quarta-feira, 11 de junho de 2014

É só o fim

Helsinki, vista da torre do Estádio Olímpico
“Se o chão abriu sob o seus pés e a segurança sumiu da faixa
Se as peças estão todas soltas e nada mais encaixa
Ô, crianças, isso é só o fim, é só o fim”
Só o Fim, Camisa de Vênus

Tudo tem um fim. Nem que seja aparente, provisório ou só mesmo uma ilusão. O final da minha jornada não podia ser em um lugar mais simbólico: onde é que as coisas têm fim? Na Finlândia, é claro. O mundo pode não acabar ali, mas bem que parece...
A travessia de Tallinn para Helsinki, a capital finlandesa, é feita de barco – na verdade um belo transatlântico, com cabines, restaurantes, bares e até cassino. O trecho leva duas horas e meia e você mal sente o movimento do navio. No desembarque, me vejo cercado pelos passageiros arrastando aqueles carrinhos de feira, com caixas e mais caixas de cerveja, cidra ou vinho empilhadas umas sobre as outras. Eu entenderia a razão disso mais tarde, ao pisar no primeiro bar.
Para começar, na Finlândia não se vende bebida alcoólica de nenhum tipo após as 21h, em supermercados ou lojas de conveniência. Depois desse horário, só nos bares e restaurantes, onde um pint da cerveja mais barata custa mais de cinco euros – eu disse a mais barata, há as que saem por seis, sete, oito euros... Mesmo no mercado, os impostos draconianos cobrados pelo governo sobre as bebidas para tentar combater o alcoolismo fazem com que uma lata de cerveja não custe menos do que dois euros.
Finlandeses carregados no ferry vindo de Tallinn
Assim, como os argentinos cruzam o Rio da Prata para sacar todos os dólares disponíveis nos caixas eletrônicos de Colônia de Sacramento, no Uruguai, os finlandeses atravessam o Báltico e trazem da Estônia (onde os preços são menos da metade dos praticados em Helsinki) o máximo de bebida que conseguem carregar.
Desembarco na capital finlandesa em um ensolarado e quente sábado à tarde e as ruas estão cheias de gente bebendo. Mais tarde, já no início da noite – clara como o dia –, vejo dezenas de adolescentes com um chapeuzinho de marinheiro na cabeça (meninos e meninas), entornando como se se não houvesse amanhã.
Não me pareceu que a política anti-álcool esteja funcionando muito bem...

No caminho para o meu hotel paro na feira em frente ao porto para almoçar. Não havia lugar para sentar na barraquinha, lotada, então recolho meu prato de plástico com uma generosa porção de salmão assado e vegetais e vou me acomodar encostado a um poste, em frente ao mar.
No caminho já achei que seria atacado. Elas apareceram em grupo, alternando-se em aproximações mais temerárias. Quando consigo sentar, a líder assume a posição frontal, afastando as concorrentes com gritos estridentes e ameaças de bicadas. E ali ficou, me olhando com cara de cachorro pidão.
No começo a gaivota não chegava muito perto, mas depois que joguei o primeiro pedaço de batata para ela, aos poucos a fome foi superando o medo. No final, já estava pegando os pedaços de salmão da minha mão (sim, tenho o coração mole mesmo...), e só não lambeu os meus dedos porque acho que a língua dela não consegue sair do bico.

A gaivota com olhar de cachorro pidão
Chego ao hotel – na verdade um albergue -, e a surpresa não é das melhores. A localização não era ruim, na ilha de Katajanokka, uns 20 minutos de caminhada da estação central de trem. Mas as vantagens acabavam por aí.
O albergue ocupava um prédio inteiro, com os quartos alinhados ao longo de compridos corredores, nos cinco andares. O meu lembrava bastante uma cela daquelas que aparecem nos filmes britânicos dos anos 70, um catre de metal, uma mesa e uma cadeira, um pequeno armário e uma janela que, se não tinha grades, abria só meio palmo, lateralmente.
Os banheiros, coletivos, eram um caso à parte. Os chuveiros ficavam alinhados um ao lado do outro, separados em baias. Para fazer sair água, é preciso tocar no sensor, aproveitar a ducha por alguns segundos, até que ela para automaticamente – e você tem que voltar a acionar o sensor.
Inacreditáveis mesmo eram os toaletes... A trilha sonora para se fazer o que tem que ser feito é o constante trinar de... passarinhos! Tinha até um cuco. O pior é que as cabines não tinham sensores luminosos, então a luz apagava e você se via no escuro. Fazia movimentos para ver se algo se acendia, mas o máximo que consegui foi tomar um susto com o disparar da torneira automática na pia, que ficava encostada ao vaso.
Ah, a tecnologia...

