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Museu de Arqueologia, obra do "rebranding" de Skopje |
"Can one move an empire as if it were a house?”*
3 Elegies for Kosovo, Ismail Kadare
Depois do Kosovo, a passagem pela fronteira macedônia, também por terra, foi bem mais tranquila – eu já conhecia a mecânica do processo e esperei calmamente pelo meu passaporte ser devolvido, já dentro da van. A chegada a Skopje, a capital do país, com 500 mil habitantes, é que causaria surpresa. Encontrei um canteiro de obras, com palácios e pontes em construção, os guindastes gigantes pipocando na região central. É que a Macedônia vive um processo de “
rebranding”, um neologismo até em inglês, que dá nome à tentativa de mudar a imagem existente de um país. Eu nunca podia esperar que a Macedônia estaria atravessando uma situação parecida com a do Brasil...
O governo macedônio batizou de “Skopje 2014” a iniciativa de revolucionar a capital visualmente, erguendo nada menos que 20 novos edifícios e 40 monumentos, de gigantescas estátuas de bronze a um portal de mármore ao estilo do Arco do Triunfo parisiense. A ideia é criar uma imagem mais “clássica” da cidade, com o objetivo de atrair a indústria do turismo mundial e o capital financeiro sem fronteiras - aproveitando para reafirmar a própria visão da história em meio ao processo.
Os críticos da reforma urbana de Skopje fazem as mesmas observações ouvidas no Brasil, de que um país não se faz de monumentos, mas de investimento em saúde, educação, moradia etc. O custo das obras não é divulgado, mas estimativas avaliam em até 500 milhões de euros (R$ 1,5 bilhão) o valor total. É triste ver como até nisso nossos escândalos são maiores do que os dos outros... Com esse dinheiro eles vão construir 20 edifícios e 40 monumentos, enquanto só o Estádio Mané Garrincha, em Brasília, custou 384 milhões de euros (R$ 1,15 bilhão). Mas o assunto aqui é a Macedônia.
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"Guerreiro a cavalo" e a bandeira macedônia, no centro da capital |
Apesar de ser um país pequeno, com apenas 2 milhões de habitantes, a história macedônia é rica – e confusa, como quase tudo nos Balcãs. Quem colocou o nome da região no mapa foi Felipe II, um rei que submeteu os gregos entre 359 e 336 Antes de Cristo, dando início ao império que seu filho, Alexandre, o Grande, expandiria até a Índia nas décadas seguintes. Essa é a imagem que o governo nacional quer difundir, embora de maneira velada, para não aprofundar o conflito com os gregos...
No processo de “
rebranding” de Skopje foi erguida uma enorme estátua de bronze de um homem barbado com o punho erguido, no lado norte do Rio Vardar, batizada apenas de “Guerreiro”. Bem na sua frente, do outro lado do rio, a uns 300 metros de distância, construíram outro monumento, um homem a cavalo, de espada em riste, como que respondendo à saudação do primeiro gigante – este nomeado simplesmente “Guerreiro a cavalo”. Não está escrito em lugar nenhum, mas todos na capital sabem que são respectivamente Felipe II e Alexandre, o Grande, montado no seu famoso cavalo Bucéfalo.
Roma submeteria os macedônios em 168 BC e a região, no meio de uma rota comercial importante entre Bizâncio e o Mar Adriático (a Via Ignatia) manteve suas cidades prósperas. Com a divisão do Império Romano em duas partes, a área ficou sob controle de Constantinopla e da Igreja Ortodoxa.
A Macedônia foi sérvia por quase 200 anos, até a Batalha do Kosovo (1389) decretar o domínio otomano nos Balcãs pelos próximos 500 anos. Cristãos se tornam cidadãos de segunda classe, embora os turcos permitissem aos macedônios que mantivessem sua cultura, com restrições a novas igrejas. São desse período as grandes construções turcas em Skopje, a
Kamen Moste (Ponte de Pedra), os banhos turcos, uma série de mesquitas e a
Carsija, o antigo bairro turco que fica ao norte do rio, uma parte da cidade que se mantém ao largo do “
rebranding”.
