quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Na Herzegovina havia uma ponte

Stari Most, ligando os dois lados de Mostar
"Uma vez meu finado pai ouviu do Sheik Dedije e me contou, quando eu era criança, como as pontes vieram a esse mundo e como a primeira ponte foi construída. Quando o misericordioso e compassivo Alá criou o mundo, a terra era macia e regular, como uma placa finamente esculpida. Isso desagradou o diabo, que invejou o homem por esse presente de Deus. E enquanto a terra estava exatamente como surgiu das mãos de Deus, úmida e suave como argila ainda a ser modelada, ele a roubou e arranhou a face da terra de Deus com suas unhas, o máximo e mais profundamente que pode. A seguir, a estória diz, rios profundos e ravinas se formaram, o que dividiu um distrito do outro, mantendo os homens separados, impedindo que eles viajassem por essa terra que Deus tinha dado a eles como um jardim para cultivar sua comida e seu sustento. E Alá teve pena quando viu o que o Amaldiçoado tinha feito, mas não foi capaz de reverter o que o diabo tinha deformado com suas unhas, então ele mandou seus anjos para ajudar os homens e tornar as coisas mais fáceis para eles. Quando os anjos viram como os desafortunados homens não podiam atravessar os abismos e ravinas para terminar o trabalho que tinham a fazer, e, atormentados, olhavam em vão e gritavam de um lado para o outro, eles estenderam suas asas sobre os vãos nesses lugares e os homens foram capazes de cruzá-los. Então os homens aprenderam com os anjos de Deus como construir pontes. E, depois das fontes, a maior bênção é construir uma ponte e o maior pecado é interferir com uma delas, porque qualquer que seja ela, de um tronco de árvore sobre um riacho na montanha a essa grande construção de Mehmed Pasha (a Ponte sobre o Drina), toda ponte tem seu anjo guardião que zela por ela e a mantém pelo tempo que Deus ordenou que ela permaneça em pé.”*
Mesquita Koski Mehmed Passa, no lado oriental do Neretva

