sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

NHS, como funciona o SUS britânico

Camas de hospital no Estádio Olímpico de Londres, em 2012
Julho de 2012, zona leste de Londres. Chega o grande dia da abertura das Olimpíadas, em uma cerimônia coreografada minuto a minuto, com o objetivo de celebrar o esporte, historia e cultura britânicos. Em dado momento, dezenas de camas de hospital adentram o gramado do Estádio Olímpico, cada uma com uma criança deitada, empurradas por enfermeiras vestidas de azul. Logo em seguida, no clima de musical, médicos trajados de branco dançam em volta dos leitos, em um ato que tomou quase quatro minutos de toda a cerimônia. No centro disso tudo, uma sequência de luzes gradualmente começa a se acender, formando uma gigantesca sigla bem no meio do campo: NHS (National Health Service).
Os britânicos têm um imenso orgulho do seu serviço universal de saúde, que presta atendimento gratuito e universal a todos os cidadãos, custeado exclusivamente pelos impostos. Criado em 1948, durante a estruturação do Welfare State (o Estado do Bem-estar Social), o sistema é centralizado e administrado integralmente pelo governo, deixando pouco espaço aos serviços privados nas terras da rainha. Se fosse pensado algo parecido para a cerimônia de abertura das Olimpíadas do Rio de Janeiro de 2016, com a glorificação do SUS (Sistema Único de Saúde), qual seria a reação da plateia? A resposta dá a medida da diferença entre os dois modelos de saúde pública.
O NHS impressiona só pelos números. O serviço é o quinto maior empregador do planeta, com 1,7 milhão de funcionários – atrás do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, do Exército chinês, da rede varejista Walmart e da cadeia de lanchonetes McDonald’s. São 146 mil médicos e 275 mil profissionais de enfermagem. Só para lembrar, o Reino Unido tem uma população de 63 milhões de pessoas, enquanto o Brasil já vai pelos 200 milhões...
Um sistema desse porte não pode funcionar sem investimento – e pesado. O governo britânico gasta em torno de 100 bilhões de pounds (R$ 380 bilhões) por ano com o NHS, o equivalente a 6,25% do PIB (Produto Interno Bruto) do país em 2012. Enquanto isso, no Brasil, o SUS recebe 3,8% do PIB nacional. A questão central no funcionamento do serviço por aqui, porém, não está apenas no dinheiro.
A homenagem ao NHS na abertura da Olimpíada
Uma organização, para dizer o mínimo, diferente da nossa, está no centro do funcionamento do NHS – é um sistema que tenho dúvidas se agradaria aos médicos brasileiros. Para começar, o National Health Service (e em última instância, o Estado) é o principal empregador dos profissionais de saúde na Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte. Médicos e enfermeiras podem ter um segundo emprego e prestar serviços particulares, mas poucos conseguem viver só disso.
Outra característica única do NHS é a forma como o acesso aos serviços médicos é administrado. Se você precisa de algum atendimento, tudo começa com uma visita a um GP (General Practitioner), o chamado clínico geral no Brasil. Esse profissional vai examiná-lo e, se julgar necessário, encaminhar o caso a um especialista. Mesmo que você tenha um plano de saúde privado (sim, existem aqui também), não é permitido a um especialista agendar uma consulta solicitada diretamente pelo paciente – é preciso antes passar pelo GP.
Os GPs funcionam como os moderadores do sistema, filtrando e direcionando os atendimentos. Essa centralização é a chave para o serviço funcionar, mantendo os custos sob controle – pelo menos até aqui.
Como qualquer serviço de saúde no mundo, o NHS também está sob uma pressão crescente. O envelhecimento da população e o avanço da tecnologia médica vêm aumentando a demanda e ampliando os custos – e em um período em que há menos recursos disponíveis, dada a crise econômica que se abate sobre a Europa desde 2008.
Parece um shopping center, mas é um hospital público, o Royal Derby
A estimativa no Reino Unido é de que dois terços dos leitos hospitalares são ocupados por pessoas com mais de 65 anos. Hoje mais pessoas conseguem sobreviver a quadros de câncer, derrames e ataques cardíacos, por exemplo, mas muitos desses ficam com sequelas que requerem tratamentos caros e cuidados intensivos.
