sexta-feira, 28 de março de 2014

O ministro, o religioso, alguns curdos e uma ilha

Bandeira turca no Grande Bazaar, em Istambul
Imagine um país com o mesmo grupo político no poder há dez anos, cujo principal governante é acusado de corrupção, incluindo gravações telefônicas que implicariam ele e o filho em movimentações de dinheiro ilícito. Acrescente à mistura a fé muçulmana, separatistas curdos, um grupo ideológico islâmico com um líder auto exilado nos Estados Unidos aparelhando boa parte do organismo estatal e uma antiga questão étnica na terceira maior ilha do Mediterrâneo, que emperra a integração à UE (União Europeia). Pronto, você terá a Turquia.
Comecemos pelo assunto com o qual estamos mais familiarizados: a corrupção. O recente escândalo turco explodiu quando foram postadas gravações no YouTube, em fevereiro, em que o primeiro-ministro Tayyip Erdogan – líder do AK Parti (Partido da Justiça e Desenvolvimento), no poder desde 2003 - supostamente liga para seu filho, Bilal. Nas chamadas, que teriam sido realizadas em 17 e 18 de dezembro de 2013, ele alerta que uma enorme operação anticorrupção foi desencadeada pela polícia, com mandados para revistar as residências de 18 pessoas, incluindo três filhos de ex-ministros do seu governo. Em seguida, ele orienta o filho a buscar ajuda do irmão e do tio, para “dissolver” um volume de dinheiro presente em alguns imóveis. O valor não é citado, mas na quarta ligação, em que Erdogan perguntaria a Bilal se o assunto foi resolvido, o filho o informa ainda haver 30 milhões de euros que não tinham sido “dissolvidos”.
Comércio de rua no centro de Istambul
Nem Erdogan nem Bilal jamais negaram que as vozes nas gravações fossem deles, mas alegam que as conversas tiveram os diálogos editados e montados. O primeiro-ministro acusa um ex-aliado político de realizar os grampos, o escritor, ex-imã e estudioso islâmico Fethullah Gülen, que vive em auto exílio na Pensilvânia (Estados Unidos).
Gülen, de 74 anos, é o principal líder e fundador de um movimento muçulmano chamado Hizmet (Serviço, em turco), criado nos anos 70, mas que ganhou força a partir do fim da União Soviética, em 1991, quando estabeleceu sua base no Azerbaijão. O Hizmet não se enquadra nas categorias usuais de seitas islâmicas. Seu foco não está em resgatar uma sociedade tradicional e reviver uma “idade de ouro” do Islã, mas no futuro.
A proposta de Güllen é ambiciosa: educar uma “geração de ouro” de muçulmanos para mudar o mundo. Para isso, investe em educação – estimativas apontam que eles têm entre 300 e 1.000 escolas na Turquia e presença em 150 países. O movimento não tem uma estrutura formal conhecida, mas a representatividade entre os chamados formadores de opinião o coloca como um poder oculto no interior do Estado turco.
O assunto teria sido discutido em uma reunião do MGK (Conselho de Segurança Nacional), no mês passado. De acordo com uma fonte presente ao encontro e não identificada, citada pelo colunista do jornal turco Daily News, Murat Yetkin, os simpatizantes de Güllen ocupariam um terço dos postos na polícia e no judiciário turco, participação que seria ainda mais elevada quando considerados cargos de chefia (incluindo o Conselho de Estado, tribunais superiores etc), quando alcançaria dois terços. Esses seriam os desencadeadores das investigações anticorrupção e dos grampos, segundo os partidários de Erdogan. O governo inclusive já colocou em andamento uma série de expurgos no aparato de polícia e Justiça para contrabalancear as forças.
Istiklal Caddesi, a rua mais movimentada do Beyoglu, em Istambul
Ainda segundo o colunista, o grampo que revelou as conversas entre Erdogan e o filho é um trabalho interno. Seguidores de Güllen que ocupam posições de especialistas na Tübitak, a agência turca de desenvolvimento científico e tecnológico, teriam criado um software para capturar o conteúdo de todas as 14 mil linhas encriptadas usadas pelo governo nos últimos dois anos – desviando os dados das chamadas para uma conta de e-mail particular.
O líder do Hizmet e Erdogan foram próximos até pouco tempo atrás e o apoio de Güllen teve peso determinante na última reeleição do primeiro-ministro, em 2011. Os desentendimentos, parece, começaram um ano depois, quando Erdogan deu início a uma aproximação com membros do ilegal PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), através da agência de inteligência turca, o MIT (Organização de Inteligência Nacional), com o objetivo de entabular negociações de paz. Aqui chegamos ao terceiro ingrediente-chave do caldeirão turco: a minoria separatista.
