quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Façam suas apostas

Betfred, na nobre esquina da rua da catedral, em Derby
O assunto não é exatamente uma novidade, mas pegou fogo na semana passada aqui na Inglaterra, com a prisão de seis pessoas no último domingo, acusadas de envolvimento na combinação de resultados em partidas de futebol para beneficiar apostadores. Entre eles há até um jogador profissional, DJ Campbell, atualmente no Blackburn, que disputa a Championship (a Segunda Divisão inglesa), mas com passagens por três clubes da Primeira Divisão (a Premier League), Birmingham, Blackpool e Queens Park Rangers.
Apostar em jogos é mais do que uma simples brincadeira de fim de semana no Reino Unido, é um hábito fortemente arraigado na cultura e que movimenta bilhões de pounds anualmente. Uma estimativa da Sportradar, uma agência de monitoramento de apostas, aponta que o segmento gira entre US$ 700 bilhões e US$ 1 trilhão por ano (algo entre R$ 1,6 trilhão e R$ 2,3 trilhões) no mundo todo.
Atualmente a indústria de apostas é um gigante nas terras da rainha e o futebol tomou a dianteira como esporte favorito, à frente até das tradicionais corridas de cavalos – 70% do volume de apostas é destinado a ele. A profunda crise econômica na qual o país se arrasta desde 2008 deu fôlego extra ao negócio do jogo por aqui. Não só há mais gente vulnerável à tentação de ganhar dinheiro fácil nas apostas, mas os agentes, transformados em grandes corporações, passaram a ocupar os melhores pontos comerciais nas cidades, galgando ao que os ingleses chamam de High Street. Em Derby, por exemplo, na principal rua da região central, a área mais nobre (e cara) para o comércio, em um trajeto de pouco mais de duzentos metros contei cinco casas de apostas.
Do outro lado da rua, em frente à Betfred, uma loja da Ladbrokes
A impressão ao entrar em uma delas é a de estar em uma “lotérica tecnológica”, com telões para acompanhar os eventos e máquinas de autoatendimento para cada modalidade. Há uma só para o futebol, claro, e não é preciso nem falar inglês para jogar. De olho no polpudo mercado dos imigrantes, todas as informações estão disponíveis nas línguas clássicas (francês, espanhol e alemão), mas também em chinês, russo, turco, polonês, checo, romeno e até lituano.
O grande impulso à atividade foi dado mesmo pela tecnologia. Com computadores e algoritmos cada vez mais sofisticados, hoje é possível calcular os chamados odds (a probabilidade de um evento ocorrer e a taxa que a casa de apostas paga em caso de acerto) para qualquer situação – e quase instantaneamente. Além disso, os grandes no negócio do jogo enxergaram de imediato os benefícios da mobilidade digital. Com a popularização dos smartphones, eles passaram a disponibilizar plataformas online que permitem ao apostador jogar de onde estiver, ao mesmo tempo ampliando exponencialmente o alcance do próprio negócio e tornando a atividade potencialmente muito mais viciante.
Ah, e existe uma terceira vertente não menos importante do avanço tecnológico a mover a roda da indústria: hoje é possível acompanhar praticamente qualquer evento esportivo no planeta, não só porque há muito mais partidas sendo transmitidas, mas porque elas estão acessíveis pela internet, via streaming, seja nos canais oficiais dos proprietários dos direitos esportivos ou nos sites “piratas”. Juntando tudo, o resumo da equação é simples: há mais partidas para se apostar, está mais fácil e rápido para a indústria do jogo estabelecer taxas de apostas para esses jogos e toda a informação está globalmente disponível aos apostadores.
Interior de uma unidade da Ladbrokes, a "loteria tecnológica"
Essa combinação tem mais um efeito colateral. Hoje não se aposta apenas em resultados, em quem vai ganhar, de quanto ou em um empate. Pode-se jogar em fatos bem mais triviais, como quem vai ser o primeiro jogador ou o último a marcar um gol na partida, quantos gols terá o jogo, o placar no intervalo, se vai haver um pênalti, quantos escanteios ou até o número de cartões amarelos e vermelhos distribuídos pelo árbitro... Com isso, um mundo de oportunidades se descortina aos apostadores, e uma luz – ou um holofote – se acendeu para o mundo do crime.