E há ainda os chamados “males do estilo de vida”: um em cada quatro britânicos é obeso, número que dobrou nos últimos 40 anos e alimenta os casos de diabetes, câncer e doenças coronárias – o que acarreta ao NHS um gasto estimado de 4 bilhões de pounds (R$ 15,2 bilhões) anuais. Ao lado da obesidade, complicações de saúde derivadas do tabagismo e do abuso do álcool abocanham outros 3 bilhões de pounds (R$ 11,4 bilhões) cada por ano.
Todos esses fatores se juntam para formar a “tempestade perfeita” no inverno, quando o volume de atendimentos nos hospitais aumenta consideravelmente em decorrência de doenças relacionadas ao frio, o que já levanta previsões de que o próximo, que começa no sábado, pode ser o pior de todos os tempos. No inverno passado o NHS simplesmente não conseguiu cumprir as metas mínimas do tempo em que um paciente deve receber atendimento entre janeiro e março.
O governo já colocou em prática um processo de reforma do NHS, com medidas que vão do fechamento de hospitais menores a cortes de pessoal – a meta é que o sistema economize 20 bilhões de pounds (R$ 76 bilhões) até 2015. Mas há outras medidas, que aos olhos dos médicos brasileiros podem parecer vindas diretamente de Caracas...
O governo quer o NHS funcionando de segunda a domingo, e já planeja obrigar os médicos a trabalhar durante os finais de semana, dando consultas e realizando exames, não só em regime de plantão. Atualmente há uma cláusula contratual trabalhista que proíbe o expediente, mas isso não vem sendo considerado um problema. “Há uma cláusula que diz que as organizações não podem forçar um médico a trabalhar no fim de semana – eu acho que podemos ter essa cláusula removida”, afirmou à BBC o diretor médico do NHS, Bruce Keogh.
Considerando que o serviço público é o principal pagador e empregador dos médicos no Reino Unido, não dá nem para mudar de emprego – pelo menos não sem mudar de país... A iniciativa não é puro ato de sadismo, o governo tem em mãos uma pesquisa mostrando que 4.400 pessoas morrem por ano como resultado de uma cobertura inadequada dos quadros profissionais hospitalares durante os finais de semana.
Royal Derby Hospital por dentro
Um levantamento publicado pelo jornal The Guardian nesta semana oferece outra medida de comparação entre as classes médicas do Reino Unido e do Brasil. Uma pesquisa mostrou que médico foi a quinta profissão mais bem paga por aqui (excluídas as categorias de atletas profissionais e o showbiz) neste ano.
A média salarial de um médico britânico foi de 63,7 mil pounds (R$ 242 mil) por ano em 2013, o equivalente a 5,3 mil pounds (R$ 20,2 mil) mensais. A título de referência, o salário mínimo na Inglaterra gira em torno de 12 mil pounds (R$ 45,6 mil) anuais, ou seja, 1 mil pounds (R$ 3,8 mil) por mês.
No polêmico programa Mais Médicos do governo petista, a bolsa para os médicos necessários no interior do país é de R$ 10 mil por mês, além de auxílios moradia, transporte e alimentação, custeados pelo município onde vão atuar. Esses valores não se mostraram muito atrativos aos profissionais brasileiros, o que abriu a portas aos estrangeiros.
Dizem que perguntar não ofende. Será que há muitos médicos no Brasil dispostos a se mudar para a Inglaterra, para ganhar R$ 20 mil mensais, trabalhar aos finais de semana e ter o governo como único empregador? Ah, esse salário é bruto, antes do imposto de renda, do qual aqui é difícil escapar...

