quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Immigrant Song

“On we sweep with treshing oar, our only goal will be the western shore”*
Normanton Road
A vista do alto da colina é tipicamente inglesa. Os sobradinhos vitorianos são o padrão, com os tijolinhos vermelhos e suas antigas chaminés desativadas, cobertas por curiosas coroas de cerâmica. No meio do cenário o destaque é a torre da igreja de St. Luke’s, mas a Catedral, maior e mais robusta, também é visível mais ao longe, a pequena bandeira triangular com a cruz de São Jorge tremulando. Mas basta descer três quadras pela Mill Hill Lane para mergulhar em outro mundo, bem mais real e menos uniforme.
Eles vêm de todas as partes, mas aqui estão em casa. É só pisar na Normanton Road para se deparar com as primeiras kebab stores, Indian breakfasts e Eastern European food stores - essas vendem produtos de todo o Leste Europeu, anunciando nos letreiros comidas da Polônia, Ucrânia, Lituânia, Eslovênia, pode escolher. Lá dentro, incontáveis opções de embutidos, salames, salsichas, linguiças, presuntos, patês, conservas diversas e as cervejas... Cada lojinha dessas tem, logo na entrada, um refrigerador formando uma verdadeira parede de latas de cerveja dos países do leste.
A Normanton Road é a principal avenida ligando o centro de Derby a dois bairros que concentram boa parte dos imigrantes na cidade (Normanton e New Normanton), especialmente os menos privilegiados. A Mill Hill Lane, nossa rua, fica na fronteira entre a região central e New Normanton, o ponto de conexão entre os dois mundos. As estatísticas mostram que 90% da população de Derby nasceu no Reino Unido, o que deixa 10% para os imigrantes – desse total, 7% são da União Europeia (a maioria do Leste) e 3% do resto do mundo. Bom, se um a cada dez moradores da cidade é não-britânico, parecem estar todos concentrados aqui... E, posso dizer? Aos poucos também vou me sentindo em casa.
A parede de cervejas do Leste Europeu
Quase todos os dias desço a Normanton Road, ou para fazer compras ou para fazer algo de exercício no Derby Arboretum Park, que fica a umas seis quadras de casa. Lá, sempre nos finais de tarde de quartas e sextas feiras, tomo parte no treino da Seleção Africana no Exílio. Sudaneses, etíopes, marfinenses, expatriados do Malawi, de Gana, Do Chade, de Zâmbia, da Tanzânia, além de mim e um cigano bósnio. No meio deles, eu brilho em campo – afinal, sou o único branco....
Todos falam algum inglês mas ninguém se chama pelo nome ali. Como em um daqueles antigos filmes americanos de guerra, todos têm um apelido. O organizador da confusão é o Rasta, obviamente com seus dreadlocks, que envia mensagens de celular avisando dos treinos. O CG, magro, esforçado, não gosta de perder nem dividida. No meio de campo, Iaia, alto, com um moicano à la Cissé, tem a elegância de um Ademir da Guia, mas é um pouco fominha.