Mostar, Bósnia-Herzegovina, a cidade que vive em torno de uma ponte, a Stari Most. A grandiosa estrutura em arco foi terminada pelos turcos em 1566, para unir os dois lados do Rio Neretva e facilitar o caminho das caravanas que viajavam de leste a oeste (e vice-versa), conectando Istambul, a capital do Império Otomano, a cidade-estado de Ragusa, a maior potência comercial deste lado do Mar Adriático, atual Dubrovnik, na Croácia, além de Sarajevo e Trieste, hoje na Itália.
Em novembro de 1993 nada disso parecia ter qualquer importância. Há pouco mais de vinte anos, mais uma guerra se espalhava pelos Balcãs, com a desintegração da Iugoslávia. A Bósnia havia declarado independência em março de 1992 e logo em seguida começaram os combates contra paramilitares sérvios, apoiados pelo exército iugoslavo, dominado pela Sérvia. No início, bósnios e croatas lutavam juntos contra os sérvios, mas em 1993 esses dois lados também se desentenderam, transformando o conflito em uma sangrenta disputa tripartite por território.
"Não se esqueça de 1993"
Em Mostar, então uma cidade em que muçulmanos, católicos e cristãos ortodoxos viviam lado a lado, as diferenças religiosas se consolidaram geograficamente. A minoria sérvia fugiu da cidade, enquanto seus militares ocupavam posições nas montanhas ao redor. Os muçulmanos se concentraram na margem oriental do Neretva, com os croatas no lado oeste. Daí em diante, croatas e muçulmanos eram bombardeados pelos sérvios, das montanhas, enquanto croatas bombardeavam os muçulmanos - que não bombardeavam ninguém, porque não tinham artilharia pesada.
Em 8 de novembro de 1993, os croatas começam a dirigir fogo de tanques deliberadamente em direção à Stari Most. No dia seguinte, depois de ser atingida por 64 disparos, a ponte de 427 anos veio abaixo (o triste vídeo do desabamento está no YouTube: http://www.youtube.com/watch?v=CM3B-6CFo9k).
Sabendo disso tudo, é estranha a sensação de se deparar com o arco de pedra brilhando sob o sol, cruzando o Neretva, bem verdinho. A Stari Most foi reconstruída, usando materiais e técnicas otomanas originais, entre 2001 e 2003, sob a supervisão da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Aliás, ao fim da guerra, não havia nenhuma ponte em pé na cidade anterior a 1994...
Cheguei a Mostar no começo da manhã, depois de uma viagem bonita mas penosa, de 2h40 de trem, que partiu às 6h05 da capital bósnia. O cenário era fantástico, os vagões antigos e confortáveis, mas a doença insistia em me perseguir (uma gripe balcânica brava) e, para piorar, todo mundo fumava dentro do trem.
Prédio do Lyubljanska Banka
A boa nova é que meus anfitriões em Sarajevo tinham arrumado hospedagem para mim em Mostar e a senhora dona do hostel foi me buscar na estação, de carro. Depois de deixar a mochila no quarto, saí para dar uma volta pela cidade.
As imagens que se vê de Mostar pela internet ou na televisão na maioria das vezes mostram só o centro histórico próximo à Stari Most. Mas saindo da Kujundziluk, a ruazinha de pedra que concentra lojinhas e restaurantes para os turistas, o cenário é bem mais triste.
As cicatrizes da guerra estão logo ali, nas duas margens do rio, é só sair da rua principal. As ruínas são de todos os tipos, casas (muitas queimadas pelos próprios vizinhos), uma escola de música, um hotel centenário (o Hotel Neretva), o prédio de nove andares de um banco (o antigo Ljubljanska Banka), um edifício de apartamentos de cinco andares, a igreja ortodoxa (em restauração), e tantas outras. No muro metralhado de uma casa, uma mensagem anônima: "You must learn to see things trough the eyes of those who can no longer see" ("Você precisa aprender a ver coisas pelos olhos daqueles que não podem mais ver"). Nessa parte, há pouco ou nenhum dinheiro para remover o entulho ou para a reconstrução.
Cemitério muçulmano e mais ruínas de guerra
Em volta das mesquitas, os cemitérios muçulmanos se espalham, inconfundíveis com os túmulos brancos e datas de morte de 1992 a 1994. Mostar tinha 64 mesquitas no início da guerra e só uma escapou intacta aos combates (a Roznamedzi Ibrahimefendi) – a maioria delas já foi reconstruída, com a ajuda de países muçulmanos do Oriente Médio. Ao final do conflito, a principal cidade da Herzegovina estava praticamente arrasada, a ponto de ser comparada a Dresden, na Alemanha, ao fim da Segunda Guerra Mundial.
Os Balcãs são um lugar difícil de entender. Como vizinhos que viveram lado a lado durante anos, famílias que se conheciam e se diziam bom dia e boa tarde todos os dias, cujos filhos brincavam juntos pelas ruas, podem de um dia para o outro por fogo na casa ao lado?
