terça-feira, 10 de junho de 2014

De sapatos de dança em neves siberianas

Art Nouveau em Riga, capital da Letônia
"I will stay in my place, you stay in yours”*
Karlis Ulmanis, presidente da Letônia, em discurso pelo rádio em 17 de junho de 1940, tentando acalmar a população após a chegada dos tanques soviéticos. Quatro dias depois ele seria exonerado pelos russos e enviado a Stavropol, no Cáucaso, e morreria em uma prisão no Turcomenistão dois anos depois.

No dia 12 de junho de 1941, Janis Dreifelds recebeu um aviso do seu inquilino, um homem que trabalhava na estação de trem de Jurmala, uma cidade cerca de 20 quilômetros a oeste da capital da Letônia, Riga, onde a família Dreifelds vivia em uma pequena fazenda. O ferroviário tinha visto dezenas de vagões de transporte de gado sendo reformados para transportar pessoas, com camas de madeira adaptadas às paredes.
Janis não prestou atenção aos avisos, apenas para ser acordado no meio da madrugada com batidas na porta, dois dias depois, por cinco membros da Cheka, a polícia secreta soviética na Letônia. Depois de revistar a casa os chekistas ordenaram que ele, a mulher Emilija e a filha Ligita, de 14 anos, arrumassem rapidamente suas coisas para seguir com eles. Sem saber o que levar ou para onde iam, mal se prepararam. Ligita embarcou para a Sibéria em seus sapatos de dança, com os quais passaria o primeiro inverno siberiano.
Bálticos, entre Hitler e Stalin, no Museu da Ocupação da Letônia
A cena é descrita com perfeição por Sandra Kalnietes, filha de Ligita, no livro With Dance Shoes in Siberian Snoes (Com Sapatos de Dança em Neves Siberianas), que nasceria onze anos depois, em uma vila da Sibéria, em um dos muitos campos de colonização forçada do chamado “Arquipélago Gulag”, a teia de trabalhos forçados soviética. Sandra conseguiria retornar à Letônia em 1957, com a mãe e o pai, Aivars, e se tornaria uma das ativistas na independência do país, chegando depois ao posto de ministra das Relações Exteriores, comandando a negociação da entrada do pequeno país báltico na Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), a aliança militar do Ocidente.
A deportação da famíia Dreifelds, em 1941, fez parte da primeira leva de expurgos realizados pelos soviéticos nos três países bálticos, Lituânia, Letônia e Estônia, quando, entre 14 e 17 de junho de 1941, 60 mil pessoas, incluindo mulheres, idosos e crianças, foram enviados à força para o exílio siberiano, sem maiores explicações. Emilja e Ligita, por exemplo, enfrentaram uma viagem que levou 27 dias, primeiro de trem, depois de barco pelo rio Ob, até chegar ao kolkhoz (fazenda coletiva) Bolshoy Chigas, a 6.000 quilômetros da Letônia. Ali elas teriam que viver, ou melhor, sobreviver...
Parasha, na réplica da cabana do Gulag siberiano
Ao chegar a Riga, nota-se claramente a diferença em relação à Lituânia. Enquanto no vizinho do sul a população é homogênea, na Letônia há uma razoável proporção de russos, trazidos para o país durante a dominação soviética - os números de 2009 davam conta de que quase 30% dos habitantes são de origem russa. Ouve-se russo sendo falado o tempo todo e a capital tem outra identidade em relação a Vilnius, seu par na Lituânia, com quarteirões inteiros de prédios ao estilo Art Noveau. Riga também é maior, são 700 mil habitantes, e encontrei um povo mais aberto do que os lituanos.
Visito o Museu da Ocupação da Letônia e lá encontro a estória das ocupações contada em detalhes. Depois do Tratado Ribbentrop-Molotov de 1939, que dividiu a Europa Oriental em áreas de influência nazista e soviética (veja o post "O horror, o horror..."), os três países bálticos foram anexados à União Soviética como repúblicas em 1940, em seguida ocorreram as primeiras deportações, na tentativa de “sovietizar” a região. Os alemães atacam em 1941 e tomam os três bálticos para si – depois do “Ano do Terror” soviético, as tropas nazistas foram recebidas como libertadores no Báltico. Milhares de lituanos, letões e estonianos chegaram a lutar ao lado dos alemães.
O museu tem uma réplica de como eram as cabanas de madeira onde tinham que viver os deportados para a Sibéria. A estrutura conta com uma série de beliches de madeira, cobertos de palha, onde se espremiam as pessoas, tão apertadas que para se virar era preciso organizar o movimento em conjunto. Quem levantava para ir ao banheiro – que na verdade era a um barril de petróleo cortado ao meio chamado de parasha, no canto da cabana – perdia o lugar e era obrigado a dormir o resto da noite no chão. Assim, a maioria se aliviava ali mesmo, nas calças.
Antiga prisão da KGB, em Vilnius
A parasha é um capítulo à parte da vida no Gulag, presente nos campos de trabalhos forçados, prisões e vagões de transporte de prisioneiros. Com ironia, também era chamada de Red Moscow, nome de um perfume produzido na Rússia. A parasha aparece nas memórias de muitos prisioneiros que sobreviveram ao período stalinista, que citam o terrível cheiro que vinha do barril descoberto como uma marca inesquecível, presente em todos os lugares, nas celas, cabanas, nas roupas e até na comida...
