quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Por quem os sinos dobram

Sinos na torre da igreja de St. Luke's
Sempre atribuí ao som dos sinos de igreja um caráter sério, sisudo até, anunciando algo importante, um velório, um enterro – ou até uma catástrofe. É verdade que eles soam também nos casamentos, mas sempre acabam meio diluídos no ritual, encobertos pela marcha nupcial e pela euforia generalizada desse tipo de evento. Quem leu Hemingway dificilmente não associa as badaladas à obra prima dele, e consequentemente à poesia de John Donne, presente logo no início do livro: “Nenhum homem é uma ilha isolada... E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”. Belo nariz de cera, mas... Os ingleses sempre surpreendem. Por aqui, o som metálico tem pouco de solene, é encarado como música – e até como esporte.
Comecemos do princípio, porém. Um amigo querido sempre diz que “sorte é o encontro da capacidade com a oportunidade”. Bom, de capacidade não sei, mas a oportunidade apareceu e não deixei passar. Estávamos a Fabi e eu investigando os arredores de uma bela torre de igreja que enxergamos todos os dias da nossa janela ao abrir as cortinas quando nos deparamos com um senhor de uns 50 anos, grisalho.
Trocamos cumprimentos polidos e breves apresentações. Notando nosso interesse pelo templo, Frank nos pergunta se não queríamos ver a igreja por dentro – estava fechada e ele tinha a chave. Claro, entramos - e era mesmo linda. Na saída, ele diz que logo mais iria tocar os sinos, algo que fazia todas as quintas-feiras, às sete e meia da noite, e nos convidou para assistir, na semana seguinte. Frank não estaria presente (ia passar duas semanas de férias em Tenerife), mas disse que bastava procurar por Mr. Calling, ali mesmo.
Fabi na ringing chamber
Na quinta seguinte voltamos e fomos gentilmente introduzidos na igreja por um sólido velhinho de olhos azuis e cabelos brancos, no viço dos seus 77 anos, o responsável pelos sinos da Igreja de St. Luke’s (São Lucas para nós). Paróquia da Igreja Anglicana, é relativamente recente para os padrões da Inglaterra– foi terminada em 1868, quando essa parte de Derby crescia aceleradamente, acumulando novos moradores (e fiéis, por consequência), atraídos pelos empregos da Revolução Industrial.
Sem parar para tomar fôlego, ele lidera a subida de mais de 100 degraus rumo à ringing chamber, espécie de casa das máquinas manual de onde se comanda todos os oito sinos - seguido por nós, um homem meio careca nos seus 30 anos e duas senhoras, beirando os 50.
Livro com as partituras de sequências para os tocadores
Em poucos minutos Mr. Calling nos introduz à sua arte. Eu também pensava que para tocar um sino bastava chacoalhar uma corda de um lado para o outro, mas não é nada disso. Para manter o controle do toque e do ritmo, o tocador só deixa o badalo atingir a parede de metal quando a estrutura está de ponta-cabeça - isso mesmo, o sino só soa quando invertido.
O velhinho ensina que, basicamente, há dois tipos de toque: o handstroke, quando o sino faz o movimento mais curto (e você puxa a corda com os ombros para baixo), e o backstroke (toque que exige segurar a corda acima da cabeça e com os braços esticados), mais longo. Como se toca mais de um sino ao mesmo tempo, eles soam em tempos diferentes, criando uma verdadeira sinfonia.
Peal recorde, de 1923
Complexo? Isso é só a base. Há livros de partituras para organizar os toques e as sequências que devem ser seguidos pelos tocadores. Ah, e os ingleses adoram uma competição – e recordes, é claro - e transforam os sinos em mais uma. Assim surgiram os peals, sessões de toque em que uma equipe mantém a música rolando por horas – e sem poder repetir as sequências de toques nem uma vez! O recorde na St. Luke’s, registrado em uma placa de bronze afixada na ringing chamber, é de 1923, quando oito insanos mantiveram os sinos soando, sem parar, por três horas e trinta e dois minutos, contabilizando 5.040 sequências diferentes.
Antes de começar a sinfonia da noite, Mr. Calling nos informa que a St. Luke’s na verdade é famosa pelos seus sinos - reúne o conjunto mais pesado de todo o Derbyshire, acima até da Catedral. O maior deles pesa 3.000 weights (uma medida só usada por aqui), o equivalente a uma tonelada e meia. O menor dos oito tem 350 quilos.
Mr. Calling e eu
 Esse conjunto de sinos está na igreja desde 1879, mas é tão pesado que fazia a própria torre em que está instalado oscilar, criando risco de desabamento. Por isso, nos primeiros anos do templo eles pouco eram usados. Permaneceram silenciosos durante os longos anos da Primeira e Segunda guerras mundiais e só voltaram a soar plenamente em 1950, quando foram reinstalados mais abaixo da torre.
Depois de assistir a algumas sequências, sou convidado pelo Mr. Calling a arriscar uns movimentos. Bom, para encurtar, posso dizes que não foi fácil, apesar da atenta supervisão...
Para não perder o ritmo, a recomendação é manter a cabeça parada, mas para mim era impossível resistir ao reflexo de olhar para cima - no que fui uma e outra vez repreendido pelo mestre. Apesar da dificuldade, a paciência do velhinho fez com que eu entregasse alguns toques satisfatórios em handstroke e outros em backstroke. Quem sabe até o final do ano ainda consigo completar uma sequência...

Carreguei no YouTube um vídeo do toque dos sinos, direto da ringing chamber da St. Luke's. Segue abaixo:
http://youtu.be/PNHnTl-OTBA

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