O PKK é um dos principais representantes dos curdos na Turquia, um povo que soma em torno de 30 milhões de pessoas espalhadas pelo leste do país (além do nordeste da Síria e a área de fronteira entre o norte do Iraque e oeste do Irã) e que busca formar uma nação soberana na região. Só em território turco são cerca de 11 milhões, o equivalente a algo em torno de 15% da população. Criado em 1978, com uma plataforma que misturava nacionalismo curdo e socialismo revolucionário, o PKK promove atentados terroristas desde 1984. O último grande ataque aconteceu em outubro de 2010, quando uma bomba foi explodida por um suicida ao lado de um estacionamento da polícia, na Praça Taksim, bem no centro de Istambul, ferindo 22 policiais e dez outras pessoas que passavam pelo local.
A tentativa de entendimento de Erdogan com os curdos é apontada como o grande fator de desentendimento que o afastou de Güllen e levou o religioso à oposição. Solucionar a questão curda, aliás, é um dos nós que o governo turco precisa desatar no caminho sonhado de um dia integrar a União Europeia – mas não é o único. Ao lado desse, há ainda outro entrave geopolítico histórico a separar a Turquia da Europa, enraizado em uma ilha da sua costa oriental. Vamos à quarta variável do problema: o Chipre.
Praça Taksim, local do último grande atentado terrorista curdo, em 2010
A ilha é a terceira maior e mais populosa do Mediterrâneo e país-membro da União Europeia desde 2004. O conflito envolvendo os turcos, porém, é bem mais antigo. O território era dominado pelos venezianos até 1570, quando uma invasão otomana massacrou parte das populações armênia e grega, assumindo o controle. Os turcos perdem o controle da ilha para os britânicos como resultado de uma guerra com a Rússia, três séculos depois - o Chipre alcançaria independência, mesmo, só em 1960.
Em 1974 um golpe militar tenta tomar o poder e unir o território à Grécia, ao que a Turquia responde com uma invasão militar e desembarca 30 mil solados no norte da ilha. Mesmo depois do acordo de paz assinado em Genebra (Suíça), a divisão norte-sul permaneceu, com cerca de 150 mil turcos vivendo na porção norte, deslocando parte da população grega para a parte sul e desrespeitando resoluções da ONU (Organização das Nações Unidas).
O desejo turco de fazer parte da UE vem sendo condicionado à solução da questão, não só pelos próprios cipriotas, parte do bloco, mas também pela Grécia, país de origem étnica da população em conflito com os turcos na ilha. A favor da Turquia, porém, alinha-se a profunda crise econômica atravessada pelo Chipre, que recebeu uma ajuda de 10 bilhões de euros em março do ano passado do chamado Eurogrupo – formado por Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional -, para evitar a moratória da dívida pública.
O governo cipriota foi obrigado a fechar o segundo maior banco do país (o Laiki Bank) e impor limite de saques em outras instituições financeiras. Se há um lado positivo na falência, a bancarrota econômica aumentou o interesse do Chipre em solucionar o conflito histórico com o vizinho, de olho no capital e investimentos turcos que podem cruzar o Mediterrâneo em seguida ao acordo.
Gatos de Istambul, com a Hagia Sophia ao fundo
Com tudo isso dito, pode-se imaginar a Turquia em um estado de confusão generalizada – mas não é o que se vê nas ruas de Istambul. À parte o boom da construção civil que revolve os quatro cantos da maior cidade do país (e de onde os opositores de Erdogan identificam a principal fonte do alegado enriquecimento ilícito do político) e do inacreditável volume de gatos pelas ruas (nunca vi tantos em um só lugar), a metrópole parece levar uma vida normal – para o padrão do “mundo turco”, claro.
Incluindo os dois lados do Estreito de Bósforo, Istambul concentra 14 milhões de habitantes, não muito distante da população da Grande São Paulo, e a confusão é fator natural no dia-a-dia: trânsito pesado, buzinas em excesso, alguma poluição atmosférica, taxistas com inclinação homicida e um fluxo impressionante de gente para cima e para baixo.
Considerando a conjuntura política e geopolítica da Turquia, porém, era de se esperar algo pior. O que chama a atenção é a forte presença policial nas ruas do centro, em especial na Praça Taksim, local do último atentado terrorista. O caldeirão turco segue em fervura controlada – mas talvez não por muito tempo. A partir de domingo (30 de março) o país entrará em um ciclo de disputas eleitorais locais, desembocando nas eleições gerais parlamentares de 2015.
No Brasil tendemos a achar nossa situação política complicada, radicalizada e irreconciliável, talvez porque poucos têm o hábito de observar com mais atenção o que se passa ao redor do mundo. A conjuntura turca é um enredo de thriller político pronto para ser filmado...