Nem todos os que escaparam às deportações de 1941 e permaneceram nos três países bálticos tiveram muito melhor sorte. Em Vilnius, na Lituânia, a antiga sede da KGB ou Cheka, foi preservada e transformada no Museu do Genocídio. Ali, no imponente edifício do século XIX que hoje fica em frente a um belo parque onde famílias aproveitam a primavera europeia, ficava a mais temida prisão do país.
No porão do prédio, no início de 1947, dois anos após o fim da Segunda Guerra Mundial e início da segunda ocupação soviética na Lituânia, havia 57 celas e duas solitárias, para onde eram destinados os “inimigos da classe operária”. Ao chegar, o preso era colocado em uma cela de 1,5 metro quadrado, onde permanecia de pé durante horas, até que seus documentos fossem checados. Dali era encaminhado a uma segunda cela, onde era despido – gravatas, cintos, sapatos e até botões de roupas eram retirados, para evitar marcas nas paredes ou tentativas de comunicação sonora, via código Morse.
Porão das celas na prisão da KGB, em Vilnius
Em seguida o detido era levado à sala de identificação, onde suas fotos e digitais eram colhidas. Ao lado dessa havia outra, a sala da guarda, em que se vê uma balança, usada para pesar as entregas de comidas de familiares aos presos – não se podia exceder o limite permitido. A questão era que, se dependessem apenas da ração distribuída na prisão, dificilmente os detidos conseguiriam sobreviver por muito tempo.
Eram três refeições ao dia. O café da manhã proporcionava 300 gramas de pão duro e um copo de água quente, chamado de chá. O almoço variava entre uma sopa aguada com cabeças de peixe, folhas de repolho e de outros vegetais ou um mingau de aveia. O jantar oferecia peixe salgado, mais um copo de água quente (o chá) e um pedaço de pão.
Os presos eram mantidos em 15 na mesma cela, sem camas ou armários – dormiam no chão, de concreto. Durante o dia eram proibidos de dormir ou encostar-se às paredes (deviam respeitar uma distância de 15 centímetros delas) e a luz permanecia acesa dia e noite. A umidade era tanta no porão da KGB que as paredes estavam sempre cobertas de gotas de condensação, as roupas viviam úmidas, os sapatos mofavam.
As solitárias eram destinadas aos presos que infringissem alguma regra da prisão, como tentar se comunicar com um companheiro de outra cela, batucando mensagens em código Morse nas paredes, por exemplo. Os infratores eram jogados apenas de cuecas na pequena cela sem aquecimento, onde recebiam uma ração diária de 300 gramas de pão e meio litro de água.
Sala de identificação, fotos e digitais
Uma das celas mais sinistras da prisão era a usada para fazer os presos “confessar”. À prova de som e com as paredes cobertas por tecido acolchoado, tinha cordas para atar os que não conseguiam mais ficar em pé depois das torturas aplicadas pelos agentes. As sessões começavam no meio da noite, para pegar o prisioneiro desprevenido. Ele era acordado e levado para a cela do terror, em sessões que alternavam dias e se estendiam por semanas - às vezes meses.
Mas havia outras formas de tortura. Em 1996, já no período pós-ocupação soviética, quando foi realizada uma reforma no sistema de aquecimento do edifício, os operários encontraram duas piscinas de concreto encobertas pelo piso. Eram duas celas paralelas, construídas em 1945, para onde também se levava os presos que deviam “confessar”. Só de cuecas, eles eram colocados sobre um estreito pedestal redondo de metal instalado no meio de cada piscina, cheia de água gelada, onde deveriam permanecer até segunda ordem. Se o detido dormisse ou desfalecesse, caía na água gelada – e, agora tremendo de frio, seguiria lutando para se manter consciente e equilibrado no poleiro. O tempo médio de permanência na “cela da piscina” era de cinco dias e cinco noites.
O lavatório da prisão era uma sala com quatro ou cinco chuveiros alinhados, para onde os presos de uma mesma cela eram trazidos, juntos, uma ou duas vezes por mês. Os guardas controlavam o fluxo do banho e se divertiam liberando alternadamente água gelada ou fervente, observando a reação dos detentos.
Na parte externa da prisão havia um pátio, cercado por muros de três metros de altura e arame farpado no topo, para onde os presos eram levados para o exercício, de dez a quinze minutos diários. Eles deviam permanecer com os braços atrás das costas, caminhando em um círculo, em silêncio absoluto, vigiados de perto pelos guardas. Mais tarde, em 1969, foram construídas cinco celas desenhadas para a “caminhada” dos detentos. Essas se assemelham a uma gaiola, com um banquinho no centro e um gradil no teto. Em volta dele todos deviam andar, em silêncio, observados pelos vigias que observavam de cima.
