sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Live in Liverpool

“In the town where I was born,
Lived a man who sailed to sea,
And he told us of his life,
In the land of submarines,

So we sailed on to the sun,
Till we found the sea green,
And we lived beneath the waves,
In our yellow submarine”*

Albert Dock
A viagem foi inesperada desde o princípio. A previsão para o fim de semana não era muito animadora (chuva e frio), então fomos empurrando com a barriga. Na quinta-feira a decisão saiu meio de supetão - passagens compradas e reservas feitas, partimos na sexta. Certo, já sabia que lá tinha bons museus e, claro, que era a terra dos Beatles, mas tinha a expectativa de encontrar uma cidade meio cinzenta, antiga, sem muito tempero. Surpresa tripla... Além de uma arquitetura grandiosa, um píer impressionante e todo o clima beatlemaníaco, Liverpool é um daqueles raros lugares em que as peças se encaixam e você consegue ver nitidamente os acontecimentos e a história fazendo sentido.
Primeiro o inevitável: é claro que a cidade respira Beatles e há memorabilia à venda por todas as partes. O Cavern Quarter – onde ficava o The Cavern Club, primeiro palco dos Beatles, demolido em 1973 para construção de um estacionamento -, é o epicentro para os fãs, com uma série de restaurantes e bares temáticos. A principal exposição sobre o quarteto (The Beatles Story Exhibition), porém, fica na Albert Dock, um gigantesco complexo de docas que é o polo cultural de Liverpool, cercado de armazéns de tijolinhos vermelhos transformados em restaurantes, bares e museus. Instrumentos, roupas, discos, cartazes e até uma réplica do Cavern Club original estão lá.
The Beatles Story Exhibition
Liverpool se beneficia bastante da fama dos Beatles – até porque seria insano fazer o contrário -, mas a cidade vai muito além do quarteto e valoriza como poucas sua história de centro comercial e de ser um dos principais portos do mundo. Ainda na Albert Dock, o International Slavery Museum é um verdadeiro acerto de contas com o próprio passado, no tempo em que os comerciantes locais comandavam o tráfico de escravos para a América do Norte e o Caribe – cerca de 1,5 milhão de africanos foram transportados por navios comandados dali, o equivalente a 10% de todos os negros levados à força para o Novo Continente.
Para um brasileiro que tem algum conhecimento da desgraça da escravidão, a novidade está em um relato pormenorizado de uma viagem do Essex, um navio negreiro que fazia o chamado Comércio Triangular, no ano de 1783. Levava tecido, armas e ferragens para a costa africana, onde eram trocados ou comercializados para comprar escravos. Esses eram levados cativos para a América, onde eram vendidos. O veleiro enchia os porões de açúcar, algodão e café e retornava a Liverpool, para aferir os lucros e recomeçar o périplo.
Edifício do Port of Liverpool
O tráfico de escravos não era moleza para nenhum dos dois lados diretamente envolvidos na atividade – claro que dos sete comerciantes proprietários do Essex, só o capitão Petter Poter punha a mão na massa. A viagem relatada durou de junho de 1783 a agosto de 1784, passando por Cabo Verde, Bassa Cove (Costa Africana) e St. Vincents (Caribe), retornando novamente a Liverpool. Dos 33 marujos e um menino negro que partiram da Inglaterra, só 24 retornaram – nove morreram durante a jornada e o pobre garoto, propriedade do capitão Potter, foi vendido como escravo no Caribe.
O Essex partiu de Bassa Cove com 330 africanos escravizados. Depois de uma travessia do Atlântico que levou 51 dias - classificada pelo capitão como “eventful” (agitada) -, 282 sobreviveram à viagem (48 ficaram pelo oceano). Ou seja, quase 30% da tripulação do veleiro e 15% dos cativos não completaram a viagem...
Mestre Pastinha, no hall da fama
Em busca de uma consequência positiva da diáspora africana, o museu tem um segmento dedicado aos feitos dos negros nas mais diversas atividades, incluindo uma espécie de hall da fama com as personalidades. Encontrei quatro brasileiros no mural, com direito a surpresas. Ao lado de nomes de peso como Bob Marley, Muhammad Ali, Jesse Owens e Martin Luther King, a maior é a presença do Mestre Pastinha, nome indiscutível entre os principais difusores da capoeira, mas pouco conhecido do grande público até no Brasil. Gilberto Gil está lá também, o que não me surpreendeu. Quem não podia estar de fora, mas está, é Pelé. No seu lugar aparece, de terno e gravata, Edson Arantes do Nascimento - eles não devem saber o que o Edson anda aprontando, entende... O pior fica para o final, na figura da única mulher brasileira na lista: Benedita da Silva.
O tráfico negreiro enriqueceu Liverpool e deu o impulso para que a cidade se tornasse um poderoso centro marítimo nos séculos seguintes, o que é retratado no mesmo prédio, no Merseyside Maritime Museum. Entre meados do século XIX e XX, nove milhões de imigrantes partiram desse porto na costa oeste inglesa para fazer a América – irlandeses, escoceses, ingleses, noruegueses, judeus do Leste Europeu e outros. Toda essa gente sendo transportada pelo oceano fez a fortuna das grandes companhias de navegação da cidade, que no começo dos 1900 se lançaram a construir os grandes transatlânticos.
Propaganda da White Star
