mais que o Brasil", diz a revista Dani sobre a seleção
Como dizia Nelson Rodrigues, sem sorte você não chupa nem um Chicabon – e a sorte interveio. Em 2012, pela primeira vez desde a criação da liga de futebol da Bósnia-Herzegovina, o Borac Banja Luka, da República Srpska, conquistou o campeonato, garantindo vaga na fase classificatória da Uefa Champions League. Quando ficou claro que sem as mudanças na federação bósnia o time seria proibido pela Uefa de disputar a grande liga, um acordo foi firmado e as reformas aprovadas de imediato.
Dentro de campo, a reconciliação também caminhou. O passe para o primeiro gol contra Liechtenstein, no dia 11 de outubro, que aproximou a Bósnia da Copa, saiu dos pés de Zvjezdan Misimovi, o recordista em participações na seleção, de origem sérvia, para a conclusão de Edin Dzeko, etnicamente muçulmano, o artilheiro do time.
Na defesa, a zaga é formada por Emir Spahic, um muçulmano bósnio que cresceu na Croácia, ao lado de Boris Pandza, de origem croata. No gol, Asmir Begovic, um muçulmano bósnio, criado no Canadá. A recuperação da seleção fez até com que jogadores cobiçados por outras seleções nacionais optassem pela Bósnia, caso do meio-campista Izet Hajrovic, a revelação do time, com apenas 22 anos. Ele nasceu e cresceu na Suíça, onde joga no Grasshopper, mas filho de bósnios muçulmanos de Bijelo Polje, preferiu tomar parte na seleção bósnia.
Comemoração dos bósnios no BBI Center, pós-classificação para a Copa
A reconciliação futebolística deu frutos. A Bósnia-Herzegovina está no Mundial, enquanto Sérvia, Montenegro, Eslovênia e Macedônia estão fora. Das seis repúblicas da antiga Iugoslávia, só a Croácia ainda tem chance de ir à Copa, via repescagem europeia, no mata-mata contra a Islândia, que começa na próxima semana.
Ainda há tudo por fazer no país, mas é impossível não associar o ressurgimento da seleção bósnia com o caminho a seguir depois da guerra. É, como se diz lá em Floripa, “esse futebol faz coisa”...

*"Doces mentiras não ajudam, enquanto verdades amargas podem ter um poder curativo."