No dia seguinte tomo o ferry para visitar a Fortaleza de Suomenlinna, um complexo de defesa distribuído por quatro ilhas interligadas por pontes, construído pelos suecos para defender a cidade no século XVIII. A travessia é rápida, menos de 15 minutos, com barcos fazendo o trajeto de 20 em 20 minutos - mas o mundo é outro além da baía.
Gansos selvagens e seus filhotes em Suomenlinna
Junho é a temporada de reprodução dos gansos selvagens na Finlândia e eles estão por todas as quatro ilhas. São tantos que nem dão muita bola para os humanos, os casais cambaleando no passo de ganso atrás dos filhotes, tão pequenos que nem penas eles ainda têm, só uma penugem que parece mais uma cobertura de pelos. Só se você chega muito perto é que vai encontrar a ameaça de um bico aberto ou uma grasnada mais agressiva dos pais (mais abaixo há o link para um vídeo dos pequenos).
Em Suomenlinna há uma série de museus, uma das três únicas igrejas no mundo com um farol marítimo acoplado na torre, sem falar no que sobrou das trincheiras e canhões montados para proteger Helsinki dos russos, nos anos 30. A Finlândia também estava incluída na “zona de influência” soviética negociada com os alemães no Tratado Ribbentrop-Molotov, em 1939 (veja os posts anteriores “O horror, o horror” e “De sapatos de dança em neves siberianas”).
O mesmo ultimato apresentado aos três países bálticos (Lituânia, Letônia e Estônia) foi dado aos finlandeses, para que permitissem bases soviéticas no próprio território para “cooperação militar”. A diferença é que a Finlândia, ao contrário dos vizinhos do sul, não aceitou a ameaça e foi invadida pelos russos em novembro.
O Exército Vermelho a essa altura não contava com a preparação necessária para lutar na neve e tinha perdido seus melhores oficiais nos expurgos stalinistas dos anos 30. Em março, depois de duros combates, os finlandeses conseguiram assinar um tratado de paz com Moscou em que perderam algum território, mas mantiveram-se independentes, escapando de se tornar mais uma “república” da União Soviética. Cerca de 25 mil finlandeses perderam a vida na guerra – além de 100 mil russos.
Ford M40 adaptada pelos finlandeses para a guerra
Em Suomenlinna há um pequeno museu contando a história militar finlandesa. Entre os equipamentos em exposição há um Ford M40, aquela caminhonete clássica dos filmes rockabilly norte-americanos. A Finlândia comprou nada menos que 2.000 delas, depois pintadas improvisadamente de branco, onde foram instalados canhões. Esses veículos foram essenciais na guerra com os russos, fazendo um papel duplo, no transporte de tropas e como peças de artilharia leve.

Helsinki manteve preservado praticamente como era o Estádio Olímpico, construído para os jogos que a cidade sediou, em 1952. É até hoje o principal estádio do país, com capacidade para 40 mil pessoas. A seleção nacional joga lá e é o grande palco de shows na capital. A maior parte da arquibancada segue descoberta e ninguém fala em construir uma cobertura. Os bancos ainda são de madeira, como na inauguração. A pista de atletismo também continua por lá – não se discute a retirada para melhorar a visão do gramado, até porque ela é utilizada em nível profissional e amador.
Quando chego ao estádio, onde Ademar Ferreira da Silva ganhou a primeira de suas duas medalhas de ouro olímpicas no salto triplo, me deparo com uma bandeira do Brasil logo no salão de entrada, para marcar o fato. Dentro, no campo, meninas de sete e oito anos participam de um treino de futebol. Quando subo à torre, que oferece uma visão panorâmica de Helsinki, vejo que há uma outra partida prestes a começar no estádio em frente, bem menor – e de futebol feminino.
Parece que só as meninas vão a campo por lá... Quando desço da torre, atravesso a rua e me dirijo à entrada – havia uma bilheteria e a senhora na guarita me informa que são 8 euros para entrar. Em volta do gramado (perfeito), um generoso barranco oferece uma visão ideal da partida. É de lá que assisto à peleja.
Estádio Olímpico, descoberto, com bancos de madeira e pista de atletismo
Não foi um mal jogo. Disputado, alguns bons lances individuais, trocas de passes... No intervalo retorno à bilheteria, para conversar um pouco mais com a simpática senhora, que falava um inglês razoável. Ela era fã do time da casa, o HJK – que, me conta, estava “na sua pior temporada de todos os tempos”. A equipe era a vice-lanterna, com uma vitória, um empate e seis derrotas em oito partidas disputadas. O último colocado era justamente o time enfrentado no dia, o ONS, do interior do país, que tinha os mesmos quatro pontos, mas um saldo de gols menor.
Ela me explica que aquela era a elite do futebol feminino finlandês, embora as jogadoras fossem semiprofissionais - todas trabalham, estudam e treinam no tempo livre. Eram jovens, entre 17 e 21 anos, a maioria. A senhora me oferece para entrar de graça no estádio, mas agradeço e retorno ao barranco, onde batia um agradável solzinho.
No final acho que dei sorte, vejo o HJK bater o ONS por 3 a 0 e deixar a zona de rebaixamento.