Veja abaixo o trecho da cerimônia de abertura da Olimpíada de Londres 2012 com a homenagem ao NHS: 
http://vimeo.com/47528368

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Façam suas apostas

Betfred, na nobre esquina da rua da catedral, em Derby
O assunto não é exatamente uma novidade, mas pegou fogo na semana passada aqui na Inglaterra, com a prisão de seis pessoas no último domingo, acusadas de envolvimento na combinação de resultados em partidas de futebol para beneficiar apostadores. Entre eles há até um jogador profissional, DJ Campbell, atualmente no Blackburn, que disputa a Championship (a Segunda Divisão inglesa), mas com passagens por três clubes da Primeira Divisão (a Premier League), Birmingham, Blackpool e Queens Park Rangers.
Apostar em jogos é mais do que uma simples brincadeira de fim de semana no Reino Unido, é um hábito fortemente arraigado na cultura e que movimenta bilhões de pounds anualmente. Uma estimativa da Sportradar, uma agência de monitoramento de apostas, aponta que o segmento gira entre US$ 700 bilhões e US$ 1 trilhão por ano (algo entre R$ 1,6 trilhão e R$ 2,3 trilhões) no mundo todo.
Atualmente a indústria de apostas é um gigante nas terras da rainha e o futebol tomou a dianteira como esporte favorito, à frente até das tradicionais corridas de cavalos – 70% do volume de apostas é destinado a ele. A profunda crise econômica na qual o país se arrasta desde 2008 deu fôlego extra ao negócio do jogo por aqui. Não só há mais gente vulnerável à tentação de ganhar dinheiro fácil nas apostas, mas os agentes, transformados em grandes corporações, passaram a ocupar os melhores pontos comerciais nas cidades, galgando ao que os ingleses chamam de High Street. Em Derby, por exemplo, na principal rua da região central, a área mais nobre (e cara) para o comércio, em um trajeto de pouco mais de duzentos metros contei cinco casas de apostas.
Do outro lado da rua, em frente à Betfred, uma loja da Ladbrokes
A impressão ao entrar em uma delas é a de estar em uma “lotérica tecnológica”, com telões para acompanhar os eventos e máquinas de autoatendimento para cada modalidade. Há uma só para o futebol, claro, e não é preciso nem falar inglês para jogar. De olho no polpudo mercado dos imigrantes, todas as informações estão disponíveis nas línguas clássicas (francês, espanhol e alemão), mas também em chinês, russo, turco, polonês, checo, romeno e até lituano.
O grande impulso à atividade foi dado mesmo pela tecnologia. Com computadores e algoritmos cada vez mais sofisticados, hoje é possível calcular os chamados odds (a probabilidade de um evento ocorrer e a taxa que a casa de apostas paga em caso de acerto) para qualquer situação – e quase instantaneamente. Além disso, os grandes no negócio do jogo enxergaram de imediato os benefícios da mobilidade digital. Com a popularização dos smartphones, eles passaram a disponibilizar plataformas online que permitem ao apostador jogar de onde estiver, ao mesmo tempo ampliando exponencialmente o alcance do próprio negócio e tornando a atividade potencialmente muito mais viciante.
Ah, e existe uma terceira vertente não menos importante do avanço tecnológico a mover a roda da indústria: hoje é possível acompanhar praticamente qualquer evento esportivo no planeta, não só porque há muito mais partidas sendo transmitidas, mas porque elas estão acessíveis pela internet, via streaming, seja nos canais oficiais dos proprietários dos direitos esportivos ou nos sites “piratas”. Juntando tudo, o resumo da equação é simples: há mais partidas para se apostar, está mais fácil e rápido para a indústria do jogo estabelecer taxas de apostas para esses jogos e toda a informação está globalmente disponível aos apostadores.
Interior de uma unidade da Ladbrokes, a "loteria tecnológica"
Essa combinação tem mais um efeito colateral. Hoje não se aposta apenas em resultados, em quem vai ganhar, de quanto ou em um empate. Pode-se jogar em fatos bem mais triviais, como quem vai ser o primeiro jogador ou o último a marcar um gol na partida, quantos gols terá o jogo, o placar no intervalo, se vai haver um pênalti, quantos escanteios ou até o número de cartões amarelos e vermelhos distribuídos pelo árbitro... Com isso, um mundo de oportunidades se descortina aos apostadores, e uma luz – ou um holofote – se acendeu para o mundo do crime.
