quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Uma crise em pílulas

"Apesar da crise, Cádiz melhora"
Cádiz, sábado de manhã, Mercado Central. Sempre que posso, gosto de visitar o chamado “mercadão” de uma cidade, um dos melhores pontos para observar pessoas, práticas, hábitos e sentir o pulso de um lugar.
Nas dezenas de boxes, os peixes e frutos do mar alcançam tamanhos e cores inacreditáveis – dos camarões carabineros cor de sangue ao choco, uma lula gigante de proporções Julio Vernianas. O que mais impressiona, porém, é a estrutura do mercado em si, organizado, novo e bem iluminado.
Ao sair dali, em uma das praças principais da cidade, me deparo com um cartaz do Ayuntamiento de Cádiz, sobre a recente reforma do mercadão, que diz: “Apesar de la crisis, Cádiz Mejora (Apesar da crise, Cádiz melhora)”. Não há governo nesse planeta que deixe de louvar as próprias obras, mas quando a crise se incorporou até à propaganda do setor público, o primeiro a fazer todo esforço para negar qualquer sinal dela, é porque algo não vai bem...

Sevilha, manhã de domingo, centro. O primeiro encontro foi na saída da Catedral. Meio ofuscado pelo contraste do sol com a semiescuridão do interior da igreja, só noto sua presença quando ela já está bem perto, estendendo um pequeno ramo de alecrim: “Toma, te regalo (Toma, te dou de presente)”.
Pego o galhinho de tempero e faço menção de seguir meu caminho, mas aí já é tarde - pede para ler a minha mão. Compreendo o processo, agradeço e tento devolver o alecrim, mas ela não aceita e começa a pedir dinheiro, caminhando atrás de mim. Consigo finalmente entregar o ramo de volta e continuo em frente.
Cigana em ação, em Sevilha
Logo adiante, mais duas ou três delas estão a postos, as cabeças cobertas por lenços e saias coloridas, o maço de ramos verdes visíveis à distância nas mãos. São ciganas – ou Roma, como esse povo com antiga origem na Índia e hoje sem pátria é conhecido na Europa - e estão presentes em todas as principais atrações turísticas nas grandes cidades da Andaluzia.
Passo a observá-las em ação. A estratégia é sempre a mesma, primeiro a isca do alecrim, em seguida a tentativa de ler a sorte e por último o apelo final por algum dinheiro. Não presenciei nenhuma delas obter sucesso. Os locais já conhecem o procedimento e as ignoram, enquanto os turistas caem só na primeira vez e logo aprendem a se esquivar. A atividade das ciganas parece mais resultado de uma situação desesperada do que qualquer outra coisa. Atravesso a rua.

Granada, terça-feira pela manhã. São pouco mais de 9h e entramos para tomar café da manhã em um bar-restaurante da Gran Via de Colón, uma das principais e mais afluentes avenidas da cidade.
Depois de pedir pão, café e suco para quatro, observo o ambiente. Há umas dez mesas dentro do estabelecimento, metade delas ocupadas, além de umas duas pessoas sentadas na barra, o balcão para nós. No salão, um garçon (aparentemente um dos donos do lugar) se desdobra para anotar os pedidos, tirar os cafés na máquina de expressos, servir as mesas e depois cobrar. Dentro da cozinha, outro homem (provavelmente o outro dono) preparava os pães, sucos e ajudava nas cobranças. Nesse mesmo dia voltei ao bar depois das 21h, e lá estavam os dois, agora servindo bebidas e petiscos...
Bodegas Castañeda, Granada, onde a tradição da tapa grátis ainda vive
O impacto da crise não se faz sentir só no ritmo de trabalho e volume de pessoal na Espanha, uma prática antes tradicional nas bodegas e bares da Andaluzia aos poucos vai rareando. Ao pedir uma bebida – uma taça de vinho ou uma cerveja, por exemplo -, o freguês era presentado com uma tapa, algo de comer selecionado pela casa. A cada novo drink, nova tapa.
Fui brindado com algumas tapas acompanhando copas em Granada, mas em Sevilha, Puerto de Santa Maria, Cádiz e Málaga não vi a tradição se materializar.

Granada, começo da noite. Entro em uma loja de vinhos, em busca de alguma barganha para levar comigo de volta à Inglaterra, e me deparo com a garrafa. No rótulo bege-avermelhado, o desenho de um porco alado, graciosamente flutuando no espaço, destaca-se sobre o nome do vinho: “Gran Cerdo (Grande Porco)”.
Ao lado do desenho, em vez das batidas frases sobre aromas de framboesa ou baunilha no palato, há três definições para a palavra cerdo, que traduzo do espanhol:
O porco que voa, apesar da crise
1. Mamífero doméstico de corpo largo, patas curtas, cabeça grande, orelhas caídas, focinho chato e quase cilíndrico e cauda em forma de hélice, que se cria para aproveitar sua carne.
2. Aplica-se à pessoa que não cuida do próprio asseio pessoal ou que gera asco por sua falta de limpeza: é um porco, sempre arrota às refeições.
3. Aplica-se à pessoa que mostra ter pouca educação ou poucos princípios morais: o porco só queria se aproveitar da minha má situação.
Abaixo das definições de Cerdo, aparece a breve apresentação do vinho, um tinto, que também traduzo: “Gran Cerdo é um grande vinho dedicado aos diretores de bancos que nos negaram empréstimos, alegando que o vinho não era um bem embargável. Personagens corpulentos, sudorosos e metidos em ternos, algum dia descobrirão que as coisas importantes da vida não se podem embargar. Obrigado aos amigos, pois com sua ajuda conseguimos por fim completar o engarrafamento. Agora que podes disfrutar de nossa criação mais ácida, prove-a com massa ou jamón (presunto espanhol), de porco.”
Compro o vinho, que custou 5 euros.

Por definição, crise é uma mudança brusca em uma situação. No caso europeu – e mais ainda no espanhol -, parece que essa mudança se incorporou de tal forma à rotina que já faz parte definitiva do dia a dia das pessoas.
"O ano dos que veem o copo meio cheio"
No final de 2013, os espanhóis tiveram uma pálida boa notícia, com uma leve queda na taxa de desemprego do pais - para assustadores 25,9%. É o segundo pior indicador entre os países da União Europeia, melhor só do que o índice da Grécia (27,8% em outubro do ano passado).
O ano que passou foi o primeiro nos últimos oito (desde 2006) em que o número de desocupados não cresceu. Em dezembro, havia 4,7 milhões de desempregados na Espanha. Se o número já parece chocante para o país, a situação da Andaluzia é ainda mais grave, onde a porcentagem da população sem trabalho supera os 35%. Ou seja, se na Espanha uma em cada quatro pessoas não tem emprego, nessa região do sul da Península Ibérica uma a cada três está sem ocupação.
A dificuldade de encontrar emprego e a preocupação com a crise não se infiltraram só na propaganda oficial. Em uma das principais praças de Granada, até o anúncio do McDonald’s remete à crise, oferecendo bebidas (inclusive cerveja) a 1 euro, sugerindo um otimismo com 2014: “El año de los que ven el vaso medio lleno (O ano dos que veem o copo meio cheio)”.
E se a própria União Europeia pena para não se desintegrar em meio à crise, a Espanha também redobra os esforços para não perder territórios. Às históricas demandas separatistas dos bascos e catalães, juntam-se os andaluzes. Nas ruas de Granada, Cádiz e Málaga, não são poucas as pichações hostis a Madri, que faz de tudo para mostrar um copo meio cheio, nem que seja de espuma...

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