No meu último dia em Helsinki resolvo experimentar uma tradição finlandesa e visitar uma das últimas saunas à lenha que ainda restam na capital. Entro na Kotiharjun Sauna no meio da tarde de uma terça-feira e ela está quase vazia. Você paga 15 euros, recebe uma toalha e pode ficar o tempo que quiser, até o fim do expediente, às 19h.
HJK x ONS, futebol feminino finlandês visto do barranco
Na Finlândia se toma sauna nu, então há duas salas separadas: homens no andar térreo e mulheres no segundo piso. O calor para a sala do suadouro é gerado por uma estufa alimentada por toras de madeira. Uma manivela permite que os usuários liberem mais vapor, aumentando a temperatura do recinto, se desejarem.
Não sou um frequentador de saunas, embora goste de suar nelas, mas o calor lá dentro não me pareceu para principiantes. Aguento uns dez minutos e saio para tomar uma ducha. Encarei três sessões intermediadas pelos banhos gelados e a experiência não foi ruim - embora a visão de rotundos senhores como vieram ao mundo esteja longe de ser meu cenário ideal para relaxar.
Depois do banho, quando já estou terminando de me vestir para ir embora, entra no vestiário um senhor bem magro, aparentando uns 70 e poucos anos, com uma comprida barba a la Papai Noel. Ele fala alguma coisa em finlandês para mim e me desculpo, em inglês, dizendo que não entendo a língua.
Ele me observa, curioso, e pergunta em um inglês arrastado de onde sou. Ao ouvir Brasil, ele solta uma gargalhada digna do bom velhinho, com as mãos na barriga e tudo. Em seguida tira do bolso uma garrafa de plástico transparente, daquelas de um terço de litro, já quase vazia. Desrrosqueia a tampa e a estende para mim.
Faço sinal de agradecimento, mas ele insiste: “English water, English water!”
Pego a garrafa e vejo no rótulo que a água inglesa era na verdade gin. Ele solta outra gargalhada daquelas e me abraça, repetindo: “English water, English water!”, uma piada que deve ter aprendido com algum marinheiro escocês.
Vestiário e tabuleiro de xadrez na Kotiharjun Sauna
Ouvindo a confusão, a senhora da recepção entra no vestiário e começa a dar uma bronca histórica no pobre Noel. Ele faz menção de beber a água inglesa da garrafa, mas ela impede. Ele tenta de novo, ela ergue o dedo, em ameaça. Na terceira tentativa, a senhora decide por ele para fora.
Antes de ir embora, o velhinho ainda pede desculpas para mim: “I’m sorry, this is not right” (Me desculpe, isso não é certo). Digo a ele e à senhora que está tudo bem e dou um amistoso tapa nas costas do Noel, tentando salvar a sauna vespertina do barba - sem sucesso, o cartão vermelho já tinha sido apresentado.
Ele deixa o vestiário e termino de amarrar meus sapatos. Na saída, em um inglês fluente, a senhora me pede desculpas pelo acontecido. Repito que está tudo bem, sem problemas - e começamos a conversar.
Ela me diz que o velhinho “é um bom homem, ele mora no prédio aqui da frente, mas hoje ele bebeu demais”. A explicação é sociológica: segundo a senhora, os finlandeses em geral são muito tímidos e têm uma grande dificuldade de entabular relações, por isso bebem tanto. O álcool funciona como uma espécie de lubrificante, facilitando o contato social.
Digo que o que mais me impressionou foi a atitude do velhinho em aceitar a bronca e a expulsão da sauna sem maiores discussões, estando um tanto embriagado e ainda ouvindo tudo aquilo de uma mulher. Explico que, no Brasil, dificilmente um lugar como aquele conseguiria funcionar sem ter um leão de chácara na porta para manter a ordem.
Ela me diz que, apesar de tudo, os finlandeses são muito bem educados. “Eu avisei a ele que já tinha bebido o suficiente por hoje”, conta. “Quando ele ameaçou tomar mais um gole, falei que se tentasse de novo, ia para fora. É como se ele ouvisse a voz da mãe dentro da cabeça dele”.
Benditas mães finlandesas...

Pôr do sol em Helsinki, hora de ir para casa
Saindo da sauna, enfrento mais uma vez um problema recorrente para mim em Helsinki: as portas finlandesas. Chego ao McDonald’s em frente à estação central de trem e me deparo com três entradas separadas, nenhuma delas sinalizada com algo do tipo “Entrance” (Entrada).
Dirijo-me à primeira, empurro e puxo a porta, fechada. Encaminho-me para a do meio, fechada também. A terceira e última, claro, estava aberta e consigo enfim entrar.
Não foi a primeira e nem seria a última vez, os finlandeses têm uma lógica com as portas que só eles entendem. Para que ter três entradas em um edifício se só uma fica aberta – e sem sinalização? Além disso, nunca se sabe se elas abrem para fora ou para dentro, isso varia.
É, acho que é hora de ir pra casa...

Carreguei um breve vídeo no YouTube dos gansos e seus filhotes em Suomenlinna:
http://youtu.be/OUEsM3QGb4A

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