Um exemplo de como funciona. Na terça-feira passada eu assistia a Manchester United x Shaktar Donetsk, pela Champions League, uma das raras oportunidades de futebol transmitido em um canal aberto de televisão por aqui. No intervalo do jogo, quando o placar ainda estava zero a zero, fui surpreendido por um anúncio criativo de uma das gigantes do jogo por aqui, a Ladbrokes. Na propaganda, dois caras comuns são levados à presença do Oddsfather (uma brincadeira com o Godfather, como o Poderoso Chefão, clássico personagem mafioso de Marlon Brando no cinema, é conhecido aqui). Eles beijam o anel do “padrinho” e perguntam: “O que você pode fazer por nós?”. O Oddsfather levanta uma placa em que está escrito: “Robey next to score, 7 to 1” (ou seja, o holandês Robie Van Persie, que estava no banco, ser o próximo a marcar no jogo, pagava 7 pounds para cada um apostado). Embaixo da placa, um letreiro anuncia: “Before, 5 to 1” (Antes, 5 para 1).
Resumindo, no intervalo do jogo a casa de apostas lança uma “promoção” – com 45 minutos a jogar, aumenta o valor pago em caso de o artilheiro do Manchester United marcar um gol. Mas ele ainda não tinha nem entrado em campo, e poderia nem entrar... Quem caiu no canto da sereia se deu mal. Van Persie entrou, o Manchester United venceu por 1 a 0, mas o gol foi do meio-campista Jones.
Ligas para apostar: Bulgária, Bahrein, Jordânia ou Omã? 
Como tem o componente cultural, o hábito de apostar não envolve só o cidadão comum, afeta também aqueles diretamente ligados ao esporte: os jogadores. Em uma entrevista à revista FourFourTwo, na edição de novembro, um ex-futebolista falou sobre o assunto. O irlandês Keith Gillespie, com passagens por Manchester United e Newcastle nos anos 90, disse ter perdido 7 milhões de pounds (hoje R$ 26,6 milhões) no jogo. Nas palavras dele: “Futbolistas ainda apostam. Eles gostam da sensação de ganhar, tem tempo e dinheiro”, afirma. “Eu diria que dois a três jogadores por time da Premier League (Primeira Divisão inglesa) apostam excessivamente”.
As prisões desta semana no Reino Unido foram a consequência de duas investigações sem relação entre si, por dois jornais britânicos. A primeira, do Sun on Sunday, ouviu de um ex-jogador profissional com passagens por Reading e Portsmouth, Sam Sodje, que ele recebeu 70 mil pounds (R$ 266 mil) para “cavar” um cartão vermelho, em uma partida do Portsmouth contra o Oldham, válida pela League One (a Terceira Divisão inglesa).
Isso não foi há anos, mas em fevereiro. O vídeo do lance é surreal, mostra Sodje golpeando Lee Barnard, digamos, abaixo da linha de cintura, em uma discussão na lateral do gramado – não uma, mas duas vezes, como que para ter certeza de que o árbitro iria ver (o vídeo do lance pode ser visto aqui: http://www.youtube.com/watch?v=15CXZn_7_T4). Sem saber que estava sendo filmado, Sodje disse ainda ao Sun on Sunday ter intermediado o pagamento de 30 mil pounds (R$ 114 mil) a um jogador escalado em uma partida da Championship (a Segunda Divisão da Inglaterra) para que ele “cavasse” um cartão amarelo. Ainda no vídeo, Sodje afirma ser capaz de realizar feitos semelhantes na Premier League (a Primeira Divisão) e que estava se preparando para atuar em jogos da Copa do Mundo no Brasil.
"Fiesta" de apostas no anúncio da Paddy Power, em Derby... Para quem?
A segunda investigação, do Daily Telegraph, revela o alcance e a complexidade criada pela indústria do jogo, muito além da Inglaterra. Nesse caso, entre os detidos pela polícia britânica estão dois cidadãos de Cingapura, Chaan Sankaran e Krishna Ganeshan. Em uma série de encontros em Manchester, um fixer (o encarregado de combinar os resultados), também de Cingapura, afirma ter o poder de controlar jogos realizados na Inglaterra e que apostadores fazendo uso de sites de apostas na Ásia ganhariam centenas de milhares de pounds com isso.