Um exemplo de como funciona. Na terça-feira passada eu assistia a Manchester United x Shaktar Donetsk, pela Champions League, uma das raras oportunidades de futebol transmitido em um canal aberto de televisão por aqui. No intervalo do jogo, quando o placar ainda estava zero a zero, fui surpreendido por um anúncio criativo de uma das gigantes do jogo por aqui, a Ladbrokes. Na propaganda, dois caras comuns são levados à presença do Oddsfather (uma brincadeira com o Godfather, como o Poderoso Chefão, clássico personagem mafioso de Marlon Brando no cinema, é conhecido aqui). Eles beijam o anel do “padrinho” e perguntam: “O que você pode fazer por nós?”. O Oddsfather levanta uma placa em que está escrito: “Robey next to score, 7 to 1” (ou seja, o holandês Robie Van Persie, que estava no banco, ser o próximo a marcar no jogo, pagava 7 pounds para cada um apostado). Embaixo da placa, um letreiro anuncia: “Before, 5 to 1” (Antes, 5 para 1).
Resumindo, no intervalo do jogo a casa de apostas lança uma “promoção” – com 45 minutos a jogar, aumenta o valor pago em caso de o artilheiro do Manchester United marcar um gol. Mas ele ainda não tinha nem entrado em campo, e poderia nem entrar... Quem caiu no canto da sereia se deu mal. Van Persie entrou, o Manchester United venceu por 1 a 0, mas o gol foi do meio-campista Jones.
Ligas para apostar: Bulgária, Bahrein, Jordânia ou Omã? 
Como tem o componente cultural, o hábito de apostar não envolve só o cidadão comum, afeta também aqueles diretamente ligados ao esporte: os jogadores. Em uma entrevista à revista FourFourTwo, na edição de novembro, um ex-futebolista falou sobre o assunto. O irlandês Keith Gillespie, com passagens por Manchester United e Newcastle nos anos 90, disse ter perdido 7 milhões de pounds (hoje R$ 26,6 milhões) no jogo. Nas palavras dele: “Futbolistas ainda apostam. Eles gostam da sensação de ganhar, tem tempo e dinheiro”, afirma. “Eu diria que dois a três jogadores por time da Premier League (Primeira Divisão inglesa) apostam excessivamente”.
As prisões desta semana no Reino Unido foram a consequência de duas investigações sem relação entre si, por dois jornais britânicos. A primeira, do Sun on Sunday, ouviu de um ex-jogador profissional com passagens por Reading e Portsmouth, Sam Sodje, que ele recebeu 70 mil pounds (R$ 266 mil) para “cavar” um cartão vermelho, em uma partida do Portsmouth contra o Oldham, válida pela League One (a Terceira Divisão inglesa).
Isso não foi há anos, mas em fevereiro. O vídeo do lance é surreal, mostra Sodje golpeando Lee Barnard, digamos, abaixo da linha de cintura, em uma discussão na lateral do gramado – não uma, mas duas vezes, como que para ter certeza de que o árbitro iria ver (o vídeo do lance pode ser visto aqui: http://www.youtube.com/watch?v=15CXZn_7_T4). Sem saber que estava sendo filmado, Sodje disse ainda ao Sun on Sunday ter intermediado o pagamento de 30 mil pounds (R$ 114 mil) a um jogador escalado em uma partida da Championship (a Segunda Divisão da Inglaterra) para que ele “cavasse” um cartão amarelo. Ainda no vídeo, Sodje afirma ser capaz de realizar feitos semelhantes na Premier League (a Primeira Divisão) e que estava se preparando para atuar em jogos da Copa do Mundo no Brasil.
"Fiesta" de apostas no anúncio da Paddy Power, em Derby... Para quem?
A segunda investigação, do Daily Telegraph, revela o alcance e a complexidade criada pela indústria do jogo, muito além da Inglaterra. Nesse caso, entre os detidos pela polícia britânica estão dois cidadãos de Cingapura, Chaan Sankaran e Krishna Ganeshan. Em uma série de encontros em Manchester, um fixer (o encarregado de combinar os resultados), também de Cingapura, afirma ter o poder de controlar jogos realizados na Inglaterra e que apostadores fazendo uso de sites de apostas na Ásia ganhariam centenas de milhares de pounds com isso.