Pearl Beauty, especializado em maquiagem para noivas indianas
Um dos melhores é o Oma, um moleque nigeriano de uns 15 anos, habilidoso, boa visão de jogo, não treme pra marmanjo nenhum. O Uncle, chamado assim por ser o mais velho de todos, na casa dos 45 anos, chega de bicicleta e fica sempre solidamente postado na defesa. O Rasta 2 abre um largo sorriso sempre que me cumprimenta, feliz ao descobrir que sei onde fica seu Zimbábue e mais ainda por eu conhecer a música do Bob Marley que celebra a independência do país. E eu? Ali eu sou simplesmente “Brasil” - é assim que eles me chamam.
Há um supermercado razoavelmente bem abastecido quase na esquina de casa, o Lidl, uma cadeia de lojas espalhadas pela Europa toda, mas para comida fresca o caminho é seguir mais adiante, rumo ao Pak Foods. Lá, sim, os donos paquistaneses (daí o Pak no nome) garantem que as verduras estejam sempre novinhas, e os barbudos de toca muçulmana me servem de carneiro, frango ou peixe processados segundo os rituais Halal. Ali você encontra qualquer tipo de tempero imaginável – há um corredor só para isso -, além de bons pães nan, saborosas azeitonas da Turquia e arroz indiano, distribuídos pelas prateleiras compartilhadas com velhinhos de longas barbas e mulheres de véus que permitem ver só os olhos (burca, ainda não vi nenhuma). O único porém é que o Pak Foods não vende nenhuma bebida alcoólica, a religião não permite.
Pak Foods
Saindo de lá, se eu seguir à direita chego ao templo Sikh (já tratei dele aqui no blog). À esquerda, uns 200 metros adiante, fica uma mesquita. Meu caminho costuma ser no outro sentido, na verdade, no rumo de casa. Ainda na Normanton Road, paro para dar um alô para o meu barbeiro, o Mohamed, que não se considera iraquiano, mas curdo. Ao me sentar para cortar o cabelo sou bombardeado de perguntas sobre o Brasil. Ele planeja assistir a Copa, no ano que vem, ou as Olimpíadas, em 2016. Explico que os ingressos são difíceis de conseguir mas Ali não desanima, apesar da surpresa ao ser informado o quanto nosso país está caro nos dias de hoje.
Farinha para fazer pão chapatti, da marca do tigre, no Pak Foods
No rumo de casa, se o tempo está bom, costumo ouvir uma música alegre, com a perceptível cadência do leste, originada do acordeão de um homem de uns 60 anos, a cestinha de contribuições aos pés. Depois de depositar uma moeda, um dia parei para conversar com ele – não falava nada de inglês, mas um amigo dele, vendo a cena, deixou a loja em frente e ajudou a traduzir.
Seu nome é Rudi e veio da Eslováquia, já há alguns anos. Pergunta de onde sou e, surpreso ao ouvir Brasil, arrisca uns acordes que não reconheço no teclado. Com a barreira da língua, a conversa morre aos poucos. Agradeço e sigo caminho, ouvindo os acordes ciganos se distanciando aos poucos.

