quinta-feira, 31 de outubro de 2013

O ódio está vivo em Viena

A mãe, a criança e a fläkturm
Augarten Park, Viena (Áustria), meio da tarde. De frente para a maça gigantesca de concreto, observo a descomunal fortaleza nazista, construída para desempenhar o duplo papel de bunker e artilharia antiaérea.
Na minha frente estaciona uma jovem mãe, empurrando um carrinho de bebê. De dentro dele sai uma fina voz de criança. Estou tão perto que não consigo deixar de escutar as palavras em alemão:
Was ist das? (O que é isso?)”
Dies ist ein fläkturm... (Isso é uma fläkturm...)”, responde a mãe, com a voz mais doce do mundo, como se estivesse falando de um pardal ou um coelhinho.
Fläkturmes eram essas fortalezas construídas pelos alemães entre 1943 e 1944, na Viena do Anschluss, quando a Áustria era uma província do Reich Nazista. Com paredes de cinco metros de concreto maciço, eram praticamente indestrutíveis. Erguidas para resistir aos bombardeios aliados, podiam abrigar até 30 mil soldados e tinham controle sobre o próprio abastecimento de energia e água. Seis delas ainda estão em pé, espalhadas pela capital austríaca, duas delas no Augarten.
No concreto, atrás da mãe e da criança, havia uma pichação em inglês: “No border, no nation (Sem fronteira, sem nação)”. Corta.

Fläkturm, uma das duas no Augarten
Blutgasse, centro de Viena, meio da manhã. Caminho pelo Innere Stadt, ainda maravilhado com a escala da cidade, especialmente nas redondezas da Stephansplazt e da catedral.
Na minha direção vejo surgir um labrador preto, puxando a coleira com vontade, feliz, com a língua para fora. Ao se aproximar de mim, ele vem seco para me lamber. Sorrio para a dona, uma senhora por volta dos 50 anos, e ofereço a mão ao cachorro.
Ela me lança um olhar de ódio e puxa o bicho com violência. Mesmo assim, ele consegue encostar a língua na ponta dos meus dedos, antes de ser arrastado para o outro lado da rua. Corta.

Favoritenstrasse, começo da manhã. Espero pelo sinal de pedestre ficar verde para atravessar a avenida de três faixas, junto com um grupo de pessoas. É um belo dia de sol, apesar do frio de uns sete graus.
O farol de pedestres esverdeia e começamos a cruzar, pela faixa. Uma BMW cinza segue calmamente pela avenida oposta e começa a se enfiar pelo meio das pessoas, sobre a faixa. Sem acreditar, paro e olho para o motorista, apontando para ele o verde no sinal de pedestres.
O homem, de uns trinta e poucos anos, vestindo um terno reluzente, olha através de mim. Para ele não sou mais que um obstáculo no asfalto. O olhar dele é de espanto. Como eu poderia ousar me dirigir a ele? O carro acelera e atravessa no meio das pessoas - afinal, ele tem que chegar antes.
Militares austríacos, em pintura no Heeresgeschichtliches Museum
Olho em volta e ninguém parece surpreso. Uma mulher de vinte e poucos anos é a única a sustentar meu olhar. Faço um sinal para ela batendo na cabeça e falo, em português mesmo, parafraseando o Raul: “É isso? Quando acabar, o maluco sou eu?” Ela concorda, acenando positivamente, desconcertada.
Não foi a última vez que vivi cena semelhante. Em Viena, a faixa de pedestres é só um enfeite. A consequência é que há pessoas que também não respeitam mais o sinal vermelho, atravessam as ruas no meio do tráfego pesado – vi até um pai desafiando os carros empurrando um carrinho de bebê. Corta.

Alsergrund, uma rua secundária, meio da tarde. Ainda não tinha almoçado e a fome apertava. Avisto uma cervejaria e entro. Ao lado da entrada, sento-me em uma mesa vazia e começo a analisar o cardápio, em alemão.
Poucos segundos depois sou recebido por uma mulher, grunhindo em alemão. Peço desculpas, em inglês, por não entender, e ela responde na língua dos britânicos, dizendo que a mesa estava reservada. Olho ao redor e não vejo sinal da reserva. Explico isso a ela, pedindo desculpas outra vez.
Irritada, ela me diz que ainda não colocou o sinal, mas que vai precisar da mesa às 19h30. Olho no relógio: são 15h10. Sorrio e digo que não vou demorar mais do que uma hora.
Passo o resto da refeição sob o olhar carregado da garçonete. À minha volta, no salão da cervejaria, há apenas três mesas ocupadas e pelo menos outras dez vazias. Corta.