quarta-feira, 19 de março de 2014

O relações públicas do Islã

Minaretes da Süleymaniye Mosque, de onde vem o chamado à oração
“Reconte no Livro como Maria se retirou das pessoas para um lugar ao leste e se manteve em isolamento deles. Nós mandamos a ela Nosso anjo, que se apresentou a ela como um homem adulto. Quando ela o viu, ela disse, ‘Eu busco refúgio de você no Deus misericordioso; (não chegue perto) se você teme o Senhor.’ ‘Eu sou apenas o mensageiro do seu Senhor’, ele respondeu. ‘Eu devo conceder a você o presente de um filho dotado de pureza.’ Ela disse, ‘Como posso eu ter um filho quando nenhum homem me tocou; e eu nunca fui incasta?’ (O anjo) respondeu, ‘Assim deve ser; seu Senhor diz, ‘Isso é fácil para Mim; e Nós devemos fazer dele um sinal para as pessoas e uma bênção, vinda de Nós. Isso foi decretado.’”
Maria, Alcorão, 19:23 (traduzido da versão em inglês)


Chego à Sultanahmet Mosque por volta das quatro de uma sexta-feira, logo após o término da prece do meio da tarde. Mais conhecida como Mesquita Azul por causa dos azulejos no seu interior, o templo é talvez o mais popular de Istambul e um dos principais destinos turísticos da Turquia, embora siga cumprindo normalmente o papel de casa de oração, e uma dos maiores do país. Já visitei outras mesquitas e conheço o procedimento: para os homens não muçulmanos, tirar os sapatos e estar decentemente vestido (nada de bermudas ou regatas). Ali, porém, há ainda uma entrada separada destinada a quem não veio para rezar.
Interior da Mesquita Azul
Os muçulmanos são convocados a render suas preces a Alá cinco vezes ao dia, quando soa do alto dos minaretes – uma ou mais torres que estão no ponto mais elevado do templo - o chamado do muezim para a oração. Não à toa, o minarete costuma ser mais alto do que os edifícios ao seu redor, para facilitar a difusão do chamado. O cântico ritmado se espalha pela cidade seis vezes, todos os dias: duas horas antes de o sol nascer, ao amanhecer, ao meio-dia, à tarde, ao pôr-do-sol e logo depois que a última luz do dia desaparece. Os horários não são fixos, variam ao longo do ano, de acordo com o movimento do sol.
Dentro da Mesquita Azul, com suas paredes cobertas pelos azulejos famosos e o chão todo acarpetado, um cercado de madeira separa os fiéis dos turistas e suas máquinas fotográficas, para preservar um pouco de ordem. Também por isso não são permitidas visitas durante os horários de oração. No canto esquerdo do cercado, porém, um sinal iluminado em letras garrafais, em inglês, chama minha atenção: Islamic Information Center Come In (Centro de Informação Islâmico Entre).
Eu me aproximo e me deparo com um convite, também em inglês, que traduzo: “Caro visitante, Bem vindo à Mesquita Sultanahmet. Você está em um dos maiores locais de oração do Islã, que é a segunda maior religião da humanidade. Portanto, nós consideramos nosso dever recebê-lo, se você quiser conhecer o Islã (...) Nós respeitamos opiniões diferentes. Nossos dois princípios do Alcorão, o Livro Sagrado do Islã, são ‘Não há obrigatoriedade em religião’ e ‘Acima de todo possuidor de conhecimento há um Conhecedor’. Assim, se você é um visitante Cristão, Judeu, Hindu, Ateu, Agnóstico, ou membro de outra religião, entre só para dizer olá, tenha uma conversa amigável conosco ou pegue algumas brochuras. Você também pode fazer perguntas, básicas ou avançadas. Tudo de graça. E você terá um amigo na Turquia. Obrigado por visitar.”
Islamic Information Center: "Come in"
Ultrapasso o cercado, ainda com meus sapatos nas mãos, abro a porta e entro. Sou recebido com um olhar amistoso por um homem barbado, vestindo uma túnica branca. Ele me convida a sentar e pergunta de onde venho, em inglês, respondendo com um sorriso algo surpreso ao ouvir Brasil.
Com planos de visitar uma Cisterna bizantina do século VI ainda naquele dia, peço desculpas e pergunto se estarão abertos no domingo. “Isso é uma mesquita, está aberta todos os dias”, responde, ainda sorrindo. Explico que na verdade quero saber sobre o Centro de Informação. Ouço que sim, e em seguida ele se apressa a me entregar um exemplar de bolso do Alcorão, um Guia para entender o Islã, um manual sobre o ritual de orações e mais dois ou três folhetos, tudo em inglês. Agradeço e prometo voltar no domingo.
Quando retorno, dois dias depois, pouco depois das duas da tarde, a Mesquita Azul está ainda mais cheia. Ainda do lado de fora, uma fila se forma em frente à porta dos visitantes, onde turistas se encolhem ao longo do muro lateral, na tentativa de escapar dos primeiros pingos da chuva que vem da Ásia, cruzando o Bósforo. Quando consigo entrar, vou direto à sala na lateral do cercado. Ao passar pela porta, encontro o sacerdote em meio a uma oração, rodeado por quatro homens. Ele levanta os olhos e faz um aceno para mim com a cabeça, sem interromper a reza, que entendo como um convite para entrar e sentar. A prece acaba, duas pessoas se despedem e saem – e eu me aproximo.