*A letra é da música do Led Zeppelin que dá nome à crônica, Immigrant Song. Difícil traduzir, mas acho que em português seria algo assim:
“Pra frente nós avançamos com remos implacáveis, nosso único objetivo será a costa oeste.”


Carreguei um vídeo curto no YouTube com o som do Rudi e uma vista da Normanton Road. Segue abaixo o link:
http://youtu.be/LBaTYvY_WVk

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Escócia, a um ano da encruzilhada

A partida, na estação de Aberdeen
A jornada começou no escuro. Antes das 6h da manhã já esperávamos o trem na Plataforma 7 e foi um alívio ver a locomotiva azul e amarela encostar na estação, para subir logo as escadas e escapar do frio respeitável de 8 graus. Agora era encontrar nossa cabine e relaxar – relaxar mesmo, a próxima parada seria só do outro lado da Escócia, em Oban, depois de atravessar as Highlands, em previstas sete horas.
O tempo nas estação foi bem curto, pouco mais de dois minutos, e às 6h03 a locomotiva 55 022 da Royal Scots Grey – mais conhecido como Deltic 22 -, deixou Aberdeen no  rumo sul. Antes de se direcionar às montanhas lendárias da região central a composição teria que costear boa parte do litoral leste escocês, passando por Stonehaven, Laurencekirk, Montrose e Arbroath, aproximando-se da capital, Edinburgh, e da maior cidade do país, Glasgow. Só então o trem seguiria os trilhos para o norte, contornando localidades com nomes vindos do gaélico, a língua dos celtas, primeiros habitantes da Escócia. Aos meus ouvidos, pelo menos, lugares como Garelochhead, Ardlui, Crienlarich ou Tyndrum parecem descrever o território dos elfos ou dos dwarfs...
Esse trem não faz essa rota todo dia – na verdade só uma vez por ano. É uma tentativa de volta no tempo, de manter viva uma tradição ferroviária agonizante. O Deltic 22 é uma locomotiva movida a diesel que começou a operar em trilhos escoceses em 1961 e foi aposentada em dezembro de 1981, usada depois só em ocasiões especiais. Olhar para o passado na tentativa de garantir um futuro mais brilhante é o que a Escócia discute atualmente. Exatamente daqui a um ano, em 18 de setembro de 2014, o país irá às urnas em um referendo para decidir se permanece parte do Reino Unido ou se vai se transformar em uma nação independente.
Bandeira escocesa, em Aberdeen
A Escócia é parte do Reino Unido desde 1707 – o azul da Union Jack, a bandeira britânica, vem da sobreposição do pavilhão inglês e da Irlanda do Norte à flâmula escocesa. A junção dos dois países foi ratificada pelo Union Act, depois da pressão inglesa que se aproveitou de um fracasso escocês na tentativa de criar uma colônia na América, na região de Darien, no Panamá. A ideia escocesa era estabelecer um entreposto comercial entre o Atlântico e o Pacífico, para tomar parte no negócio de especiarias com as Índias, sem precisar contornar a África. Era praticamente uma antevisão do que hoje é o Canal do Panamá, com 200 anos de antecedência.
Envolvendo boa parte da riqueza nacional, os escoceses partiram para a América em 1698, com seis navios e 1.200 colonos. O clima difícil, com longas temporadas chuvosas, o terreno pantanoso e difícil de cultivar, uma cadeia montanhosa íngreme entre os dois litorais e ataques dos espanhóis puseram por terra o sonho da Escócia de se ver catapultada à primeira divisão das nações europeias. Em dois anos eles abandonaram o Panamá, deixando para trás 2.000 mortos, dos 2.500 escoceses que se envolveram na aventura.
Atentos ao momento de fraqueza, os ingleses pressionam. Através de subornos à elite escocesa e promessas de compensação pelas perdas em Darien, a Inglaterra consegue fazer passar o ato no Parlamento vizinho e oficializa a união.
Locomotiva Deltic 22, movida a diesel
Atualmente a Escócia desfruta de uma autonomia parcial dentro do Reino Unido, depois do ato aprovado em Westminster em 1999, que restituiu o Parlamento Escocês. O país segue a lei de Frank Zappa para ser considerada uma nação – ter ao menos uma cerveja, um time de futebol e uma companhia aérea. Tem até um primeiro-ministro, com liberdade para criar leis, mas seus poderes são limitados em relação a arrecadação de impostos, política monetária (usam a libra britânica, impressa com personagens locais nas cédulas) e relações internacionais. Para o bem - ou para o mal -, a Escócia mantém seleções de futebol e rugby separadas da Inglaterra.
E o trem? Bom, a viagem é longa, mas cheia de paisagens extraordinárias, com destaque para as montanhas escarpadas e lagos de um azul bem escuro nas Highlands, com direito à visão de um ou outro castelo cinematográfico em ruínas. A cabine era bem confortável e além de café-da-manhã e jantar, o vagão-bar servia boas ales escocesas. A civilidade britânica, porém, foi mantida à risca - a recomendação era começar a consumir bebidas alcoólicas só após as 10h30 da manhã.