De acordo com o fixer, o custo de fazer resultados na Inglaterra era “muito elevado”, afirmando que em geral o valor ficava em 70 mil pounds (R$ 266 mil) por jogador envolvido. Ele deu o exemplo de um jogo em que quatro gols precisariam ser marcados, dois em cada tempo, o resultado final da partida não importava. O sinal “de confiança” de que estava tudo certo para iniciar a cadeia de apostas na Ásia seria dado por um jogador no campo. Ele “cavaria” um cartão amarelo logo nos primeiros minutos, para indicar que o acerto estava de pé - pelo que receberia 5 mil pounds (R$ 19 mil). O mesmo fixer previu quantos gols seriam marcados em uma partida no dia seguinte – e acertou.
Loja de tintas? Não, mais uma casa de apostas
Olhando por cima, isso tudo parece a anos-luz do futebol brasileiro. Será? Conto uma estória só para ilustrar. No último dia da minha estadia em Budapeste (Hungria), em outubro, conheci um macedônio que ficou eletrizado ao saber que eu era do Brasil. Não parecia o cara mais confiável do mundo, mas ele não sossegou enquanto não me fez sentar em frente ao computador do albergue, abriu um site de apostas e começou a me questionar sobre as minhas previsões para a próxima rodada do Brasileirão. Tentei me esquivar, explicando a ele que não é nada fácil prever resultados no futebol, que uma das grandes graças do jogo era justamente essa, de que tudo pode acontecer...
Não adiantou, tive que dar meus palpites para toda a rodada. No meio do processo, expliquei a ele que no Brasil não se pode apostar em futebol – pelo menos não legalmente. Ele pareceu surpreso e emendou: “Mas o futebol brasileiro é a grande máfia das apostas!”. Tentei defender a integridade do esporte nacional, ainda que sem muita convicção, e consegui escapar antes que ele começasse a me perguntar sobre a rodada da Série B.
Se o macedônio estava certo ou errado sobre a honestidade do nosso futebol não sei, mas a questão é que há um cara nos Balcãs acostumado a jogar em resultados dos campeonatos brasileiros, da primeira e segunda divisão – e não deve ser o único. Ou seja, as ferramentas estão disponíveis.
Na Inglaterra estão de olho. E no Brasil?
Hoje em dia pouco se fala de qualquer influência de apostadores no Brasil, estamos mais preocupados com besteiras como “malas brancas” (acertos entre times para ganhar jogos que não são muito relevantes para o recebedor do dinheiro) em quase todo final de campeonato. Mas há oito anos, em 2005, tivemos nossa própria “máfia do apito”. Quem se lembra? Os árbitros Edílson Pereira de Carvalho e Paulo José Danelon foram denunciados por interferir em resultados, para beneficiar apostadores em sites fora do país. A consequência foi a anulação – e posterior repetição - de 11 partidas, que mudaram a história do Campeonato Brasileiro daquele ano e fizeram o Corinthians campeão, em detrimento do Internacional. Os dois árbitros envolvidos, embora banidos do esporte, hoje estão soltos, e a ação penal foi suspensa em 2007.
A realidade do futebol brasileiro é um prato feito para os fixers... A grande maioria dos jogadores é mal paga, o calendário deixa clubes já desestruturados e deficitários sem atividade durante metade do ano, há atletas e até agremiações “ciganas”, que mudam de cidade quando seus “donos” bem entendem, sem saber o que será do dia de amanhã. Os árbitros são amadores, dependem de outro emprego para se sustentar. Se não fosse suficiente, o “organizador” do futebol brasileiro, a CBF (Confederação Brasileira de Futebol), vive para a Seleção, demonstrando pouco interesse nos campeonatos nacionais.
