sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

NHS, como funciona o SUS britânico

Camas de hospital no Estádio Olímpico de Londres, em 2012
Julho de 2012, zona leste de Londres. Chega o grande dia da abertura das Olimpíadas, em uma cerimônia coreografada minuto a minuto, com o objetivo de celebrar o esporte, historia e cultura britânicos. Em dado momento, dezenas de camas de hospital adentram o gramado do Estádio Olímpico, cada uma com uma criança deitada, empurradas por enfermeiras vestidas de azul. Logo em seguida, no clima de musical, médicos trajados de branco dançam em volta dos leitos, em um ato que tomou quase quatro minutos de toda a cerimônia. No centro disso tudo, uma sequência de luzes gradualmente começa a se acender, formando uma gigantesca sigla bem no meio do campo: NHS (National Health Service).
Os britânicos têm um imenso orgulho do seu serviço universal de saúde, que presta atendimento gratuito e universal a todos os cidadãos, custeado exclusivamente pelos impostos. Criado em 1948, durante a estruturação do Welfare State (o Estado do Bem-estar Social), o sistema é centralizado e administrado integralmente pelo governo, deixando pouco espaço aos serviços privados nas terras da rainha. Se fosse pensado algo parecido para a cerimônia de abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro de 2016, com a glorificação do SUS (Sistema Único de Saúde), qual seria a reação da plateia? A resposta dá a medida da diferença entre os dois modelos de saúde pública.
O NHS impressiona só pelos números. O serviço é o quinto maior empregador do planeta, com 1,7 milhão de funcionários – atrás do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, do Exército chinês, da rede varejista Walmart e da cadeia de lanchonetes McDonald’s. São 146 mil médicos e 275 mil profissionais de enfermagem. Só para lembrar, o Reino Unido tem uma população de 63 milhões de pessoas, enquanto o Brasil já vai pelos 200 milhões...
Um sistema desse porte não pode funcionar sem investimento – e pesado. O governo britânico gasta em torno de 100 bilhões de pounds (R$ 380 bilhões) por ano com o NHS, o equivalente a 6,25% do PIB (Produto Interno Bruto) do país em 2012. Enquanto isso, no Brasil, o SUS recebe 3,8% do PIB nacional. A questão central no funcionamento do serviço por aqui, porém, não está apenas no dinheiro.
A homenagem ao NHS na abertura da Olimpíada
Uma organização, para dizer o mínimo, diferente da nossa, está no centro do funcionamento do NHS – é um sistema que tenho dúvidas se agradaria aos médicos brasileiros. Para começar, o National Health Service (e em última instância, o Estado) é o principal empregador dos profissionais de saúde na Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte. Médicos e enfermeiras podem ter um segundo emprego e prestar serviços particulares, mas poucos conseguem viver só disso.
Outra característica única do NHS é a forma como o acesso aos serviços médicos é administrado. Se você precisa de algum atendimento, tudo começa com uma visita a um GP (General Practitioner), o chamado clínico geral no Brasil. Esse profissional vai examiná-lo e, se julgar necessário, encaminhar o caso a um especialista. Mesmo que você tenha um plano de saúde privado (sim, existem aqui também), não é permitido a um especialista agendar uma consulta solicitada diretamente pelo paciente – é preciso antes passar pelo GP.
Os GPs funcionam como os moderadores do sistema, filtrando e direcionando os atendimentos. Essa centralização é a chave para o serviço funcionar, mantendo os custos sob controle – pelo menos até aqui.
Como qualquer serviço de saúde no mundo, o NHS também está sob uma pressão crescente. O envelhecimento da população e o avanço da tecnologia médica vêm aumentando a demanda e ampliando os custos – e em um período em que há menos recursos disponíveis, dada a crise econômica que se abate sobre a Europa desde 2008.
Parece um shopping center, mas é um hospital público, o Royal Derby