Oban, na costa oeste da Escócia
Depois das sete horas, encostamos em Oban às 13h05, o que nos dava quase uma hora e meia para explorar a cidadezinha à beira-mar do outro lado da Escócia. Foi o suficiente para subir à fortaleza na parte alta do vilarejo e observar a bela vista da baía, além de caminhar um pouco pelo calçadão que contornava o porto. Às 14h27 estávamos de volta ao trem, para encarar mais sete horas de volta a Aberdeen.
O que pensam os escoceses sobre a independência? Pesquisas discrepantes, ao que parece, não são privilégio brasileiro. A enquete mais recente feita pelo Scottish National Party – partido que comanda a campanha pelo “sim” – indica que 44% dos ouvidos são a favor da separação, 43% dizem “não” e 13% não sabem. Uma outra pesquisa, feita pelo YouGov, um site especializado em medir a opinião pública, por outro lado, coloca o “não” bem à frente (59% a 29%, com 12% de indecisos).
Uma terceira pesquisa, feita pelo jornal The Scotsman, com sede em Edinburgh, mostra que na Escócia o que manda mesmo é o bolso – algo previsível, uma vez que o Tio Patinhas é escocês. A pergunta foi: “Se você estivesse convencido de que receberia 500 libras a mais por ano como resultado da independência, você seria a favor da separação?” Nesse caso, 47% dos pesquisados disseram que sim, 37% ficaram contra e 16% não souberam responder.
Kilchurn Castle, à beira do Loch Awe, nas Highlands
A maior queixa da população em relação ao plebiscito, porém, é a falta de informação. Quanto custaria uma Escócia independente? Como manter o controle das fronteiras, já que o país hoje depende das forças armadas britânicas? O que aconteceria com a moeda? E as atuais pensões e aposentadorias, seriam sustentáveis? Ninguém apareceu com as respostas, até agora...
O plano de manter a união monetária após a independência, sugerido pelos partidários do “sim”, é acusados de ser pouco claro. Um dos poucos números na mesa é o balanço fiscal. Beneficiada pela renda da exploração de petróleo no Mar do Norte, a Escócia gera 9,9% da receita tributária do Reino Unido e recebe de volta, em gastos, 9,3% do bolo. As cifras fazem mais sentido se considerarmos que o país concentra só 5 milhões dos 63 milhões do Reino Unido, em torno de 8,4% do total. O argumento, contudo, não mostra o retrato completo, porque a conta não inclui gastos intangíveis que correm por conta do governo britânico, como manutenção de militares e representações diplomáticas, por exemplo...
Slain's Castle, ex-igreja e atual pub
Com algum atraso, o Deltic 22 retornou a Aberdeen por volta das 23h30, permitindo uma visão privilegiada da euforia etílica escocesa em plena noite de sábado. O epicentro da vida noturna é a Belmont Street, chamada pelos locais de Three Kirk Street, por causa das três igrejas que existiam na rua – uma está em ruínas e as outras duas foram transformadas em pubs, incluindo o incrível e gótico Slain’s Castle, com o interior à la Um Drink no Inferno.
A cidade, mesmo, seria vista melhor só no dia seguinte. Aberdeen é monocromática – mas em um bom sentido. Você olha para os lados e quase tudo o que vê é cinza, porque as construções são todas de granito. Terceiro maior aglomerado humano da Escócia, com 225 mil habitantes, é o principal centro da indústria petrolífera na Europa, e por isso bastante rica. A maior reserva desse tipo de pedra no Reino Unido estava lá e foi usada largamente para erguer casas, prédios comerciais e públicos.
Aberdeen, feita de granito
O granito praticamente acabou e o que sobrou foi um gigantesco buraco de mais de 90 metros de profundidade, bem próximo do centro da cidade, onde funcionava a Rubislaw Quary. Ainda hoje as novas construções em Aberdeen continuam sendo feitas com o material, mas na falta da fonte local de fornecimento, o granito agora é importado da China.
O local, que no século XIX já foi a maior escavação feita pelo homem na Europa, hoje está coberto de água e isolado por uma cerca. Da margem, só consegui ver algumas compridas algas esverdeadas próximas à superfície, em busca de um pouco de luz no meio do imenso lago negro. Há um projeto de drenar a antiga pedreira e transformá-la em um parque, mas os planos têm sido brecados pelo temor do que pode ser encontrado lá dentro depois de tantos anos – o cenário parece mesmo ideal para se livrar de itens indesejados, como corpos, por exemplo.
Após três séculos de integração ao mundo britânico, acho que deve ser mais ou menos esse o medo dos escoceses, sobre o que pode vir à tona junto com a independência...