O imã da Mesquita Azul (esq.) em ação, dentro da sua salinha
Antes que eu possa me explicar, o imã Ishak diz se lembrar de mim, o brasileiro que esteve ali na sexta-feira e prometeu voltar no domingo. Começo perguntando sobre o centro de boas vindas, algo que eu, pelo menos, nunca vi em igreja cristã alguma. A explicação que se segue é quase poética. Ele diz que a maior importância daquela salinha é dar a chance aos visitantes de entender um pouco do Islã, para ir além de simplesmente admirar a arquitetura da mesquita. “Tirar os sapatos, entrar e só olhar os azulejos é como estar diante de um belo prato de comida, sentir o seu cheiro e não prová-lo”, compara.
Nesse ponto a conversa é interrompida pela entrada de um homem de traços ocidentais, descalço, com uma vasta cabeleira encaracolada. Em inglês, com um carregado sotaque italiano e sem muita delicadeza, ele interrompe meu papo com o imã. Quer saber como rezar na mesquita, mesmo não sendo muçulmano. Ishak olha para os pés do homem, encardidos e sem meias, e começa a explicar que, antes da oração, é preciso se limpar... Eu me contenho para não rir, enquanto o italiano ameaça perder a calma, perguntando se não poderia rezar sem se lavar.
O sacerdote explica que este é um preceito válido para os muçulmanos, mas que se ele quer rezar em um templo do Islã, seria interessante respeitar as duas formas de limpeza antes de ir à mesquita, e segue: “Após manter uma relação sexual ou quando ‘algo ruim’ acontece em um sonho, é preciso tomar um banho completo, deixando a água entrar e sair da boca por três vezes”. Se nada disso aconteceu, basta lavar o rosto, os pés, as mãos, as orelhas e enxaguar a boca. O italiano agradece, meio contrariado, e deixa a sala.
Maria e Jesus entre Maomé (esq.) e Alá (dir.), na Hagia Sophia
Aproveito a chance e retomo a conversação, para tirar uma dúvida antiga. Há uns anos me deparei com a novela do catalão Ildefonso Falcones, A Mão de Fátima, em que ele conta a saga de um jovem árabe na Andaluzia do século XVI. Entre suas aventuras, Hernando Ruiz, envolve-se com um grupo de religiosos muçulmanos que se arriscam a falsificar relíquias cristãs, em um esforço desesperado para aproximar as duas religiões, na tentativa de estabelecer uma convivência que evite a iminente expulsão dos mouros da Espanha. No romance histórico, o grande ponto em comum escolhido para tentar a intersecção entre o Cristianismo e o Islã é a fé em Maria.
Pergunto ao imã se de fato os muçulmanos acreditam nela e ele me confirma, acrescentando mais. Maria (Mariam para os islâmicos) é um dos maiores símbolos de virtude feminina no Islã e é citada diversas vezes no Alcorão - o livro sagrado para os muçulmanos (como no trecho no início do post) -, por ter se submetido a Alá sem questionamentos. Uma homenagem a ela está inscrita em toda e qualquer mesquita, e em um lugar de honra, o Mihrab – uma espécie de altar que indica a direção de Meca, para o qual os fiéis dirigem suas orações.
E não é só isso. Os muçulmanos acreditam também em Jesus (conhecido como Isa), embora de forma diferente dos cristãos. Para o Islã, o imã me explica, ele não é o Messias, o filho de Deus, “porque Alá não precisaria enviar um filho à terra, somos todos seus filhos”. Cristo é para eles mais um profeta, que teria tido suas palavras mal interpretadas e “adulteradas” por quem o ouviu.
Mihrab da Mesquita Azul (centro), onde fica a homenagem a Maria
Para quem imagina existir um conflito insuperável entre cristãos e muçulmanos, cristalizado por séculos de ódio e guerras religiosas pela Europa e reavivado pela onda de terrorismo e radicalismo ocidental nas últimas décadas, esse conjunto de informações pode surpreender. E o que dizer de uma mesquita em que a imagem de Maria, com o menino Jesus nos braços, convive com os símbolos de Alá e do Profeta Maomé – e em uma posição mais elevada do templo? Isso também está em Istambul, na Hagia Sophia, construída originalmente como uma igreja cristã bizantina em 537 D.C., transformada em templo do Islã em 1453, quando os otomanos tomaram Constantinopla e a transformaram em Istambul. Os conquistadores não apagaram o mosaico cristão, apenas acrescentaram os próprios sinais, na bela caligrafia arábica...
Depois de mais de uma hora de conversa, agradeço a atenção de Ishak e me despeço. Ele aperta minha mão e me entrega seu cartão, decorado com as graciosas formas de um dos azulejos presentes na Mesquita Azul. No pequeno pedaço de papel, além do seu nome completo e cargo em inglês ("Iman of the Blue Mosque"), consta o telefone do templo, um número de celular e um e-mail do Yahoo. Satisfeito, deixo a sala e me dirijo para a saída do templo, não sem antes me aproximar do Mihrab. Lá fora, enquanto visto meus sapatos, as nuvens sumiram e o sol brilha sobre Istambul.