A estimativa no Reino Unido é de que dois terços dos leitos hospitalares são ocupados por pessoas com mais de 65 anos. Hoje mais pessoas conseguem sobreviver a quadros de câncer, derrames e ataques cardíacos, por exemplo, mas muitos desses ficam com sequelas que requerem tratamentos caros e cuidados intensivos.
E há ainda os chamados “males do estilo de vida”: um em cada quatro britânicos é obeso, número que dobrou nos últimos 40 anos e alimenta os casos de diabetes, câncer e doenças coronárias – o que acarreta ao NHS um gasto estimado de 4 bilhões de pounds (R$ 15,2 bilhões) anuais. Ao lado da obesidade, complicações de saúde derivadas do tabagismo e do abuso do álcool abocanham outros 3 bilhões de pounds (R$ 11,4 bilhões) cada por ano.
Todos esses fatores se juntam para formar a “tempestade perfeita” no inverno, quando o volume de atendimentos nos hospitais aumenta consideravelmente em decorrência de doenças relacionadas ao frio, o que já levanta previsões de que o próximo, que começa no sábado, pode ser o pior de todos os tempos. No inverno passado o NHS simplesmente não conseguiu cumprir as metas mínimas do tempo em que um paciente deve receber atendimento entre janeiro e março.
O governo já colocou em prática um processo de reforma do NHS, com medidas que vão do fechamento de hospitais menores a cortes de pessoal – a meta é que o sistema economize 20 bilhões de pounds (R$ 76 bilhões) até 2015. Mas há outras medidas, que aos olhos dos médicos brasileiros podem parecer vindas diretamente de Caracas...
O governo quer o NHS funcionando de segunda a domingo, e já planeja obrigar os médicos a trabalhar durante os finais de semana, dando consultas e realizando exames, não só em regime de plantão. Atualmente há uma cláusula contratual trabalhista que proíbe o expediente, mas isso não vem sendo considerado um problema. “Há uma cláusula que diz que as organizações não podem forçar um médico a trabalhar no fim de semana – eu acho que podemos ter essa cláusula removida”, afirmou à BBC o diretor médico do NHS, Bruce Keogh.
Considerando que o serviço público é o principal pagador e empregador dos médicos no Reino Unido, não dá nem para mudar de emprego – pelo menos não sem mudar de país... A iniciativa não é puro ato de sadismo, o governo tem em mãos uma pesquisa mostrando que 4.400 pessoas morrem por ano como resultado de uma cobertura inadequada dos quadros profissionais hospitalares durante os finais de semana.
Royal Derby Hospital por dentro
Um levantamento publicado pelo jornal The Guardian nesta semana oferece outra medida de comparação entre as classes médicas do Reino Unido e do Brasil. Uma pesquisa mostrou que médico foi a quinta profissão mais bem paga por aqui (excluídas as categorias de atletas profissionais e o showbiz) neste ano.
A média salarial de um médico britânico foi de 63,7 mil pounds (R$ 242 mil) por ano em 2013, o equivalente a 5,3 mil pounds (R$ 20,2 mil) mensais. A título de referência, o salário mínimo na Inglaterra gira em torno de 12 mil pounds (R$ 45,6 mil) anuais, ou seja, 1 mil pounds (R$ 3,8 mil) por mês.
No polêmico programa Mais Médicos do governo petista, a bolsa para os médicos necessários no interior do país é de R$ 10 mil por mês, além de auxílios moradia, transporte e alimentação, custeados pelo município onde vão atuar. Esses valores não se mostraram muito atrativos aos profissionais brasileiros, o que abriu a portas aos estrangeiros.
Dizem que perguntar não ofende. Será que há muitos médicos no Brasil dispostos a se mudar para a Inglaterra, para ganhar R$ 20 mil mensais, trabalhar aos finais de semana e ter o governo como único empregador? Ah, esse salário é bruto, antes do imposto de renda, do qual aqui é difícil escapar...

Veja abaixo o trecho da cerimônia de abertura da Olimpíada de Londres 2012 com a homenagem ao NHS: 
http://vimeo.com/47528368

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