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Live in Liverpool

“In the town where I was born,
Lived a man who sailed to sea,
And he told us of his life,
In the land of submarines,

So we sailed on to the sun,
Till we found the sea green,
And we lived beneath the waves,
In our yellow submarine”*

Albert Dock
A viagem foi inesperada desde o princípio. A previsão para o fim de semana não era muito animadora (chuva e frio), então fomos empurrando com a barriga. Na quinta-feira a decisão saiu meio de supetão - passagens compradas e reservas feitas, partimos na sexta. Certo, já sabia que lá tinha bons museus e, claro, que era a terra dos Beatles, mas tinha a expectativa de encontrar uma cidade meio cinzenta, antiga, sem muito tempero. Surpresa tripla... Além de uma arquitetura grandiosa, um píer impressionante e todo o clima beatlemaníaco, Liverpool é um daqueles raros lugares em que as peças se encaixam e você consegue ver nitidamente os acontecimentos e a história fazendo sentido.
Primeiro o inevitável: é claro que a cidade respira Beatles e há memorabilia à venda por todas as partes. O Cavern Quarter – onde ficava o The Cavern Club, primeiro palco dos Beatles, demolido em 1973 para construção de um estacionamento -, é o epicentro para os fãs, com uma série de restaurantes e bares temáticos. A principal exposição sobre o quarteto (The Beatles Story Exhibition), porém, fica na Albert Dock, um gigantesco complexo de docas que é o polo cultural de Liverpool, cercado de armazéns de tijolinhos vermelhos transformados em restaurantes, bares e museus. Instrumentos, roupas, discos, cartazes e até uma réplica do Cavern Club original estão lá.
The Beatles Story Exhibition
Liverpool se beneficia bastante da fama dos Beatles – até porque seria insano fazer o contrário -, mas a cidade vai muito além do quarteto e valoriza como poucas sua história de centro comercial e de ser um dos principais portos do mundo. Ainda na Albert Dock, o International Slavery Museum é um verdadeiro acerto de contas com o próprio passado, no tempo em que os comerciantes locais comandavam o tráfico de escravos para a América do Norte e o Caribe – cerca de 1,5 milhão de africanos foram transportados por navios comandados dali, o equivalente a 10% de todos os negros levados à força para o Novo Continente.
Para um brasileiro que tem algum conhecimento da desgraça da escravidão, a novidade está em um relato pormenorizado de uma viagem do Essex, um navio negreiro que fazia o chamado Comércio Triangular, no ano de 1783. Levava tecido, armas e ferragens para a costa africana, onde eram trocados ou comercializados para comprar escravos. Esses eram levados cativos para a América, onde eram vendidos. O veleiro enchia os porões de açúcar, algodão e café e retornava a Liverpool, para aferir os lucros e recomeçar o périplo.
Edifício do Port of Liverpool
O tráfico de escravos não era moleza para nenhum dos dois lados diretamente envolvidos na atividade – claro que dos sete comerciantes proprietários do Essex, só o capitão Petter Poter punha a mão na massa. A viagem relatada durou de junho de 1783 a agosto de 1784, passando por Cabo Verde, Bassa Cove (Costa Africana) e St. Vincents (Caribe), retornando novamente a Liverpool. Dos 33 marujos e um menino negro que partiram da Inglaterra, só 24 retornaram – nove morreram durante a jornada e o pobre garoto, propriedade do capitão Potter, foi vendido como escravo no Caribe.