Carreguei no YouTube um vídeo curto com o chamado para a oração do entardecer, na Süleymaniye Mosque: http://youtu.be/ZiNCWHIohRI

quinta-feira, 13 de março de 2014

Em busca do avô

A Ribeira do Porto, o Douro e o casario
"Se a alma que sente e faz conhece
Só porque lembra o que esqueceu,
Vivemos, raça, porque houvesse
Memória em nós do instinto teu."
Fernando Pessoa (Viriato - Mensagem)

Eu não conheci o meu avô. Aliás, não conheci nenhum dos dois, mas aqui me referiro ao pai do meu pai. Quando chego à cidade do Porto, no norte de Portugal, me dou conta do quão pouco eu sei dele.
De frente para o casario que se esparrama morro abaixo, até bem pertinho do rio, no alto do extremo norte da Ponte D. Luís I, eu me deixo divagar. Será que a mão do meu avô algum dia abriu uma dessas velhas janelas com a pintura descascada pela umidade? Debruçou-se a fumar um cigarro em uma dessas varandas? Teve um dia que subir a um desses telhados para trocar uma telha partida? Correu para recolher às pressas as camisolas postas a secar no varal, para escapar de uma das tantas chuvas passageiras que sobem o Douro? Não, isso lá naquela época era trabalho de mulher...
O que eu sei sobre o meu avô é realmente pouco, algumas datas, os nomes do pai e da mãe, o ano de nascimento e o dia em que se casou com a minha Vó Deolinda, já em São Paulo, no dia 5 de fevereiro de 1938, um sábado, vinte dias antes do Carnaval. Eles tiveram dois filhos, meu pai e meu tio Alberto, mas nenhum dos dois também parece saber muito sobre o pai.
Ponte D. Luís I, com o metrô de superfície em direção a Vila Nova de Gaia
Não é que meu avô desapareceu, saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou – sair, ele deve ter saído muitas vezes, porque fumava desbragadamente, e dos sem filtro, o que parece ter sido a principal causa da sua morte, por enfisema pulmonar, seis anos antes de eu nascer. Mas o Vô Joaquim era um daqueles portugueses duros, de pouca conversa e confiança, menos ainda com os filhos.
Sei que ele veio para o Brasil de Vila Nova de Gaia, a cidade que historicamente abriga as caves do vinho do Porto, logo ali do outro lado do rio, separada da segunda maior cidade de Portugal por essa incrível ponte pênsil de metal - ela já estava lá na época do meu avô, já que foi erguida entre 1881 e 1888. O que não sei é se ele nasceu em Gaia...
Atravesso o vão do Douro, de olho nas águas turvas e em uma ou outra gaivota que também cruza rumo sul. Para fugir da canaleta turística, desvio da descida que leva à ribeira, onde se alinham, quase um ao lado do outro, os barracões dos fabricantes de vinho. Subo a avenida que hoje serve de rota para o metrô de superfície, até chegar à sede da prefeitura. Só aí me decido a descer, pelas vielas, para ver o que de fato é Gaia – e o que no fim pode ser eu.
A descida é tortuosa, até chegar ao limite da planície ribeirinha, que desemboca no rio. Antes de chegar ao Douro, me deparo com um boteco que se encaixaria perfeitamente em uma rua do Bixiga, em São Paulo, onde meu avô foi morar depois que se casou no Brasil – e onde meu pai nasceu. Jornal sobre o balcão para quem quiser ler, salgados protegidos pela prateleira de vidro, mesas de madeira espalhadas pelo salão, uma televisão ligada em um jogo de futebol, sem som, e ao fundo uma mesa de sinuca, com uma partida em andamento. Entro, peço um café, recolho o jornal e me sento.
O boteco do Manoel, em Vila Nova de Gaia
Quando me levanto para pedir um segundo, o gajo de cabelos grisalhos do outro lado do balcão puxa conversa, ao perceber que sou brasileiro. Papo vai, papo vem, ele me conta sua história. Manoel foi também um imigrante, cruzou o oceano para tentar a sorte nos Estados Unidos, onde trabalhou de operador de guindaste em depósito de sucata a instalador de interiores de limusines. Voltou com menos dinheiro do que saiu, diz ele, e abriu o boteco em Gaia. Meu avô nunca voltou...
Depois de sete meses na Inglaterra, aliás, visitar Portugal para mim foi um mergulho em ambientes e situações muito familiares, definidoras mesmo do meu Brasil paulistano. Mais do que a língua, a forma de agir, os sorrisos, a atenção e as comidas me levaram quase diretamente para casa – e uma casa que por vezes nem existe mais...
No meu primeiro dia em Lisboa, entro em uma padaria – sim, como as típicas e abençoadas padarias paulistanas – e me deparo com vários potes de arroz doce, com canela salpicada por cima e tudo. Talvez essa seja a lembrança mais forte da minha Vó Dinda, que preparava o doce como não mais eu provei igual. Ela morreu há mais de dez anos e de lá para cá nunca encontrei nada nem parecido. Peço um deles e a cachopa do balcão me entrega, com um sorriso curioso – quem em sã consciência come arroz doce no café da manhã? Na primeira colherada tudo voltou de repente, a escada de ladrilhos vermelhos partidos, o corredor com as tartarugas tomando sol, o sofá laranja da sala acarpetada, o galinho que mudava de cor para prever o tempo sobre a TV (azul para sol e rosado para chuva), e minha pequena Vó Dinda na cozinha, abrindo a velha geladeira que dava choque para me servir de arroz doce...
