O cão do Veliki Park, em Sarajevo |
A temperatura está agradável, na casa dos 20 graus. Subindo pelo meio de uma das trilhas, me deparo com um ensolarado banco desocupado. Quando me aproximo, vejo que há um cão debaixo dele, dormindo satisfeito, aproveitando o inesperado calor do sol em meados de outubro, época em que às vezes até neva na cidade. Ele escuta eu me aproximar, abre os olhos preguiçosamente mas não me dá maior importância e retoma o sono.
Eu me sento ao lado dele e dou a mão para ele cheirar – ele não se mexe. Quando me abaixo para fazer um carinho na cabeça do bicho, vejo uma pequena plaquinha presa a uma das orelhas, com um número: 2236. Me recosto para também aproveitar o sol, mas nosso sossego não dura muito. Logo aparece uma cachorrinha que parecia um filhote de hiena e começa a morder o focinho do meu companheiro de praça.
O 2236 e a pequena hiena |
Abraçado pelo sol da tarde, fico por uns bons minutos observando a brincadeira dos dois, rolando pela grama, até que uma série de latidos mais altos fazem a pequena correr para a parte alta da praça, logo seguida pelo 2236. Os dois desaparecem atrás de uma moita. Eu me levanto e sigo meu caminho.
Mostar, meio da tarde. É o meu segundo dia na cidade e estou caminhando desde cedo pelos dois lados do Rio Neretva, impressionado com a quantidade de ruínas ainda sem solução, 18 anos depois do fim da guerra. A fome aperta. Procuro um lugar para comer algo e encontro uma modesta casa de cevapcici, o prato típico da Bósnia.
Entro e tento pedir comida, mas o homem junto à grelha não me entende. Ele chama uma garçonete, que me indica uma mesa. Estou na parte norte de Mostar, longe da área mais turística, que fica nos arredores da Stari Most, a histórica ponte otomana. Eu me sento e arrisco o pedido, seguindo o que aprendi em Sarajevo: quero sete rolinhos. Ela me olha, sorri e me explica, em inglês, que ali só posso pedir cinco ou dez. Vou de cinco, e peço também uma cerveja.
Ela me olha, sorridente, e pergunta: “Então você bebe e fuma?”, trazendo um cinzeiro para a mesa.
Insistente a pequena hiena |
O cevapcici é uma espécie de croquete de carne bovina, assado como churrasco, servido em pequenas porções (ali de cinco ou dez unidades), acompanhado de um pão parecido com o pita, cebola crua e iogurte. É bastante saboroso, mas recomendo maneirar na cebola.
Enquanto tomo a cerveja, entra pela porta um homem alto, barbudo, aparentando quarenta e muitos anos, carregando uma pasta. Pede licença, senta na minha mesa e faz um pedido à garçonete, em sérvio-croata. Em seguida ele vira para mim, fala algo na mesma língua e dá uma gargalhada. Rio também, mas peço desculpas por não entender a piada, em inglês.
Começamos a conversar, em uma mistura de alemão, espanhol e sérvio-croata – das quais eu só falo espanhol. Com boa vontade e um pouco de mímica, porém, qualquer comunicação sempre flui bem. Ele me conta que é de Mostar, mas que passou muitos anos na Alemanha, para onde fugiu durante a guerra, para trabalhar na unidade da Goodyear de Fulda, perto de Frankfurt. Voltou à sua cidade natal há três anos, apenas.
Meu cevapcici chega e começo a comer, com apetite. Ele me conta que nos seus tempos de escola, na Iugoslávia, não se aprendia inglês, mas alemão, francês e russo. Diz que alemão ele domina, fala algo de francês e esqueceu todo o russo. Sorrindo, afirma que inglês ele deixa para os jovens, já está muito velho para aprender.
O prato dele chega, um cozido que parecia bastante apetitoso. Termino meu cevapcici (com exceção de metade das cebolas), pago, agradeço à garçonete, me despeço do barba e volto para a rua.
Estação de trem de Mostar, no dia da partida |
Ele se aproxima devagar, vestindo um sobretudo cinza. Sobre a cabeça, uma boina azul escura ao estilo Lênin deixava escapar pela parte de trás uma juba de cabelos cinzentos, desgrenhados e gordurosos. Claramente ele está curioso sobre a minha presença ali.