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Bit Pazar, na Carcija, traços vivos da herança turca |
Em ruas estreitas e calçadas com pedras irregulares, casarões otomanos dividem espaço com pequenas lojas vendendo de tudo: jóias, tapetes, brinquedos antigos, ferros de passar a carvão, relógios de corrente e vestidos muçulmanos. No ar espalha-se o tentador cheiro dos
kebapcis assando nas grelhas, pequenos bolinhos de carne do tamanho de um dedo cujo nome e a quantidade de unidades servidas por porção varia, dependendo do país balcânico. Em Skopje eles vêm em múltiplos de cinco, sete ou onze, acompanhados de pimentões verdes assados e pão.
No limite norte da
Carcija ainda funciona o
Bit Pazar, um mercadão ao estilo turco, praticamente uma feira coberta, com frutas, verduras, carne, queijos e afins anunciados como nos dias otomanos. No final do século XIX, com o declínio acentuado do Império Turco, surgem os movimentos de independência na Macedônia, com a consequente repressão, levando a uma série de massacres de camponeses no começo do século XX. Em 1912, Sérvia, Grécia, Bulgária e Montenegro declaram guerra à Turquia, no que se converte na Primeira Guerra Balcânica, lutada em sua maior parte em solo macedônio. Os turcos são expulsos, mas em seguida é a vez de a Bulgária entrar em combate contra seus antigos aliados – rapidamente derrotados, os búlgaros se associam a Alemanha e Áustria na Primeira Guerra Mundial e reocupam a Macedônia.
No final do conflito, o território macedônio é dividido entre a Grécia e o Reino dos Sérvios, Croatas e Eslovenos (a chamada Iugoslávia Roialista). Durante a Segunda Guerra Mundial, os
partisans de Tito lideram a resistência aos alemães e búlgaros, prometendo aos macedônios que o seguissem o
status de república na futura Iugoslávia comunista, o que se confirma, a partir de 1946.
É das cinco décadas seguintes que datam os monstruosos blocos de apartamento ao estilo soviético ao redor do centro e na periferia de Skopje. A nacionalização da agricultura e indústria também não deixou saudade, mas sob o comando de Tito o país ganha sua primeira gramática oficial (em 1952) e a Igreja Ortodoxa Macedônia é criada (em 1967, no aniversário de 200 anos da abolição do Arcebispado de Ohrid pelos gregos, que continuam sem reconhecer a autoridade da versão macedônia do clero até hoje).
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Madre Teresa e os trocadores de figurinha da Copa |
Falando em religião, Skopje é a cidade natal de uma personagem emblemática para os católicos. Gonxha Agnes Bojaxhiu nasceu por lá, em 1910, em uma família de origem albanesa – esse era o nome da Madre Teresa de Calcutá antes de se tornar famosa pelo cuidado aos miseráveis da Índia. No centro da capital, no local em que ficava uma pequena igreja onde ela foi batizada, destruída pelo terremoto que arrasou a cidade em 1963, foi construído um memorial e pequeno museu em homenagem a ela. Quando cheguei por lá havia uma multidão em volta da estátua da Madre, que achei ser algum grande grupo de peregrinos – era na verdade um grupo de adolescentes trocando figurinhas da Copa do Mundo...
Depois de dois dias em Skopje, sigo rumo sul, em direção a Ohrid, uma cidade a 200 quilômetros de distância, à beira do lago de mesmo nome, na fronteira da Albânia, um dos mais profundos da Europa, com quase 300 metros em alguns pontos. O lago é habitado por uma espécie de truta ancestral, que nada por lá desde antes do último período glacial, 11 mil anos atrás – presente em quase todo menu de restaurante, na verdade a opção dever ser evitada, por estar em risco de extinção.
À beira do Lago, Ohrid concentra um pouco de tudo o que a Macedônia tem de melhor: montanhas nevadas, águas transparentes, casarões otomanos espalhados pelos morros, simpáticos e velhos carros do período comunista (os chamados
yugos), além de uma coleção invejável de igrejas ortodoxas em cenários à altura.