Em cartão postal à venda em Viena, olha quem declara amor à cidade
Mariahilf, começo da noite, em uma rua perto do albergue. Entro em um pequeno supermercado para comprar uma água. Ao chegar ao caixa, deparo-me com uma longa fila e um só atendente trabalhando, em uma velocidade alucinante. Ele passava os produtos pelo leitor com a velocidade e precisão do Nikki Lauda, cobrava, devolvia o troco e comunicava algo em alemão aos clientes, como se fosse um pit stop de Fórmula 1.
Observo a cena, impressionado, quando um segundo caixa é aberto. Antes da nova atendente dizer uma palavra, um homem de meia idade, uma mulher nos seus trinta e poucos anos e um adolescente, que estavam atrás de mim na fila, atropelam uns aos outros e me atropelam, sem proferir uma palavra, em direção ao segundo balcão.
Em mais alguns segundos faço meu pit stop com o Lauda, agradeço e saio. Corta.

Burgring, nas proximidades da Karsplatz, meio da tarde. Passo em frente a uma incrível loja de antiguidades, com todo tipo de mapas, livros, condecorações, adagas, capacetes militares e soldadinhos de chumbo. Tento abrir a porta e ela está trancada. Olho para dentro e em seguida escuto o barulho do destravamento eletrônico. Entro.
No interior, dois homens conversam com um casal de idosos, aparentemente os donos do estabelecimento. Pronuncio um esperançoso “guten tag (boa tarde)”, no que sou sonoramente ignorado.
Observo as prateleiras e vitrines por alguns minutos, enquanto escuto os dois velhinhos e os outros dois homens rindo e olhando na minha direção, enquanto escuto palavras como “turisten”, até que a senhora diz algo em alemão na minha direção. Peço desculpas, em inglês, dizendo que não falo alemão.
Of course you don’t (É claro que você não fala)”, ela responde, ironicamente, em um inglês perfeito, olhando para os outros interlocutores. Em seguida, com um olhar de desprezo, emenda: “Can I help you? (Em que posso ajudá-lo?).
Reich Nazista, com a Áustria, do Heeresgeschichtliches Museum
Não penso duas vezes: “I don’t think so, your not willing to anyway (Acho que não, você não está interessada, de qualquer jeito)”. E continuo: “I don’t speak German, but I can understand a little, and this you’ve just done is a real bad thing to do. As an educated person, you should know that by now (Eu não falo alemão, mas consigo entender um pouco, e isso que vocês acabaram de fazer é uma coisa realmente feia de se fazer. Como uma pessoa educada, você deveria saber disso a essa altura)”.
Viro as costas e saio da loja, sob o olhar embasbacado de quem fez cocô na sala dos dois velhinhos e dos outros dois homens. Corta.

Neubau, Chelsea Bar, noite. Entro e vejo dois caras fumando no balcão, assistindo a uma partida da Bundesliga. Sento, guardando uma banqueta de distância deles - o melhor que eu podia fazer para evitar receber a fumaça diretamente -, e peço uma cerveja ao barmen, que também fuma.
Em poucos minutos uma garota chega, senta na banqueta à minha direita e começa a conversar com o barmen. Ela acende um cigarro e coloca no cinzeiro, exatamente na minha frente.
Incrédulo, peço gentilmente se ela poderia colocar o cinzeiro um pouco mais para o lado. Ela me olha com ódio e diz, em inglês, com um sotaque alemão carregado: “This is a smoking area (Essa é uma área de fumantes)”.
Respondo na lata: “Of course this is a smoking area, Viena is a big smoking area. My lungs are a smoking area here (Claro que essa é uma area de fumantes, Viena é uma grande área de fumantes. Meus pulmões são uma área de fumantes aqui)”.
Ela não se abate: “If you don't like it, you shouldn't be here (Se você não gosta, não deveria estar aqui)”.
Replico: “Is not like I'm asking you not to smoke here, I'm just asking you not to smoke inside my nose (Não é que eu esteja pedindo para você não fumar aqui, só estou pedindo para você não fumar dentro do meu nariz)”.
Levanto e dou mais uma: “Oh, and you've got that one right, I shouldn't be here at all... (Ah, e nessa você acertou, eu não deveria estar aqui de jeito nenhum…)”
Ela empurra o cinzeiro um pouco para o lado, me dá as costas e continua a conversar com o barmen, que me olha com desaprovação. Sigo em direção ao banheiro e volto uns minutos depois, para terminar minha cerveja e ir embora dali o mais rápido possível.
Quando me sento, ela pede desculpas e tenta ser amável. Digo que está tudo bem, mas não quero saber de conversa. Viro o que sobrou da cerveja em três goles, levanto e saio. Corta.