Passa pela minha mesa, me observando, faz meia volta sobre si mesmo e caminha na mesma direção em que veio. Na segunda passagem, ele não resiste e se aproxima. Quando chega mais perto, consigo ver dois olhos bem azuis brilhando no rosto encardido, barba de uma semana por fazer, pelo menos.
“Italia?”, ele pergunta.
Aceno negativamente com a cabeça.
“España?”
Nego.
“Portugal?”, arrisca.
Balanço de novo a cabeça para lá e para cá.
“França, Germania, Checoslovaquia?”, ele atropela, buscando no seu mapa imaginário de países que não existem mais.
Sigo negando. Ele coça a cabeça por baixo da boina, acima da orelha, pensativo. Tento ajudá-lo e digo, em inglês, fazendo um sinal de ir além com as mãos: “Another continent” (“Outro continente”).
Ele não parece entender, então resolvo abrir o jogo: “Brasil”!
“Brasil...”, ele repete, como que para ganhar tempo e assimilar a informação. De repente ele desperta e segue numa mistura de alemão e sérvio-croata.
“Brasil, gut musica!”, diz, sorridente.
Concordo, surpreso. Eu esperava algum comentário sobre futebol e a Copa do Mundo, o que mais ouvi enquanto estive na Bósnia.
Mas ele vai além. Com gestos, me faz entender que uma vez conheceu um soldado brasileiro, que musicou alguns versos do alcorão. E completa, batendo o indicador na cabeça: “Inteligentsia!”
Aceno positivamente, sem saber o que mais acrescentar. Ele acrescenta: “Brazila, universala musica!”
Só consigo concordar com a cabeça, o queixo provavelmente mais caído do que deveria. Ele agradece e se retira, fazendo um sinal de que não quer atrapalhar meu café.
Aconchego no Kosevo Park |
Sento na grama e me recosto em uma árvore, o sol na cara, observando um pai e um filho brincando com seu cachorro, com uma bolinha que o bicho trazia de volta.
No meu campo de visão, do lado direito, vejo um cão se aproximar, entrando no parque pela mesma escada que eu tinha descido, a uns 20 metros de mim. Ele alcança a grama e se deita ao sol, olhando na minha direção.
Estalo os dedos e assobio, ele se aproxima, devagar. Aproximo minha mão do focinho, ele cheira e entra no meio das minhas pernas, a cabeça baixa. Faço um carinho, ele faz uma volta sobre si mesmo e se deita, aconchegado, a cabeça sobre o meu joelho.
Passando a mão sobre a cabeça do cão, vejo uma plaquinha presa à orelha: 2236. Era o mesmo cachorro amigo da pequena hiena, que eu tinha encontrado no outro parque, 15 dias antes.
Perguntei aos meus anfitriões do hotel o que significavam aquelas plaquinhas numeradas nos cachorros de rua e eles me disseram que servem para identificar os animais que foram esterilizados. Mesmo assim, eles continuam nas ruas – e muito bem alimentados por sinal, vi várias vezes donos de lojas dando comida (inclusive ração) para eles.
Depois de uma meia hora com o 2236 no meu colo o cachorro que brincava com a família se aproxima, abanando o rabo. Meu amigo fica louco e parte pra cima dele, rosnando – tive que separar a briga.
Quando me levanto para ir embora do parque, ele me segue, inclusive pela rua, a caminho do centro. Sinto que isso não vai dar certo. Entro em um mercadinho, compro a maior linguiça que encontro e, quando saio, lá está o 2236, sentado na porta à minha espera. Chamo ele de volta para o parque e entrego a guloseima, ao pé da árvore em que estávamos sentados.
O 2236, aproveitando o domingo no parque |
No caminho para o centro, passo pelo Mali Park, na verdade uma pequena praça que serve de ligação entre duas avenidas movimentadas, a Alipasina e a Marsala Tita. Encontro um banco vazio, curiosamente ocupado só por uma pilha de guardanapos limpos, e decido fazer uma pequena pausa.
Escuto os passarinhos cantando com força nas árvores ao redor e volto a aproveitar o sol, fechando os olhos e agradecendo interiormente por tudo aquilo que eu tinha vivido na Bósnia. No meio do meu devaneio, sinto uma cagada de pássaro cair sobre o meu braço esquerdo. Abro os olhos e a primeira coisa que vejo são os guardanapos, branquinhos, brilhando ao meu lado. Recolho dois deles e me limpo. É hora de voltar para casa.
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