quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Immigrant Song

“On we sweep with treshing oar, our only goal will be the western shore”*
Normanton Road
A vista do alto da colina é tipicamente inglesa. Os sobradinhos vitorianos são o padrão, com os tijolinhos vermelhos e suas antigas chaminés desativadas, cobertas por curiosas coroas de cerâmica. No meio do cenário o destaque é a torre da igreja de St. Luke’s, mas a Catedral, maior e mais robusta, também é visível mais ao longe, a pequena bandeira triangular com a cruz de São Jorge tremulando. Mas basta descer três quadras pela Mill Hill Lane para mergulhar em outro mundo, bem mais real e menos uniforme.
Eles vêm de todas as partes, mas aqui estão em casa. É só pisar na Normanton Road para se deparar com as primeiras kebab stores, Indian breakfasts e Eastern European food stores - essas vendem produtos de todo o Leste Europeu, anunciando nos letreiros comidas da Polônia, Ucrânia, Lituânia, Eslovênia, pode escolher. Lá dentro, incontáveis opções de embutidos, salames, salsichas, linguiças, presuntos, patês, conservas diversas e as cervejas... Cada lojinha dessas tem, logo na entrada, um refrigerador formando uma verdadeira parede de latas de cerveja dos países do leste.
A Normanton Road é a principal avenida ligando o centro de Derby a dois bairros que concentram boa parte dos imigrantes na cidade (Normanton e New Normanton), especialmente os menos privilegiados. A Mill Hill Lane, nossa rua, fica na fronteira entre a região central e New Normanton, o ponto de conexão entre os dois mundos. As estatísticas mostram que 90% da população de Derby nasceu no Reino Unido, o que deixa 10% para os imigrantes – desse total, 7% são da União Europeia (a maioria do Leste) e 3% do resto do mundo. Bom, se um a cada dez moradores da cidade é não-britânico, parecem estar todos concentrados aqui... E, posso dizer? Aos poucos também vou me sentindo em casa.
A parede de cervejas do Leste Europeu
Quase todos os dias desço a Normanton Road, ou para fazer compras ou para fazer algo de exercício no Derby Arboretum Park, que fica a umas seis quadras de casa. Lá, sempre nos finais de tarde de quartas e sextas feiras, tomo parte no treino da Seleção Africana no Exílio. Sudaneses, etíopes, marfinenses, expatriados do Malawi, de Gana, Do Chade, de Zâmbia, da Tanzânia, além de mim e um cigano bósnio. No meio deles, eu brilho em campo – afinal, sou o único branco....
Todos falam algum inglês mas ninguém se chama pelo nome ali. Como em um daqueles antigos filmes americanos de guerra, todos têm um apelido. O organizador da confusão é o Rasta, obviamente com seus dreadlocks, que envia mensagens de celular avisando dos treinos. O CG, magro, esforçado, não gosta de perder nem dividida. No meio de campo, Iaia, alto, com um moicano à la Cissé, tem a elegância de um Ademir da Guia, mas é um pouco fominha.
Pearl Beauty, especializado em maquiagem para noivas indianas
Um dos melhores é o Oma, um moleque nigeriano de uns 15 anos, habilidoso, boa visão de jogo, não treme pra marmanjo nenhum. O Uncle, chamado assim por ser o mais velho de todos, na casa dos 45 anos, chega de bicicleta e fica sempre solidamente postado na defesa. O Rasta 2 abre um largo sorriso sempre que me cumprimenta, feliz ao descobrir que sei onde fica seu Zimbábue e mais ainda por eu conhecer a música do Bob Marley que celebra a independência do país. E eu? Ali eu sou simplesmente “Brasil” - é assim que eles me chamam.
Há um supermercado razoavelmente bem abastecido quase na esquina de casa, o Lidl, uma cadeia de lojas espalhadas pela Europa toda, mas para comida fresca o caminho é seguir mais adiante, rumo ao Pak Foods. Lá, sim, os donos paquistaneses (daí o Pak no nome) garantem que as verduras estejam sempre novinhas, e os barbudos de toca muçulmana me servem de carneiro, frango ou peixe processados segundo os rituais Halal. Ali você encontra qualquer tipo de tempero imaginável – há um corredor só para isso -, além de bons pães nan, saborosas azeitonas da Turquia e arroz indiano, distribuídos pelas prateleiras compartilhadas com velhinhos de longas barbas e mulheres de véus que permitem ver só os olhos (burca, ainda não vi nenhuma). O único porém é que o Pak Foods não vende nenhuma bebida alcoólica, a religião não permite.
Pak Foods
Saindo de lá, se eu seguir à direita chego ao templo Sikh (já tratei dele aqui no blog). À esquerda, uns 200 metros adiante, fica uma mesquita. Meu caminho costuma ser no outro sentido, na verdade, no rumo de casa. Ainda na Normanton Road, paro para dar um alô para o meu barbeiro, o Mohamed, que não se considera iraquiano, mas curdo. Ao me sentar para cortar o cabelo sou bombardeado de perguntas sobre o Brasil. Ele planeja assistir a Copa, no ano que vem, ou as Olimpíadas, em 2016. Explico que os ingressos são difíceis de conseguir mas Ali não desanima, apesar da surpresa ao ser informado o quanto nosso país está caro nos dias de hoje.
Farinha para fazer pão chapatti, da marca do tigre, no Pak Foods
No rumo de casa, se o tempo está bom, costumo ouvir uma música alegre, com a perceptível cadência do leste, originada do acordeão de um homem de uns 60 anos, a cestinha de contribuições aos pés. Depois de depositar uma moeda, um dia parei para conversar com ele – não falava nada de inglês, mas um amigo dele, vendo a cena, deixou a loja em frente e ajudou a traduzir.
Seu nome é Rudi e veio da Eslováquia, já há alguns anos. Pergunta de onde sou e, surpreso ao ouvir Brasil, arrisca uns acordes que não reconheço no teclado. Com a barreira da língua, a conversa morre aos poucos. Agradeço e sigo caminho, ouvindo os acordes ciganos se distanciando aos poucos.

*A letra é da música do Led Zeppelin que dá nome à crônica, Immigrant Song. Difícil traduzir, mas acho que em português seria algo assim:
“Pra frente nós avançamos com remos implacáveis, nosso único objetivo será a costa oeste.”


Carreguei um vídeo curto no YouTube com o som do Rudi e uma vista da Normanton Road. Segue abaixo o link:
http://youtu.be/LBaTYvY_WVk

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