Máscara de gás, souvenir à venda no Heeresgeschichtliches Museum
Trem Munique-Viena, começo da manhã. Entramos no vagão, com uma passagem de primeira classe na mão. Sentamos e pouco depois somos retirados dos lugares por outros passageiros que diziam ter uma reserva para aqueles assentos. Perambulamos pelo trem e ele está lotado. Vemos outras tantas pessoas na mesma situação que nós, reclamando com um funcionário.
Encostamos no grupo. Uma mulher nos explica, em inglês, que a confusão é por causa da Oktoberfest e nos diz que podemos pedir nosso dinheiro de volta, uma vez que não há onde sentar. Reclamamos para o atendente, que mal responde, impassível. Não resisto: “Is this Germany, am I in the right country (Aqui é a Alemanha, estou no país certo?)”, espalhando algumas gargalhadas ao nosso redor.
Fizemos a viagem de quatro horas sentados no chão, onde até senhoras tentavam se equilibrar, recostadas na parede do vagão. Em Viena, na estação, vamos direto ao guichê da companhia, para reclamar. O atendente responde com a maior calma, dizendo que sem reserva não se senta. Pergunto se eles têm alguma preocupação com a segurança dos passageiros, que em caso de acidente podem sofrer algo grave, que isso coloca a companhia em uma posição ideal para um processo. Ele parece entender que não somos idiotas e nos entrega um formulário para enviar à Alemanha, uma vez que compramos a passagem de uma empresa alemã, apesar do trem ser austríaco. Então, não havia nada que eles pudessem fazer, era preciso reclamar aos alemães...
Gentilmente, ele nos manda à sala vip - uma vez que tínhamos uma passagem de primeira classe - e sugere que falemos com outro atendente. Lá a estória muda, um careca gélido nos diz que não pode fazer nada, que temos mesmo que reclamar aos alemães.
Passagem vendida por uma companhia alemã para um trem austríaco, a velha burocracia que confundiu e guiou os judeus ao Holocausto, primeiro rastreando, apropriando-se dos seus bens, reunindo-os em guetos, aproveitando o trabalho que podiam oferecer e depois, aos poucos, exterminando-os, metódica e sistematicamente.
Percebemos que não havia o que ganhar ali e vamos embora. Corta.

Civilização e barbárie, monumento a Schiller e deportações
A Primeira Guerra Mundial começou com uma ação austríaca na Sérvia, após culpar os sérvios pelo assassinato do arquiduque Franz Ferdinand em Sarajevo (Bósnia), mergulhando o mundo em um turbilhão que deixou 15 milhões de mortos.
Adolf Hitler era austríaco (nasceu em Braunau am inn, no noroeste do país) e viveu parte da juventude em Viena, tentando ser artista. Deve ter experimentado ódio suficiente para chocar o ovo da serpente.
Se você visitar o Heeresgeschichtliches Museum, o museu da guerra, em Viena, vai se deparar com algo inusitado. Junto ao café, na lojinha de lembranças, entre os itens à venda como souvenires estão réplicas de máscaras de gás - há até filtros de reposição à disposição para comprar.
Nas últimas eleições legislativas na Áustria, realizadas em setembro, os dois partidos radicais de direita (FPÖ e BZÖ), conquistaram juntos 24% dos votos e garantiram 40 cadeiras no congresso. Nos discursos do FPÖ, é comum a associação entre a presença de estrangeiros na Áustria e a taxa de desemprego. A prática é antiga e conhecida, oitenta anos atrás os nazistas faziam o mesmo – só que no lugar da palavra “imigrantes” eles preferiam outra: “judeus”. Os radicais da direita defendem a deportação dos estrangeiros, até porque, pelo menos por enquanto, não podem confiná-los em campos.
Ninguém me disse, eu estive lá e vi. O ódio está vivo em Viena, ofegando e salivando. O que respingou em mim foram só alguns perdigotos sem consequência, mas foi o suficiente pra sentir um pouquinho na pele o que é a intolerância. E posso dizer, dói...

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