quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Escócia, a um ano da encruzilhada

A partida, na estação de Aberdeen
A jornada começou no escuro. Antes das 6h da manhã já esperávamos o trem na Plataforma 7 e foi um alívio ver a locomotiva azul e amarela encostar na estação, para subir logo as escadas e escapar do frio respeitável de 8 graus. Agora era encontrar nossa cabine e relaxar – relaxar mesmo, a próxima parada seria só do outro lado da Escócia, em Oban, depois de atravessar as Highlands, em previstas sete horas.
O tempo nas estação foi bem curto, pouco mais de dois minutos, e às 6h03 a locomotiva 55 022 da Royal Scots Grey – mais conhecido como Deltic 22 -, deixou Aberdeen no  rumo sul. Antes de se direcionar às montanhas lendárias da região central a composição teria que costear boa parte do litoral leste escocês, passando por Stonehaven, Laurencekirk, Montrose e Arbroath, aproximando-se da capital, Edinburgh, e da maior cidade do país, Glasgow. Só então o trem seguiria os trilhos para o norte, contornando localidades com nomes vindos do gaélico, a língua dos celtas, primeiros habitantes da Escócia. Aos meus ouvidos, pelo menos, lugares como Garelochhead, Ardlui, Crienlarich ou Tyndrum parecem descrever o território dos elfos ou dos dwarfs...
Esse trem não faz essa rota todo dia – na verdade só uma vez por ano. É uma tentativa de volta no tempo, de manter viva uma tradição ferroviária agonizante. O Deltic 22 é uma locomotiva movida a diesel que começou a operar em trilhos escoceses em 1961 e foi aposentada em dezembro de 1981, usada depois só em ocasiões especiais. Olhar para o passado na tentativa de garantir um futuro mais brilhante é o que a Escócia discute atualmente. Exatamente daqui a um ano, em 18 de setembro de 2014, o país irá às urnas em um referendo para decidir se permanece parte do Reino Unido ou se vai se transformar em uma nação independente.
Bandeira escocesa, em Aberdeen
A Escócia é parte do Reino Unido desde 1707 – o azul da Union Jack, a bandeira britânica, vem da sobreposição do pavilhão inglês e da Irlanda do Norte à flâmula escocesa. A junção dos dois países foi ratificada pelo Union Act, depois da pressão inglesa que se aproveitou de um fracasso escocês na tentativa de criar uma colônia na América, na região de Darien, no Panamá. A ideia escocesa era estabelecer um entreposto comercial entre o Atlântico e o Pacífico, para tomar parte no negócio de especiarias com as Índias, sem precisar contornar a África. Era praticamente uma antevisão do que hoje é o Canal do Panamá, com 200 anos de antecedência.
Envolvendo boa parte da riqueza nacional, os escoceses partiram para a América em 1698, com seis navios e 1.200 colonos. O clima difícil, com longas temporadas chuvosas, o terreno pantanoso e difícil de cultivar, uma cadeia montanhosa íngreme entre os dois litorais e ataques dos espanhóis puseram por terra o sonho da Escócia de se ver catapultada à primeira divisão das nações europeias. Em dois anos eles abandonaram o Panamá, deixando para trás 2.000 mortos, dos 2.500 escoceses que se envolveram na aventura.
Atentos ao momento de fraqueza, os ingleses pressionam. Através de subornos à elite escocesa e promessas de compensação pelas perdas em Darien, a Inglaterra consegue fazer passar o ato no Parlamento vizinho e oficializa a união.
Locomotiva Deltic 22, movida a diesel
Atualmente a Escócia desfruta de uma autonomia parcial dentro do Reino Unido, depois do ato aprovado em Westminster em 1999, que restituiu o Parlamento Escocês. O país segue a lei de Frank Zappa para ser considerada uma nação – ter ao menos uma cerveja, um time de futebol e uma companhia aérea. Tem até um primeiro-ministro, com liberdade para criar leis, mas seus poderes são limitados em relação a arrecadação de impostos, política monetária (usam a libra britânica, impressa com personagens locais nas cédulas) e relações internacionais. Para o bem - ou para o mal -, a Escócia mantém seleções de futebol e rugby separadas da Inglaterra.
E o trem? Bom, a viagem é longa, mas cheia de paisagens extraordinárias, com destaque para as montanhas escarpadas e lagos de um azul bem escuro nas Highlands, com direito à visão de um ou outro castelo cinematográfico em ruínas. A cabine era bem confortável e além de café-da-manhã e jantar, o vagão-bar servia boas ales escocesas. A civilidade britânica, porém, foi mantida à risca - a recomendação era começar a consumir bebidas alcoólicas só após as 10h30 da manhã.