A cidade já era um centro cultural e comercial no século IV Antes de Cristo, no meio da rota entre o Adriático e Bizâncio. Depois das invasões eslavas do século VI e VII da Era Cristã, torna-se também um núcleo religioso da Igreja Ortodoxa. Em 862 dois monges ortodoxos de origem grega (São Cyril e São Methodius) são mandados pelo imperador bizantino para difundir a fé e a escrita entre os eslavos recém-chegados à Morávia, atual República Checa. Um discípulo deles, São Kliment, cria e consolida o alfabeto cirílico, usado até hoje pelos países eslavos. Acompanhado de outro monge, São Naum, ele se fixa em Ohrid, para disseminar a capacidade de ler e escrever no sul da Macedônia, onde juntos criam a primeira universidade eslava, no final do século IX.
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Igreja Sveti Jovan at Janeo, no Lago Ohrid |
Na minha chegada ao hotel sou recebido por Damyan, um macedônio na casa dos 40 anos, que fala inglês fluentemente. Pensando que eu era inglês (provavelmente por causa da origem da minha reserva), ele imediatamente me convida para ver um jogo da
Premier League que estava para começar – e fica ainda mais contente ao descobrir que eu era brasileiro. Ele me serve uma dose de
rakia, o característico
brandy produzido em casa mesmo, para encarar o inverno nos países dos Balcãs (pode ser destilado de uvas, peras ou ameixas, dependendo do que estiver à disposição).
Sentamos para conversar e um pouco depois aparece a mãe dele, Vera, uma senhora de setenta e poucos anos que não falava inglês – o que não a impediu de fazer todas as perguntas que quis para mim. Quantos anos eu tinha? Que língua se fala no Brasil? Era perto da Bolívia, não era? Eu era casado? Onde estava minha mulher? Tinha filhos? “Ah, que graça só uma cachorrinha...” Mas o que significa Baleia em português? E ela é muito gorda? Então você deu esse nome por causa de um livro e agora ela ficou gorda? “Perfeito...” O interesse de Vera pelo país do Altiplano explicava-se por uma antiga amiga boliviana da faculdade, em Belgrado.
Damyan não continha as risadas ao traduzir cada pergunta e resposta à mãe, servindo-se de um pouco mais de
rakia da garrafa transparente e sem rótulo nos intervalos. Depois da terceira dose já tinha prometido me levar para conhecer o lado sul do lago, de carro, no dia seguinte. Ele me conta que Vera é uma enfermeira aposentada e que seu pai é um ex-oficial da exército iugoslavo, que para sorte dele “se aposentou antes da desgraça na Bósnia” – ele hoje vive em Belgrado.
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Afrescos da Igreja Sveti Kliment i Pantelejmon |
Agradeço pela
rakia, me despeço de Vera e saio para dar uma volta pela cidade, ao entardecer. As vistas do alto da fortaleza de Cars Samoil (construída no século XI) e da igreja Sveti Jovan at Kaneo são de cair o queixo, assim como os afrescos dentro dos templos. Na igreja de Sveti Kliment i Pantelejmon, por exemplo, eles cobrem as paredes do chão ao teto – lá também estão enterradas “partes” de São Kliment, o inventor do alfabeto cirílico, me informa o funcionário de plantão.
No dia seguinte, descubro que a promessa de Damyan tinha sobrevivido aos efeitos da
rakia e no começo da tarde caímos na estrada, a bordo de um Corsa dos anos 90. Aproveito a viagem para perguntar sobre os anos da Iugoslávia, e ele me diz que tem “boas e más lembranças”. “O lado bom, era que tínhamos o melhor passaporte entre os países do Leste, podíamos viajar para qualquer lugar”, conta, falando dos anos que passou na Inglaterra, quando ainda era estudante, e depois na África do Sul, trabalhando como crupiê em um cassino.