O arroz doce que trouxe de volta minha Vó Dinda
Depois da conversa com Manoel, tomo o rumo de volta ao Porto. Subindo as escadas para chegar ao meu quarto, cruzo com a dona do hotel, Dona Maria do Carmo, uma senhora em torno dos 60 anos. Ela pergunta sobre o meu dia e conto minha travessia a Gaia, para tentar encontrar um pouco do meu avô. O rosto dela se ilumina e sou convidado para tomar um café.
Dona Maria também faz parte de uma família de imigrantes. Em Portugal só restou ela, os pais já faleceram e o único irmão foi jovem viver na França – onde acabou por se tornar campeão mundial de dardos, como me mostra em uma série de fotos e recortes antigos de jornal. Ela se encoraja e começa a me contar uma história, de quando levou o pai, já velhinho, de volta à terra natal. É uma cidadezinha de Trás-os-Montes, a província que fica logo ali, Douro acima, encravada entre o Porto e a Espanha.
O pai nunca mais tinha voltado lá, desde criança, mas ao descer do carro saiu caminhando com desenvoltura pelas ruelas, até chegar a uma pequena praça, onde ainda havia o forno público em que se assava o pão – ali, menino, ele ia diariamente a mando da mãe, para cozer o alimento da família. Estavam os dois a observar a boca enegrecida pela fuligem quando uma senhora de idade próxima ao pai de Maria do Carmo se aproxima e o reconhece, ela também uma menina que naqueles anos passados apresentava a massa ao assador e voltava com o filão. Neste ponto Dona Maria começou a chorar e devo dizer que também não me contive.
Conto a ela a minha história, a tentativa de encontrar um pouco do meu avô ali no Porto. Ela me sugere uma visita ao Registro Civil, dizendo que se eu tinha a data de nascimento e o nome dos pais, talvez eles me informassem até o endereço da casa onde ele nasceu... Era sábado e isso só poderia ser feito na segunda-feira, dia em que eu tinha um voo para Londres a tomar, às 17h. Mas por que não?
Rua do boteco do Manoel, em Gaia
Na segunda, 8h55, cinco minutos antes do horário de abertura da repartição, já estou lá em frente. As portas se abrem pontualmente às 9h e faço minha consulta. A atendente, amável, me explica que ali estão informatizados os registros de 1911 para diante – a data provavelmente é reflexo da mudança de regime em Portugal em outubro de 1910, que pôs fim à monarquia e estabeleceu a república. Como meu avô nasceu em 1906, os arquivos deste período estão em outro lugar, na Torre do Tombo, no centro do Porto. Lá vou eu...
Lá a situação se mostra mais elusiva. Eu imaginava que com o nome completo, data, nome do pai e da mãe, seria fácil localizar o registro de nascimento – mas falta o distrito. A moça de óculos se levanta da frente do computador, desaparece pela porta no fundo da sala e volta com um livro encadernado em couro, as folhas amareladas pelo tempo.
Ela abre em uma página aleatória e me mostra. Naqueles anos as pessoas eram registradas pelo primeiro nome, em uma coluna da esquerda, e à direita se inseria os nomes completos de pai e mãe. Isso não está em ordem alfabética, os nascimentos eram registrados na ordem cronológica.
Coincidência? Placa com meu nome em Gaia (esq.)
Considerando toda a região do Porto – que inclui Vila Nova de Gaia -, são mais de 300 livros como aquele a ser checados, nome a nome, comparando o da esquerda com os progenitores, lançados na coluna da direita. E como a burocracia raramente trabalha a favor de algo que não seja ela própria, ali na Torre do Tombo só é permitido consultar dez livros por dia. Fazendo uma conta rápida, percebo que, no pior dos casos, eu teria que passar mais de um mês no Porto para vasculhar o arquivo todo...
Talvez percebendo o meu desânimo, o olhar por trás dos óculos me oferece uma alternativa. Não sei o ano em que o Vô Joaquim chegou ao Brasil, mas sei que foi obrigatoriamente antes de 1938, quando se casou. Nesse período já não era mais possível aos portugueses entrar em território brasileiro (pelo menos legalmente) sem um passaporte. Seguinte a essa informação ela me dá, enfim, uma boa notícia: a Torre do Tombo tem um arquivo informatizado, disponível na internet, com fotocópias de todos os passaportes emitidos no Porto. E nesse arquivo, se eu conseguir encontrar o do meu avô, consta o número do livro em que ele foi registrado.
O porém – e sempre há um – é que este arquivo também não está organizado em ordem cronológica (e pelo que a moça de óculos me mostrou na tela, nem lógica...). Mas já é um começo, um ponto de partida.
Levemente reconfortado, volto para o hotel. Já são quase uma da tarde, tempo para jogar as roupas dentro da mala, almoçar, me despedir da Dona Maria do Carmo e tomar o metrô para o aeroporto. De qualquer maneira, sinto que vou ter que voltar ao Porto...