O Essex partiu de Bassa Cove com 330 africanos escravizados. Depois de uma travessia do Atlântico que levou 51 dias - classificada pelo capitão como “eventful” (agitada) -, 282 sobreviveram à viagem (48 ficaram pelo oceano). Ou seja, quase 30% da tripulação do veleiro e 15% dos cativos não completaram a viagem...
Mestre Pastinha, no hall da fama
Em busca de uma consequência positiva da diáspora africana, o museu tem um segmento dedicado aos feitos dos negros nas mais diversas atividades, incluindo uma espécie de hall da fama com as personalidades. Encontrei quatro brasileiros no mural, com direito a surpresas. Ao lado de nomes de peso como Bob Marley, Muhammad Ali, Jesse Owens e Martin Luther King, a maior é a presença do Mestre Pastinha, nome indiscutível entre os principais difusores da capoeira, mas pouco conhecido do grande público até no Brasil. Gilberto Gil está lá também, o que não me surpreendeu. Quem não podia estar de fora, mas está, é Pelé. No seu lugar aparece, de terno e gravata, Edson Arantes do Nascimento - eles não devem saber o que o Edson anda aprontando, entende... O pior fica para o final, na figura da única mulher brasileira na lista: Benedita da Silva.
O tráfico negreiro enriqueceu Liverpool e deu o impulso para que a cidade se tornasse um poderoso centro marítimo nos séculos seguintes, o que é retratado no mesmo prédio, no Merseyside Maritime Museum. Entre meados do século XIX e XX, nove milhões de imigrantes partiram desse porto na costa oeste inglesa para fazer a América – irlandeses, escoceses, ingleses, noruegueses, judeus do Leste Europeu e outros. Toda essa gente sendo transportada pelo oceano fez a fortuna das grandes companhias de navegação da cidade, que no começo dos 1900 se lançaram a construir os grandes transatlânticos.
Propaganda da White Star
Sempre que se fala do Titanic se menciona que ele foi construído em Belfast (Irlanda do Norte), zarpou de Southampton (Inglaterra) e ia para Nova York (EUA), mas pouco se fala que o navio era registrado em Liverpool e propriedade de uma companhia de navegação local, a White Star Line, comprada em 1902 pelo milionário norte-americano J.P. Morgan na tentativa de monopolizar o transporte marítimo mundial. O Titanic foi construído sob ordem dos americanos, para concorrer com outra gigante da navegação de Liverpool, a Cunard, que dava as cartas no transporte marítimo com os transatlânticos Lusitânia e Mauretania. Na ânsia de fazer maior e mais rápido, veio o desastre...
No mesmo museu marítimo uma ala inteira conta a história de uma parte terrível e pouco gloriosa da Segunda Guerra Mundial, a Batalha do Atlântico. Sendo uma ilha, em 1939 a Grã-Bretanha dependia do comércio marítimo para obter 100% do petróleo, boa parte da matéria-prima para a indústria e metade da comida para alimentar seus 48 milhões de habitantes. Os alemães, claro, sabiam disso, e colocaram em prática um plano para sufocar os britânicos pela escassez: uma frota de submarinos (chamados de U-boats) foi despachada para o Atlântico, para afundar o maior número possível de navios mercantes que encontrasse pelo caminho.
Nos primeiros anos do conflito a estratégia funcionou muito bem. Sem navios de guerra suficientes para escoltar os comboios, os ingleses viam sua frota comercial minguar dia após dia. Para piorar, os alemães inutilizaram o porto de Londres, bloqueado por minas aquáticas, obrigando a Inglaterra a desviar o fluxo para a costa oeste, especialmente para Liverpool.