Mostar era uma espécie de mini-Sarajevo no que diz respeito à tolerância religiosa. Dominada pelos turcos no século XV, era a capital comercial, militar e religiosa dos otomanos no território da Herzegovina. Nas décadas seguintes a cidade também recebeu parte do fluxo de judeus expulsos da Espanha e no século XIX já contava com um bispo católico e um arcebispo ortodoxo.
Hoje Mostar tenta se projetar como destino turístico, o que em parte vem conseguindo. No verão a cidade é tomada por visitantes que “esticam” uma estada em Dubrovnik, a 140 quilômetros de distância. Em outubro, porém, quando estive lá, o máximo que se vê são poucas excursões que chegam no final da manhã, amontoam-se ao redor da ponte e partem de novo, logo após o almoço.
"Você precisa aprender a ver coisas pelos olhos daqueles..."
De manhã e durante a tarde, a cidade era toda dos seus habitantes – e minha. Aproveito um dia brilhante de sol e logo cedo subo ao minarete da Mesquita Koski Mehmed Pasa, originalmente construída em 1618, destruída na guerra e depois reconstruída. Sozinho, passo uns bons 40 minutos desfrutando da vista, observando a vida da cidade, uns bons 20 metros abaixo.
Quando desço, me deparo com uma banca de livros no pátio da mesquita – para minha alegria, encontro uma tradução para o inglês de mais uma obra do Ivo Andric (The Damned Yard and other stories), um inacreditável escritor bósnio de origem sérvia, autor das linhas iniciais citadas nesse post. Pago, com um sorriso de orelha a orelha, e o atendente da banca parece perceber minha felicidade. Começamos a conversar.
Aneem, de 27 anos, é um muçulmano que acredita em karma e no poder da educação. Nascido e criado em Mostar, fala um inglês perfeito e trabalha na mesquita – aquele era seu dia de folga, mas mesmo assim ele apareceu, só para tomar um café com os amigos. Quando digo que sou brasileiro, imediatamente começa a me perguntar sobre cidades, distâncias e preços no Brasil - é mais um bósnio que faz contas para tentar ir à Copa do Mundo.
Roznamedzi Ibrahimefendi, única das 64 mesquitas que sobreviveu intacta
Nos cálculos dele, com cinco mil euros daria para passar dez dias em solo brasileiro e assistir à primeira fase. “É dinheiro para uma vida, mas essa é uma oportunidade única na vida também”, ele diz. Não quero desanimá-lo em relação aos valores, então concordo, reticente.
Aneem é um muçulmano liberal, nos moldes da maioria dos que habitam os Balcãs. Não consome álcool, mas não tem nada contra quem bebe – fuma e toma café, é claro. Ele diz ter tido uma má experiência com bebida (deve ser um dos poucos que jurou nunca mais beber durante uma ressaca terrível e cumpriu a promessa).
Ao saber que vivo em Derby, ele se mostra bem informado sobre o futebol inglês – conhecia até o Derby County. Aneem é primo do goleiro da seleção bósnia, Asmir Begovic, que joga no Stoke City, na briga para se manter na Premier League, a primeira divisão inglesa. “Tentei convencê-lo a me levar para a Inglaterra, para assistir um jogo”, conta, meio desanimado. “Mas você sabe como é família, quando alguém fica rico, logo se esquece da parte pobre...” Conversamos mais um pouco, desejo sorte à Bósnia e me despeço.
Pôr do sol, igreja católica na margem esquerda e mesquita na direita
Fiquei três dias em Mostar e nos finais de tarde meu destino era a margem oriental do Neretva, para assistir o pôr do sol, de frente para a ponte. E não era só pela vista. Perto das seis da tarde eu já estava lá, debruçado no parapeito da Kujundziluk. Primeiro vinham as quatro badaladas do lado oeste, com os sinos da igreja católica marcando a hora cheia. Logo em seguida começavam os chamados para oração, vindos das várias mesquitas, dos dois lados do rio. Os cantos se sobrepunham, em tons diferentes - do lado oeste mais agudo e musical, do leste, mais próximo, grave e solene. Bem ao longe dava para ouvir um terceiro chamado, descendo do alto de um minarete, que pela distância soava como várias vozes misturadas.
Dezoito anos depois da guerra, a tolerância parece ter voltado a Mostar, com muçulmanos, católicos e ortodoxos vivendo de novo juntos, dos dois lados do rio. Que continue assim.

Carreguei um vídeo do pôr do sol em Mostar no YouTube, com os chamados das mesquitas para oração ao entardecer. O link segue abaixo: 
http://youtu.be/KByxVn3RuPM

*Trecho de A Ponte sobre o Drina, de Ivo Andric

Nenhum comentário:

Postar um comentário