quinta-feira, 6 de março de 2014

Levantados do chão

Ronaldo 7, a camisola mais vendida em Portugal
"Penso que estamos cegos, cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem. Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara."
José Saramago

Nunca fui fã de jogadores estrela, ainda mais como esse, que tira as sobrancelhas e aparece em propagandas de cueca. Mas, como dizia José Saramago, "eu não invento nada. Levanto as pedras e mostro o que está por baixo". E em Portugal o que está por baixo não cabe mais debaixo das pedras... Mendigos pelas calçadas, pedintes no metrô, pichações pedindo “fora FMI (Fundo Monetário Internacional)” e um olhar nas ruas que mistura desesperança e resignação.
Entro em um café simples no Chiado, em Lisboa, onde um casal por volta dos 50 e tantos anos ocupa o balcão. Ao fundo, bem à brasileira, a televisão sintonizada na RTP 1 transmite um programa matutino de variedades. Um homem de meia idade fala sobre uma marca artesanal de chocolates, enquanto a apresentadora faz cara de que os bombons não podem ser nada menos que uma delícia. Aí o inesperado acontece. Escuto ele falar dos próprios chocolates, que aparentemente tinham mantido a pequena empresa viva durante a crise, como se fosse a relação mais lógica possível: "Isso nos faz ver que aqui em Portugal podemos ser os melhores do mundo, como já temos o melhor do mundo"... A mulher ao balcão acena positivamente com a cabeça, enquanto o homem continua enxugando os copos recém lavados.
É o efeito Ronaldo. Ganhador da Bola de Ouro pela segunda vez em janeiro (a primeira foi em 2008), autor dos quatro gols que levaram Portugal à Copa, derrotando a Suécia, Cristiano parece carregar o país nas costas – e o peso não é pequeno.
Instantâneo da vida portuguesa, nas ladeiras da Alfama, em Lisboa
Sem dúvida a relevância do gajo nascido na Ilha da Madeira e formado nas canteiras do Sporting de Lisboa transcende em muito a nação mais ocidental da Europa continental – mas a importância dele para os portugueses assemelha-se à de um bote salva-vidas para um náufrago. Porque depois da ilusão de riqueza e os consideráveis avanços na infraestrutura proporcionados pela entrada na UE (União Europeia), os últimos anos de crise parecem ter devolvido Portugal à deriva, como a surreal descrição de Saramago dos anos 80 no seu Jangada de Pedra, onde a Península Ibérica simplesmente se desprende da Europa e começa a flutuar pelo Atlântico, em direção à América Latina.
Verdade que em Portugal sente-se mais, mas o tamanho do jogador do Real Madrid impressiona, nem que seja só pelos números. Um estudo realizado pelo Ipam (Instituto Português de Administração e Marketing) considerando 26 variáveis avaliou a “marca Ronaldo” em 43 milhões de euros (R$ 139 milhões). Um outro levantamento, feito pela Cision, uma agência de comunicação sueca, estima em 185 milhões de euros (R$ 596 milhões) o potencial midiático do CR7, isso só na internet.
O universo online, aliás, é uma fronteira olhada com cuidado pelo staff do jogador. A página dele no Facebook tem quase 75 milhões de seguidores, mas isso não se mostrou suficiente. Cristiano decidiu criar sua própria rede social, a Viva Ronaldo (www.vivaronaldo.com), onde é possível interagir com outros fãs, responder a sessões de quiz sobre o futebolista, concorrer a um encontro com ele, ver notícias e acessar conteúdos postados pelo gajo (como seu último corte de cabelo, por exemplo...) - além de toda a carga relativa aos seus patrocinadores, é claro. Há uma versão para computadores pessoais e até um aplicativo para smartphones da Apple – a versão para o Android está em produção.
Um dos vários patrocinadores do gajo da Madeira
Por falar em patrocinadores, a equipe por trás do camisa 7 da Seleção Portuguesa tenta aproveitar ao máximo seu potencial midiático. O escopo é vasto, de uma chuteira desenvolvida especialmente inspirada nele (a Mercurial IX) e uma coleção completa de roupas esportivas produzidas pela Nike à linha própria de cuecas (batizada de CR7), além de campanhas publicitárias para Armani e Dolce & Gabbana. Mas há mais, do videogame Pro Evolution Soccer aos pães Bimbo, da marca de shakes emagrecedores Herbalife à fabricante de eletrônicos Samsung, sem falar no xampu anticaspa Linic.
A grande barganha, porém, foi o contrato que o português BES (Banco Espírito Santo) fechou com o jogador em 2003, quando pagou míseros 250 mil euros (R$ 805 mil) por dois anos de anúncios. No final do ano passado, quando o contrato com Ronaldo foi renovado, José Goes, membro do Comitê Executivo do banco, revelou à revista portuguesa Visão que os produtos de poupança promovidos pelo jogador contavam com ativos da ordem de 5 bilhões de euros (R$ 16,1 bilhões) só em Portugal.
Com tudo isso, não é difícil perder de vista que Ronaldo é na verdade um jogador de futebol – e não um qualquer. Neste quesito, o madeirense também leva Portugal na garupa, o que inevitavelmente o coloca na linha de tiro. Após a primeira partida da repescagem europeia de classificação para o Mundial, em novembro do ano passado, quando marcou o único tento na vitória de 1 a 0 sobre a Suécia no Estádio da Luz, em Lisboa, Cristiano transformou-se em alvo.
Nas vésperas do jogo de volta, em Solna, que seria realizado quatro dias depois, a Pepsi lançou uma campanha em território sueco que mostrava em fotos um boneco vestido com as cores da Seleção Portuguesa, amordaçado e amarrado a uma linha de trem, sob a frase “Vamos passar por cima de Portugal”. Em outro anúncio, Cristiano aparecia com a cabeça esmagada por uma lata de refrigerante ou em forma de um boneco de vodu.