Cartaz de recrutamento alemão para os U-boats
A cidade tornou-se o principal porto britânico durante a guerra, respondendo por um terço de todas as importações britânicas no período. Cerca de 76 mil navios mercantes passaram por Liverpool durante o conflito, uma média de 280 por semana. Além disso, pela importância mercantil, também foi transformada por Churchil no centro de comando da Batalha do Atlântico, transferido de Plymouth. Uma sala com aqueles mapas gigantescos que se vê nos filmes, cobrindo paredes inteiras, segue intacta e pode ser visitada na Derby House, hoje parte do Liverpool War Museum.
A luta pela supremacia no oceano começou lentamente a pender para o lado inglês a partir de 1941, com um acontecimento fortuito. Engajando em combate o U-boat 110 na costa da Groenlância, o HMS Bulldog (um navio da Royal Navy) conseguiu capturar o submarino intacto, incluindo um exemplar da Enigma, a máquina usada pelos alemães para codificar todas suas mensagens militares . De posse da geringonça, os ingleses quebraram o código e passaram a estar sempre um passo à frente no campo da informação - o fato não foi descoberto pelos germânicos até o final da guerra.
No ano seguinte, com os Estados Unidos já no conflito, os britânicos conseguem equilibrar a Batalha do Atlântico quando o governo Roosevelt põe em andamento o maior programa de construção de navios da história – 750 em 1942 e 1.500 em 1943, em média três novas embarcações por dia. Em resumo, os americanos estavam produzindo navios mais rápido do que os alemães conseguiam afundar.
Mark VIII, torpedo da Royal Navy contra U-boats
O balanço da batalha é sombrio. Do lado aliado, 2.200 embarcações foram afundadas no Atlântico (das quais 2.000 por submarinos), causando a morte de 30 mil tripulantes da marinha mercante. Pelo lado alemão, dos 750 U-boats envolvidos no combate, 510 foram afundados – dos 27 mil marinheiros que tomaram parte na campanha, 18 mil perderam a vida, o que significa dois de cada três.
Mas o papel de Liverpool na guerra ainda não tinha acabado. Nos meses que antecederam o Dia D, a cidade tornou-se o principal porto para desembarque dos GIs americanos. Cerca de um milhão de soldados vindo dos Estados Unidos passaram por ali, trazendo com eles chicletes, gel para o cabelo, cigarros e os últimos discos de Rhythm & Blues, a base do que na década seguinte viria a ser conhecido por Rock & Roll...
Para mim, é nessa hora que tudo se encaixa. Quase consigo ver um adolescente topetudo entrando em um pub esfumaçado do Meyerside, atrás de um pacote de Lucky Strikes, já atrasado para o ensaio da sua recém-criada banda de skiffle. Atrás do balcão, o velho marinheiro empurra o cachimbo para o canto da boca e tenta puxar assunto, enquanto desliza o maço de cigarros e recolhe as moedas.
O garoto de óculos já tinha escutado tudo aquilo inúmeras vezes, os anos na marinha mercante, o quanto era dura a vida no mar durante a guerra e como certa vez o barco em que o velho servia tinha conseguido afundar um U-boat alemão, usando cargas de profundidade.
Le Sous-marin Jaune
Ele sabia cada detalhe da batalha e até achava que a estória daria uma boa música, mas não tinha tempo para isso agora. Paul certamente já devia estar esperando na frente do Casbah - e aquele cara odiava atrasos. Recolheu o pacote de cigarros e saiu apressado, tentando imaginar o que seria preciso para transformar um submarino em algo mais divertido. Talvez mudando a cor...