Sempre que se fala do Titanic se menciona que ele foi construído em Belfast (Irlanda do Norte), zarpou de Southampton (Inglaterra) e ia para Nova York (EUA), mas pouco se fala que o navio era registrado em Liverpool e propriedade de uma companhia de navegação local, a White Star Line, comprada em 1902 pelo milionário norte-americano J.P. Morgan na tentativa de monopolizar o transporte marítimo mundial. O Titanic foi construído sob ordem dos americanos, para concorrer com outra gigante da navegação de Liverpool, a Cunard, que dava as cartas no transporte marítimo com os transatlânticos Lusitânia e Mauretania. Na ânsia de fazer maior e mais rápido, veio o desastre...
No mesmo museu marítimo uma ala inteira conta a história de uma parte terrível e pouco gloriosa da Segunda Guerra Mundial, a Batalha do Atlântico. Sendo uma ilha, em 1939 a Grã-Bretanha dependia do comércio marítimo para obter 100% do petróleo, boa parte da matéria-prima para a indústria e metade da comida para alimentar seus 48 milhões de habitantes. Os alemães, claro, sabiam disso, e colocaram em prática um plano para sufocar os britânicos pela escassez: uma frota de submarinos (chamados de U-boats) foi despachada para o Atlântico, para afundar o maior número possível de navios mercantes que encontrasse pelo caminho.
Nos primeiros anos do conflito a estratégia funcionou muito bem. Sem navios de guerra suficientes para escoltar os comboios, os ingleses viam sua frota comercial minguar dia após dia. Para piorar, os alemães inutilizaram o porto de Londres, bloqueado por minas aquáticas, obrigando a Inglaterra a desviar o fluxo para a costa oeste, especialmente para Liverpool.
Cartaz de recrutamento alemão para os U-boats
A cidade tornou-se o principal porto britânico durante a guerra, respondendo por um terço de todas as importações britânicas no período. Cerca de 76 mil navios mercantes passaram por Liverpool durante o conflito, uma média de 280 por semana. Além disso, pela importância mercantil, também foi transformada por Churchil no centro de comando da Batalha do Atlântico, transferido de Plymouth. Uma sala com aqueles mapas gigantescos que se vê nos filmes, cobrindo paredes inteiras, segue intacta e pode ser visitada na Derby House, hoje parte do Liverpool War Museum.
A luta pela supremacia no oceano começou lentamente a pender para o lado inglês a partir de 1941, com um acontecimento fortuito. Engajando em combate o U-boat 110 na costa da Groenlância, o HMS Bulldog (um navio da Royal Navy) conseguiu capturar o submarino intacto, incluindo um exemplar da Enigma, a máquina usada pelos alemães para codificar todas suas mensagens militares . De posse da geringonça, os ingleses quebraram o código e passaram a estar sempre um passo à frente no campo da informação - o fato não foi descoberto pelos germânicos até o final da guerra.
No ano seguinte, com os Estados Unidos já no conflito, os britânicos conseguem equilibrar a Batalha do Atlântico quando o governo Roosevelt põe em andamento o maior programa de construção de navios da história – 750 em 1942 e 1.500 em 1943, em média três novas embarcações por dia. Em resumo, os americanos estavam produzindo navios mais rápido do que os alemães conseguiam afundar.
Mark VIII, torpedo da Royal Navy contra U-boats
O balanço da batalha é sombrio. Do lado aliado, 2.200 embarcações foram afundadas no Atlântico (das quais 2.000 por submarinos), causando a morte de 30 mil tripulantes da marinha mercante. Pelo lado alemão, dos 750 U-boats envolvidos no combate, 510 foram afundados – dos 27 mil marinheiros que tomaram parte na campanha, 18 mil perderam a vida, o que significa dois de cada três.
Mas o papel de Liverpool na guerra ainda não tinha acabado. Nos meses que antecederam o Dia D, a cidade tornou-se o principal porto para desembarque dos GIs americanos. Cerca de um milhão de soldados vindo dos Estados Unidos passaram por ali, trazendo com eles chicletes, gel para o cabelo, cigarros e os últimos discos de Rhythm & Blues, a base do que na década seguinte viria a ser conhecido por Rock & Roll...
Para mim, é nessa hora que tudo se encaixa. Quase consigo ver um adolescente topetudo entrando em um pub esfumaçado do Meyerside, atrás de um pacote de Lucky Strikes, já atrasado para o ensaio da sua recém-criada banda de skiffle. Atrás do balcão, o velho marinheiro empurra o cachimbo para o canto da boca e tenta puxar assunto, enquanto desliza o maço de cigarros e recolhe as moedas.
O garoto de óculos já tinha escutado tudo aquilo inúmeras vezes, os anos na marinha mercante, o quanto era dura a vida no mar durante a guerra e como certa vez o barco em que o velho servia tinha conseguido afundar um U-boat alemão, usando cargas de profundidade.
Le Sous-marin Jaune
Ele sabia cada detalhe da batalha e até achava que a estória daria uma boa música, mas não tinha tempo para isso agora. Paul certamente já devia estar esperando na frente do Casbah - e aquele cara odiava atrasos. Recolheu o pacote de cigarros e saiu apressado, tentando imaginar o que seria preciso para transformar um submarino em algo mais divertido. Talvez mudando a cor...

*A letra é de Yellow Submarine. Traduzindo, seria algo assim:

“Na cidade em que eu nasci,
Viveu um homem que ganhou o mar,
E ele nos contou sobre sua vida,
Na terra dos submarinos,


Então nós navegamos em direção ao sol,
Até encontrarmos o mar de verde,
E vivemos entre as ondas,
No nosso submarino amarelo”

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