A Sportradar, a agência de monitoramento de apostas que citei no início do post, disse à BBC ter contratos para avaliar apostas em cerca de 55 mil partidas por ano, com algoritmos que cobrem 350 agentes globais de jogo, para detectar padrões suspeitos. Preocupações surgem em 1% dos casos, o que significa cerca de 500 jogos de futebol por ano. E no Brasil, será que tem alguém olhando? Façam suas apostas...

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Trens, carros e o velho ônibus

Royal Scots Grey, uma locomotiva histórica, movida a diesel, na Escócia
É comum ter ideias pré-concebidas sobre um lugar antes de conhecê-lo de fato. São os chamados preconceitos, nada mais do que conceitos prévios, estabelecidos com base em informação arrebanhada ao longo do tempo - ou em pura ilusão mesmo. Estes podem ser tanto positivos quanto negativos. Bom, o meu maior pré-conceito favorável antes de chegar ao Reino Unido era em relação à infraestrutura de transporte.
Já falei um pouco aqui sobre o transporte coletivo urbano e aeroviário de Londres, que supera qualquer expectativa (veja o post “Ah, a infraestrutura”, postado em julho). Mas uma coisa me surpreendeu negativamente: a relação do país com o transporte terrestre de longa distância. O que eu esperava? Sempre ouvi falar da famosa rede ferroviária britânica, os pioneiros no mundo em transportar materiais e pessoas através de trilhos. A primeira estrada de ferro inglesa – e mundial –, com 40 quilômetros de extensão, começou a operar em 1820, em Darlington, no norte da ilha.
A rede continua aqui, embora bem menor do que já foi, mas andar de trem no Reino Unido hoje em dia não é nada barato e deixou de ser a opção mais popular. A alternativa? O que se vê por aqui é parecido com o que seguimos vendo no Brasil, a insistência em ir na contramão e abraçar o transporte rodoviário. Viajar de ônibus – ou até mesmo de carro – é quase sempre mais barato do que tomar o trem.
Passagem de trem, no horário de pico
Selecionei um exemplo para mostrar como isso funciona, de uma passagem entre Derby e a estação de St. Pancras, uma das principais de Londres. A primeira coisa a fazer se a intenção é viajar pela ferrovia é fugir do horário de pico, no começo da manhã e final de tarde. Para ir à capital britânica amanhã de manhã (06/12), por exemplo, o tíquete no horário cheio (às 7h20) sai por 64 pounds (R$ 250), comparado a 49 pounds (R$ 190) fora dele (às 8h16).
Derby fica 180 quilômetros a noroeste de Londres, trecho coberto de trem em uma hora e cinquenta minutos.  Para se ter uma base de comparação do quanto significam esses valores aqui, o salário mínimo no Reino Unido está em torno de 1.100 pounds (R$ 4.290) por mês. Assim, uma viagem de ida e volta no horário de pico, em um trajeto de menos de 200 quilômetros, sai por 128 pounds (R$ 500), o equivalente a mais de 10% do salário mínimo.
Programar a viagem de trem com antecedência pode ajudar, mas não chega a resolver. A mesma passagem daqui a dois meses (6/02) custaria os mesmos 64 pounds (R$ 250) no horário de pico e um pouco menos, 39 pounds (R$ 150), no off-peak. É bom ressaltar que o nível do serviço prestado em geral é bastante satisfatório, pontual, cabines limpas e modernas, além de boas estações. Mas, como sempre, tem aquele componente britânico para causar estranheza... Ao comprar uma passagem pela internet, por exemplo, é preciso retirar o tíquete de papel nas máquinas disponíveis na estação. Até aí, tudo bem. Mas se você fizer uma alteração na passagem (mudança de horário ou dia da viagem), é preciso emitir um novo bilhete e pagar de novo. Aí você precisa imprimir as duas versões na máquina e – pasmem – enviar pelo correio a passagem antiga à empresa para receber o reembolso do que pagou por ela...
Pomba descansa sobre o a tela, na Victoria Coach Station, em Londres
Impulsionada pelos altos preços do transporte ferroviário e pela crise econômica persistente em que se arrasta o Reino Unido desde 2008, desenvolveu-se por aqui uma rede bem capilarizada de linhas de ônibus. Há mais de uma empresa e os preços, comparados ao trem, são invariavelmente mais baixos – embora nem sempre signifique que isso compensa.