"Cela da piscina", com o poleiro onde o preso devia se equilibrar 
Em outra parte do porão, chega-se talvez à mais obscura de todas a salas, a cela das execuções. Não se sabe quantas pessoas foram mortas ali, mas os historiadores lituanos estimam em 20 mil pessoas as vítimas entre 1944 e 1953, o período mais intenso da resistência contra a dominação soviética. Um vídeo (veja o link abaixo) ilustra o procedimento padrão usado na sala, desde a chegada do prisioneiro, uma breve leitura do seu “caso” pelo oficial de plantão e seu encaminhamento ao cômodo contíguo, onde ele era rapidamente baleado na nuca e o corpo despachado para a área externa da prisão, por uma canaleta especialmente desenvolvida para o fim. E em seguida vinha outro, e outro...
Para a população báltica que escapou da deportação e conseguiu evitar a prisão chekista, a vida também não foi fácil durante a dominação soviética. Transformadas em repúblicas da URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), Lituânia, Letônia e Estônia foram adaptadas à economia socialista. Industrialização forçada e coletivização da agricultura foram só dois elementos da nova vida socialista, seguidos dos cartões de racionamento de comida e limitação de movimento – não só para o exterior, mas dentro dos próprios países (só podia viver nas cidades quem possuía documentos atestando tal direito).
Realismo socialista, em tela de Valdemar Vali, KUMU
A vida sob o “Grande Camarada Stalin” é retratada como brilhante na arte oficial (e única) do período, seja em pinturas, seja nos cartazes de propaganda. É o chamado Realismo Socialista Stalinista, em que operários e camponeses aparecem sempre em posição altaneira, sorridentes e satisfeitos. O estilo pode ser visto largamente no KUMU, o Museu de Arte da Estônia, em Tallinn. Nos jornais, as metas dos planos quinquenais eram cumpridas com louvor, mas na realidade faltava comida e bens de consumo simples, como sabão e sapatos.
A capital estoniana é a menor dos três bálticos (430 mil habitantes) e a que tem o centro medieval mais preservado. País mais ao norte da região, a Estônia é uma mistura de Europa Oriental e Escandinávia, nas comidas e até na língua, que tem alguma proximidade com o finlandês – que por si só não tem afinidade com nenhuma outra língua europeia.
Os bálticos ainda enfrentariam uma segunda grande leva de deportações para a Sibéria. Entre 25 e 29 de março de 1949, em uma operação que os soviéticos batizaram de Coastal Surf (algo como Onda na Costa), 95 mil lituanos, letões e estonianos foram deslocados para o Gulag siberiano. Nessa onda, a mãe de Sandra Kalniete (autora do livro que citei no início do post), Ligita, foi novamente carregada à força para os confins da Rússia. Ela tinha sido autorizada a retornar à Letônia no ano anterior, mas teria de enfrentar o terror da deportação pela segunda vez, apenas para chegar a Kolpachevo, seu destino final, e receber a notícia de que sua mãe, Emilija, tinha morrido no mês anterior...
Centro medieval de Tallinn, capital da Estônia
A independência dos países bálticos viria só nos anos 90, depois da liberalização do regime soviético implantada por Mikhail Gorbachev, a partir de 1985. Em 1987, um grupo de dissidentes da Letônia batizado de Helsinki-86 organizou o primeiro ato pacífico pela autonomia, depositando flores na base do Freedom Monument, em Riga, que marca a primeira independência do país, em 1918.
Também a partir de 1987 começa a chamada Singing Revolution (Revolução Cantante), quando um ciclo de manifestações espontâneas chegou a reunir cerca de 300 mil pessoas em Tallinn, com bandeiras da Estônia, para cantar hinos e canções nacionalistas proibidas sob o regime soviético (há também um link para um vídeo da cantoria abaixo, do Museu das Ocupações da Estônia). O fenômeno se espalha também para os dois países vizinhos.
Em 1989, no aniversário de 50 anos do Tratado Ribbentrop-Molotov, que resultou na anexação de Lituânia, Letônia e Estônia pela URSS, uma corrente humana se estendeu por 600 quilômetros, ligando as três capitais, Vilnius, Riga e Tallinn. A independência só se concretizaria depois de 1991, após a tentativa de golpe militar contra Gorbachev em agosto, que resultou na desintegração da União Soviética.
Depois de se verem livres dos russos, as três repúblicas rapidamente voltaram-se para o Ocidente, abraçando a economia de mercado e passando a integrar tanto a União Europeia quando a Otan a partir de 2004. Estonia e Letônia já aderiram ao euro, enquanto a Lithuania mantém sua própria moeda, a lita.
Que o futuro seja mais leve que o passado para os bálticos...

Freedom Monument, em Riga, onde começou a independência da Letônia
*“Eu permanecerei no meu lugar, vocês permaneçam no de vocês.”

Os links para os dois vídeos citados no post seguem abaixo:

Prisão da KGB
http://youtu.be/ArKe3BXyr7M

Singing Revolution
http://youtu.be/tsO6tMLGeaM

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