De acordo com o fixer, o custo de fazer resultados na Inglaterra era “muito elevado”, afirmando que em geral o valor ficava em 70 mil pounds (R$ 266 mil) por jogador envolvido. Ele deu o exemplo de um jogo em que quatro gols precisariam ser marcados, dois em cada tempo, o resultado final da partida não importava. O sinal “de confiança” de que estava tudo certo para iniciar a cadeia de apostas na Ásia seria dado por um jogador no campo. Ele “cavaria” um cartão amarelo logo nos primeiros minutos, para indicar que o acerto estava de pé - pelo que receberia 5 mil pounds (R$ 19 mil). O mesmo fixer previu quantos gols seriam marcados em uma partida no dia seguinte – e acertou.
Loja de tintas? Não, mais uma casa de apostas
Olhando por cima, isso tudo parece a anos-luz do futebol brasileiro. Será? Conto uma estória só para ilustrar. No último dia da minha estadia em Budapeste (Hungria), em outubro, conheci um macedônio que ficou eletrizado ao saber que eu era do Brasil. Não parecia o cara mais confiável do mundo, mas ele não sossegou enquanto não me fez sentar em frente ao computador do albergue, abriu um site de apostas e começou a me questionar sobre as minhas previsões para a próxima rodada do Brasileirão. Tentei me esquivar, explicando a ele que não é nada fácil prever resultados no futebol, que uma das grandes graças do jogo era justamente essa, de que tudo pode acontecer...
Não adiantou, tive que dar meus palpites para toda a rodada. No meio do processo, expliquei a ele que no Brasil não se pode apostar em futebol – pelo menos não legalmente. Ele pareceu surpreso e emendou: “Mas o futebol brasileiro é a grande máfia das apostas!”. Tentei defender a integridade do esporte nacional, ainda que sem muita convicção, e consegui escapar antes que ele começasse a me perguntar sobre a rodada da Série B.
Se o macedônio estava certo ou errado sobre a honestidade do nosso futebol não sei, mas a questão é que há um cara nos Balcãs acostumado a jogar em resultados dos campeonatos brasileiros, da primeira e segunda divisão – e não deve ser o único. Ou seja, as ferramentas estão disponíveis.
Na Inglaterra estão de olho. E no Brasil?
Hoje em dia pouco se fala de qualquer influência de apostadores no Brasil, estamos mais preocupados com besteiras como “malas brancas” (acertos entre times para ganhar jogos que não são muito relevantes para o recebedor do dinheiro) em quase todo final de campeonato. Mas há oito anos, em 2005, tivemos nossa própria “máfia do apito”. Quem se lembra? Os árbitros Edílson Pereira de Carvalho e Paulo José Danelon foram denunciados por interferir em resultados, para beneficiar apostadores em sites fora do país. A consequência foi a anulação – e posterior repetição - de 11 partidas, que mudaram a história do Campeonato Brasileiro daquele ano e fizeram o Corinthians campeão, em detrimento do Internacional. Os dois árbitros envolvidos, embora banidos do esporte, hoje estão soltos, e a ação penal foi suspensa em 2007.
A realidade do futebol brasileiro é um prato feito para os fixers... A grande maioria dos jogadores é mal paga, o calendário deixa clubes já desestruturados e deficitários sem atividade durante metade do ano, há atletas e até agremiações “ciganas”, que mudam de cidade quando seus “donos” bem entendem, sem saber o que será do dia de amanhã. Os árbitros são amadores, dependem de outro emprego para se sustentar. Se não fosse suficiente, o “organizador” do futebol brasileiro, a CBF (Confederação Brasileira de Futebol), vive para a Seleção, demonstrando pouco interesse nos campeonatos nacionais.
A Sportradar, a agência de monitoramento de apostas que citei no início do post, disse à BBC ter contratos para avaliar apostas em cerca de 55 mil partidas por ano, com algoritmos que cobrem 350 agentes globais de jogo, para detectar padrões suspeitos. Preocupações surgem em 1% dos casos, o que significa cerca de 500 jogos de futebol por ano. E no Brasil, será que tem alguém olhando? Façam suas apostas...

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