*A letra é de Yellow Submarine. Traduzindo, seria algo assim:

“Na cidade em que eu nasci,
Viveu um homem que ganhou o mar,
E ele nos contou sobre sua vida,
Na terra dos submarinos,


Então nós navegamos em direção ao sol,
Até encontrarmos o mar de verde,
E vivemos entre as ondas,
No nosso submarino amarelo”

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Por quem os sinos dobram

Sinos na torre da igreja de St. Luke's
Sempre atribuí ao som dos sinos de igreja um caráter sério, sisudo até, anunciando algo importante, um velório, um enterro – ou até uma catástrofe. É verdade que eles soam também nos casamentos, mas sempre acabam meio diluídos no ritual, encobertos pela marcha nupcial e pela euforia generalizada desse tipo de evento. Quem leu Hemingway dificilmente não associa as badaladas à obra prima dele, e consequentemente à poesia de John Donne, presente logo no início do livro: “Nenhum homem é uma ilha isolada... E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”. Belo nariz de cera, mas... Os ingleses sempre surpreendem. Por aqui, o som metálico tem pouco de solene, é encarado como música – e até como esporte.
Comecemos do princípio, porém. Um amigo querido sempre diz que “sorte é o encontro da capacidade com a oportunidade”. Bom, de capacidade não sei, mas a oportunidade apareceu e não deixei passar. Estávamos a Fabi e eu investigando os arredores de uma bela torre de igreja que enxergamos todos os dias da nossa janela ao abrir as cortinas quando nos deparamos com um senhor de uns 50 anos, grisalho.
Trocamos cumprimentos polidos e breves apresentações. Notando nosso interesse pelo templo, Frank nos pergunta se não queríamos ver a igreja por dentro – estava fechada e ele tinha a chave. Claro, entramos - e era mesmo linda. Na saída, ele diz que logo mais iria tocar os sinos, algo que fazia todas as quintas-feiras, às sete e meia da noite, e nos convidou para assistir, na semana seguinte. Frank não estaria presente (ia passar duas semanas de férias em Tenerife), mas disse que bastava procurar por Mr. Calling, ali mesmo.
Fabi na ringing chamber
Na quinta seguinte voltamos e fomos gentilmente introduzidos na igreja por um sólido velhinho de olhos azuis e cabelos brancos, no viço dos seus 77 anos, o responsável pelos sinos da Igreja de St. Luke’s (São Lucas para nós). Paróquia da Igreja Anglicana, é relativamente recente para os padrões da Inglaterra– foi terminada em 1868, quando essa parte de Derby crescia aceleradamente, acumulando novos moradores (e fiéis, por consequência), atraídos pelos empregos da Revolução Industrial.
Sem parar para tomar fôlego, ele lidera a subida de mais de 100 degraus rumo à ringing chamber, espécie de casa das máquinas manual de onde se comanda todos os oito sinos - seguido por nós, um homem meio careca nos seus 30 anos e duas senhoras, beirando os 50.
Livro com as partituras de sequências para os tocadores
Em poucos minutos Mr. Calling nos introduz à sua arte. Eu também pensava que para tocar um sino bastava chacoalhar uma corda de um lado para o outro, mas não é nada disso. Para manter o controle do toque e do ritmo, o tocador só deixa o badalo atingir a parede de metal quando a estrutura está de ponta-cabeça - isso mesmo, o sino só soa quando invertido.
O velhinho ensina que, basicamente, há dois tipos de toque: o handstroke, quando o sino faz o movimento mais curto (e você puxa a corda com os ombros para baixo), e o backstroke (toque que exige segurar a corda acima da cabeça e com os braços esticados), mais longo. Como se toca mais de um sino ao mesmo tempo, eles soam em tempos diferentes, criando uma verdadeira sinfonia.
Peal recorde, de 1923
Complexo? Isso é só a base. Há livros de partituras para organizar os toques e as sequências que devem ser seguidos pelos tocadores. Ah, e os ingleses adoram uma competição – e recordes, é claro - e transforam os sinos em mais uma. Assim surgiram os peals, sessões de toque em que uma equipe mantém a música rolando por horas – e sem poder repetir as sequências de toques nem uma vez! O recorde na St. Luke’s, registrado em uma placa de bronze afixada na ringing chamber, é de 1923, quando oito insanos mantiveram os sinos soando, sem parar, por três horas e trinta e dois minutos, contabilizando 5.040 sequências diferentes.
Antes de começar a sinfonia da noite, Mr. Calling nos informa que a St. Luke’s na verdade é famosa pelos seus sinos - reúne o conjunto mais pesado de todo o Derbyshire, acima até da Catedral. O maior deles pesa 3.000 weights (uma medida só usada por aqui), o equivalente a uma tonelada e meia. O menor dos oito tem 350 quilos.
Mr. Calling e eu
 Esse conjunto de sinos está na igreja desde 1879, mas é tão pesado que fazia a própria torre em que está instalado oscilar, criando risco de desabamento. Por isso, nos primeiros anos do templo eles pouco eram usados. Permaneceram silenciosos durante os longos anos da Primeira e Segunda guerras mundiais e só voltaram a soar plenamente em 1950, quando foram reinstalados mais abaixo da torre.
Depois de assistir a algumas sequências, sou convidado pelo Mr. Calling a arriscar uns movimentos. Bom, para encurtar, posso dizes que não foi fácil, apesar da atenta supervisão...
Para não perder o ritmo, a recomendação é manter a cabeça parada, mas para mim era impossível resistir ao reflexo de olhar para cima - no que fui uma e outra vez repreendido pelo mestre. Apesar da dificuldade, a paciência do velhinho fez com que eu entregasse alguns toques satisfatórios em handstroke e outros em backstroke. Quem sabe até o final do ano ainda consigo completar uma sequência...

Carreguei no YouTube um vídeo do toque dos sinos, direto da ringing chamber da St. Luke's. Segue abaixo:
http://youtu.be/PNHnTl-OTBA