Primeiro é preciso dizer que o serviço prestado é pior do que o que estamos acostumados no Brasil – pelo menos nas regiões Sul e Sudeste, das quais posso falar por ser um usuário frequente. Os motoristas são britanicamente educados, os ônibus são novos, mas as viagens levam normalmente o dobro do tempo em comparação ao trem, atrasos são frequentes, não há lugares marcados, a limpeza está longe de ser o forte e as estações rodoviárias são um capítulo à parte...
A maior companhia chama-se National Express, com rotas nacionais e internacionais (é possível ir até a Bulgária de ônibus, embora uma viagem dessas de Londres a Sofia leve 26 horas).  Até pelo preço, essa tem sido minha opção aqui na Inglaterra, o que às vezes pode ser um certo tormento. A principal rodoviária de Londres, por exemplo, é a Victoria Coach Station, que é bem central. Mas, claramente, a estrutura não acompanhou o crescimento no volume de passageiros transportados. É rotina ver as pequenas salas de embarque abarrotadas, com mais gente em pé ou sentada no chão do que na meia dúzia de assentos disponíveis. Ah, e até por ser quentinho lá dentro, é um dos destinos preferidos das pombas londrinas.
Vamos à comparação. A mesma viagem entre Derby e Londres pela National Express, amanhã (6/12), sai por 20 pounds (R$ 78) no horário de pico (saindo às 7h05), mas demora mais do que o dobro em relação ao trem, quatro horas e quinze minutos. No off-peak (parte às 9h10) custa um pouco menos, 15 pounds (R$ 58), e leva quatro horas. No caso do ônibus, o planejamento ajuda a reduzir bem os gastos. O mesmo trajeto daqui a dois meses (6/02) custa a bagatela de 5 pounds (R$ 19) em qualquer dos dois horários.
Ou seja, a viagem de ônibus no horário de pico sai por menos de um terço do preço do trajeto ferroviário no mesmo horário, neste mês, e em fevereiro o trecho off-peak custa 12% do valor do tíquete de trem. Não é pequena a diferença.
O Bentley anunciado por R$ 3.500
E o automóvel? Como quase tudo, mesmo considerando o câmbio e uma moeda que vale quase quatro vezes mais que a nossa, é mais barato do que no Brasil, especialmente os usados. Uma rápida busca em um site especializado (www.autotrader.co.uk) pode deixar qualquer um por aí de queixo caído. O que você prefere, um Mercedes-Benz 230 (ano 1988) ou uma BMW 318i (ano 1995)? Os dois veículos estão anunciados por 500 pounds (R$ 1.950) cada. Quem estiver disposto a gastar um pouco mais pode escolher entre um Land Rover Freelander (ano 1998), por 695 pounds (R$ 2.710), ou até mesmo um Bentley Continental Coupe (ano 2009) por 895 pounds (R$ 3.500).
Com esses preços, quase todo mundo que quer tem um veículo. Em Londres é diferente – até por que não há onde estacionar o próprio automóvel, a maioria das habitações não tem garagem -, mas em Derby se vê bons carros parados mesmo na frente das casas mais modestas. É preciso dizer que para ser motorizado no Reino Unido é obrigatório ter seguro (o valor varia de acordo com a categoria e poder poluidor do veículo, além dos dados do motorista),quee parte de uns 500 pounds (R$ 1.950) por ano.
Por outro lado, não há sequer um pedágio nas estradas do país - o que existe é a cobrança urbana. Em Londres, por exemplo, há a chamada Congestion Charge, uma taxa instituída para combater os engarrafamentos, praticada em toda a região central da cidade, de segunda a sexta-feira, das 7h às 18h. A licença para circular durante um dia inteiro custa 10 pounds (R$ 39), se paga antecipadamente.
Se eu comprei um carro? Sem uma carteira de motorista britânica ou europeia, o seguro fica, digamos, um pouco caro – em torno de uns 2.000 pounds (R$ 7.800) por ano. Assim, continuo mesmo a andar de ônibus...