No jogo, o gajo anotou os três gols que levaram os lusos a bater a Suécia por 3 a 2 e garantiu a ida dos encarnados ao Brasil. Após marcar, ainda no gramado, Ronaldo repetiu a comemoração lançada no embate do Real Madrid contra o Barcelona em fevereiro de 2013, no Camp Nou, quando os merengues eliminaram os catalães por 3 a 1, na Copa do Rei. Em claro e bom português e virado para as câmeras em Solna, ele fala, apontando para o chão: “Eu estou aqui”.
"Eu estou aqui", a frase que virou estampa de cachecol
Mesmo com a vaga na Copa, Ronaldo não esqueceu a provocação da multinacional de bebidas. A má repercussão dos anúncios fez a Pepsi desdobrar-se em desculpas ao português, que aceitou perdoá-la sem maiores repercussões judiciais – mas a um preço. A marca de refrigerantes foi “convencida” a financiar, em parceria com o madeirense, uma nova residência para a Casa dos Rapazes, uma instituição ligada à Segurança Social de Portugal localizada em Lisboa, que acolhe crianças e jovens de seis a 18 anos, maltratados ou abandonados por suas famílias. Em 2005 a sede da organização, então no bairro da Alfama, pegou fogo, e eles foram provisoriamente alojados na freguesia de Marvila, no noroeste da capital, onde permaneciam de forma improvisada. Como resultado do imbróglio de Ronaldo com a Pepsi, eles vão agora se mudar definitivamente para Cascais, na Grande Lisboa, em duas casas contíguas, cercadas por um espaço ao ar livre.
Ao caminhar pelas ruas de Lisboa, logo se vê que não há só a Casa dos Rapazes a precisar de ajuda. Depois de quase quebrar no redemoinho financeiro da crise da dívida da Zona do Euro desencadeada pela Grécia, Portugal tenta colocar a cabeça para fora da recessão já há três anos. Sob o risco de não conseguir honrar sua dívida com a disparada dos juros sobre os títulos públicos, o governo português jogou a toalha e entregou o comando de sua política econômica à chamada Troika, formada pela Comissão Europeia (órgão executivo da UE), Banco Central Europeu e FMI.
Há quem não aceite tudo calado... Cartaz de protesto no Porto
A ajuda de 78 bilhões de euros (R$ 250 bilhões) não veio de graça e uma série de medidas de austeridade – incluindo privatizações, aumento de impostos, corte de gastos públicos e até de aposentadorias – colocou os portugueses em contato com uma pobreza e carestia que eles pensavam ter ficado no passado. Quando se observa de perto, essas coisas parecem semelhantes em todo lugar, em especial quando se trata de siglas... No Brasil conturbado dos anos 90, ainda no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, criou-se a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras), que tungava qualquer transação, incluindo saques na conta corrente, – durou 11 anos e alguns dias (de 1996 a 2007). Em Portugal, por sua vez, o governo estabeleceu a CES (Contribuição Extraordinária de Solidariedade), que taxa qualquer pensão ou aposentadoria acima de 1.000 euros (R$ 3.220) mensais em 3,5%, podendo chegar a 40% no caso de pagamentos acima de 7.545 euros (R$ 24.292). Pode-se acusar os criadores dessas siglas de qualquer coisa, menos de falta de humor – afinal, há uma ironia fina no uso das palavras “Provisória” e “Solidariedade” em ambos os casos.
A ironia, aliás, parece andar pelas próprias pernas em Portugal. Após três duros anos, o governo se prepara para a saída da Troika, programada para 17 de maio. A liberdade, ainda que tardia, virá menos de um mês depois de uma data chave na história lusa, o 25 de abril. Dentro de menos de três meses, os portugueses vão comemorar os 40 anos da Revolução dos Cravos, que encerrou os 41 anos da ditadura salazarista, em 1974.
Se a ironia se deixa ver em qualquer esquina de Portugal, a solidariedade mostra-se mais arisca. Ao descer a Rua Augusta, a principal artéria da Baixa em direção ao Tejo, no centro de Lisboa, sou atraído por um cântico. Acomodado sobre as pedras pretas e brancas da calçada portuguesa, lá está ele, cercado pelos quatro amigos.
Seu Joaquim Simões se diz “salmista” e percorre as ruas de Lisboa a cantar a mensagem da Bíblia. Não vai sozinho, leva sempre consigo Elias, Eliseu, Ismaela e Nica, a “mãe de todos”, os quatro vira-latas que carrega diariamente na garupa da bicicleta, trazidos no ferry de Cacilhas, do outro lado da Baía do Tejo. Eu me aproximo e puxo conversa, depois que ele termina de cantar.
Joaquim Simões, o salmeiro, e seus quatro amigos
Seu Joaquim era carpinteiro, mas abandonou a profissão há sete anos, porque “já não compensava”. Seu grande sonho é visitar Jerusalém em Israel - com os cães, claro, mas para isso ele diz que precisaria de uma moto, para o que sonha com um patrocínio, uma ajuda... Pergunto o que pensa de Cristiano Ronaldo e ele não titubeia: “é um bom jogador, mas essa coisa de bola... Será que era preciso envolver tanto dinheiro naquilo”?
Sobre a situação portuguesa, o salmeiro é ainda mais direto: “A vida está muito cara, há muita gente perdendo casa, fruto do trabalho de uma vida inteira. Vejo muita gente aflita... Acho que Portugal tem uma bota muito difícil de calçar”.
A bota de Cristiano Ronaldo certamente calça bem mais fácil, mas o gajo terá um desafio difícil para mostrar que de fato chegou a um patamar acima. Dos 43 ganhadores da Bola de Ouro da Fifa desde que o prêmio foi estabelecido, em 1956, só 11 levantaram a Copa do Mundo com seu país... Portugal estreia no Grupo G contra a Alemanha, no Estádio da Fonte Nova, em Salvador, no dia 16 de junho. Estados Unidos e Gana também fazem parte da chave.

Carreguei no YouTube um vídeo com um pouco da cantoria de Seu Joaquim, o salmeiro:
http://youtu.be/08XyQ5RbZAk