Depois de uns 20 minutos, chegamos ao Monastério de Sveti Naum, o outro monge fundador da primeira universidade eslava da história, que mantinha ali um centro de educação no século IX. A igreja que hoje ocupa o local, também coberta por incríveis afrescos, é “um pouco posterior”, Damyan me explica, do século XVI. Se não bastasse o cenário surreal do lago, um casal de pavões vive solto em volta do templo.
O governo macedônio promoveu um referendo para consultar a população sobre a saída ou não da federação iugoslava, em setembro de 1991, em que 74% votaram a favor. A independência foi decretada em janeiro do ano seguinte, com o presidente Kiro Gligorov conseguindo uma proeza notável, ao negociar com Belgrado a retirada pacífica do exército iugoslavo – a Macedônia foi a única das seis repúblicas a deixar a Iugoslávia sem ter que lutar uma guerra.
Se com os sérvios ao norte não houve problemas, a independência aprofundou os conflitos na fronteira sul, com os gregos. Mais da metade do território historicamente ocupado pela Macedônia fica atualmente na Grécia e a primeira bandeira adotada pelos macedônios, com a Estrela Vergina no centro, um símbolo roialista, foi visto pelos gregos como precedente para reclamar terras sob seu controle no futuro.
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Um dos pavões da igreja no antigo Monastério de Sveti Naum |
Pressões dos gregos obrigaram a Macedônia a adotar um nome provisório logo após a independência,
FYROM (que em inglês é a sigla para Antiga República Iugoslava da Macedônia), como alternativa para garantir sua admissão na ONU (Organização das Nações Unidas). Em 1994, quando os Estados Unidos reconheceram o novo país, a Grécia respondeu com um embargo econômico. No ano seguinte os macedônios mudam a bandeira para a versão atual, um círculo dourado cercado por raios vermelhos e amarelos – que não chega a ser exatamente um modelo de pacifismo, lembra bastante o símbolo imperialista do Japão na Segunda Guerra Mundial.
Em 2005 a Macedônia fez seu pedido formal de adesão à União Europeia, prontamente bloqueado pela Grécia, que mantém posição semelhante em relação à Turquia, em razão do conflito na Ilha de Chipre. Três anos depois, a situação se repetiria para os macedônios na sua tentativa de entrar para a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), a aliança militar do Ocidente, também objetada pelos gregos.
Internamente, porém, a maior questão na Macedônia é com a minoria albanesa – que representa cerca de 20% dos 2 milhões de habitantes do país. Durante a campanha sérvia para expulsar os albaneses do Kosovo e os bombardeios da Otan, em 1999, cerca de 400 mil refugiados foram abrigados do lado macedônio da fronteira.
Mesmo assim, o UÇK (Exército de Libertação Nacional, a versão macedônia do UÇK kosovar), promoveu ataques em 2001. O conflito durou seis meses, até a assinatura do
Ohrid Framework Agreement, um acordo que garantia alguns direitos à minoria, como a possibilidade de oferecer educação na língua albanesa e o estabelecimento de cotas étnicas para contratações no setor público.
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Estátua de guerreiro clássico e a ponte turca, o que é mais macedônio? |
No dia seguinte, na minha volta para Skopje, volto pensando na tentativa de “
rebranding” do país. Depois de visitar Ohrid, chego à conclusão de que há coisas que nem os políticos conseguem arruinar. Enquanto os
kebapcis estiverem assando na
Carcija, do outro lado do rio, e a
rakia ainda estiver sendo generosamente servida aos visitantes nos casarões otomanos em volta do lago, não há quantidade de prédios em estilo clássico ou estátuas de bronze capazes de mudar a verdadeira imagem da Macedônia.
*“Pode alguém mover um império como se fosse uma casa?”
3 Elegies for Kosovo, Ismail Kadare
Carreguei dois videos curtos no
YouTube, um com a vista do Lago Ohrid do meu quarto na pousada de Damyan, e outro com os incríveis afrescos ortodoxos da igreja Sveti Naum.
Lago Ohrid
http://youtu.be/aHYZwzQ2V5c
Sveti Naum
http://youtu.be/9dzVThvQdlk