Oban, na costa oeste da Escócia
Depois das sete horas, encostamos em Oban às 13h05, o que nos dava quase uma hora e meia para explorar a cidadezinha à beira-mar do outro lado da Escócia. Foi o suficiente para subir à fortaleza na parte alta do vilarejo e observar a bela vista da baía, além de caminhar um pouco pelo calçadão que contornava o porto. Às 14h27 estávamos de volta ao trem, para encarar mais sete horas de volta a Aberdeen.
O que pensam os escoceses sobre a independência? Pesquisas discrepantes, ao que parece, não são privilégio brasileiro. A enquete mais recente feita pelo Scottish National Party – partido que comanda a campanha pelo “sim” – indica que 44% dos ouvidos são a favor da separação, 43% dizem “não” e 13% não sabem. Uma outra pesquisa, feita pelo YouGov, um site especializado em medir a opinião pública, por outro lado, coloca o “não” bem à frente (59% a 29%, com 12% de indecisos).
Uma terceira pesquisa, feita pelo jornal The Scotsman, com sede em Edinburgh, mostra que na Escócia o que manda mesmo é o bolso – algo previsível, uma vez que o Tio Patinhas é escocês. A pergunta foi: “Se você estivesse convencido de que receberia 500 libras a mais por ano como resultado da independência, você seria a favor da separação?” Nesse caso, 47% dos pesquisados disseram que sim, 37% ficaram contra e 16% não souberam responder.
Kilchurn Castle, à beira do Loch Awe, nas Highlands
A maior queixa da população em relação ao plebiscito, porém, é a falta de informação. Quanto custaria uma Escócia independente? Como manter o controle das fronteiras, já que o país hoje depende das forças armadas britânicas? O que aconteceria com a moeda? E as atuais pensões e aposentadorias, seriam sustentáveis? Ninguém apareceu com as respostas, até agora...
O plano de manter a união monetária após a independência, sugerido pelos partidários do “sim”, é acusados de ser pouco claro. Um dos poucos números na mesa é o balanço fiscal. Beneficiada pela renda da exploração de petróleo no Mar do Norte, a Escócia gera 9,9% da receita tributária do Reino Unido e recebe de volta, em gastos, 9,3% do bolo. As cifras fazem mais sentido se considerarmos que o país concentra só 5 milhões dos 63 milhões do Reino Unido, em torno de 8,4% do total. O argumento, contudo, não mostra o retrato completo, porque a conta não inclui gastos intangíveis que correm por conta do governo britânico, como manutenção de militares e representações diplomáticas, por exemplo...
Slain's Castle, ex-igreja e atual pub
Com algum atraso, o Deltic 22 retornou a Aberdeen por volta das 23h30, permitindo uma visão privilegiada da euforia etílica escocesa em plena noite de sábado. O epicentro da vida noturna é a Belmont Street, chamada pelos locais de Three Kirk Street, por causa das três igrejas que existiam na rua – uma está em ruínas e as outras duas foram transformadas em pubs, incluindo o incrível e gótico Slain’s Castle, com o interior à la Um Drink no Inferno.
A cidade, mesmo, seria vista melhor só no dia seguinte. Aberdeen é monocromática – mas em um bom sentido. Você olha para os lados e quase tudo o que vê é cinza, porque as construções são todas de granito. Terceiro maior aglomerado humano da Escócia, com 225 mil habitantes, é o principal centro da indústria petrolífera na Europa, e por isso bastante rica. A maior reserva desse tipo de pedra no Reino Unido estava lá e foi usada largamente para erguer casas, prédios comerciais e públicos.
Aberdeen, feita de granito
O granito praticamente acabou e o que sobrou foi um gigantesco buraco de mais de 90 metros de profundidade, bem próximo do centro da cidade, onde funcionava a Rubislaw Quary. Ainda hoje as novas construções em Aberdeen continuam sendo feitas com o material, mas na falta da fonte local de fornecimento, o granito agora é importado da China.
O local, que no século XIX já foi a maior escavação feita pelo homem na Europa, hoje está coberto de água e isolado por uma cerca. Da margem, só consegui ver algumas compridas algas esverdeadas próximas à superfície, em busca de um pouco de luz no meio do imenso lago negro. Há um projeto de drenar a antiga pedreira e transformá-la em um parque, mas os planos têm sido brecados pelo temor do que pode ser encontrado lá dentro depois de tantos anos – o cenário parece mesmo ideal para se livrar de itens indesejados, como corpos, por exemplo.
Após três séculos de integração ao mundo britânico, acho que deve ser mais ou menos esse o medo dos escoceses, sobre o que pode vir à tona junto com a independência...

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