sexta-feira, 22 de novembro de 2013

"Rum para Corkan!"

A ponte sobre o Drina
O que nos leva a viajar, ter vontade de conhecer determinado lugar? Pode ser uma foto embelezada de rede social, uma reportagem de revista de turismo, um filme, uma música, um programa de televisão ou até o relato de algum amigo que esteve lá. Para mim foi uma estória. Uma não, várias - na verdade um livro, A ponte sobre o Drina, de Ivo Andric.
Já mencionei ele aqui, em um post anterior. Apesar de ser uma obra de ficção, é provavelmente a melhor introdução que existe para a história dos Balcãs. Não pode ser considerado um romance – o escopo é muito vasto, tem uma quantidade impressionante de personagens e o período de ação coberto é longo demais (cerca de 350 anos, de meados do século XVI à Primeira Guerra Mundial). O próprio Andric o considerava uma crônica.
A grande constante no livro, porém, é a ponte do título, uma incrível estrutura de pedra com dez majestosos arcos, unindo os dois lados do Rio Drina, em Visegrad, uma pequena cidade do leste da Bósnia, perto da fronteira com a Sérvia. Se eu estava ali, em Sarajevo, o grande motivo eram aquelas páginas escritas por Andric há 70 anos, que levei comigo para reler durante a viagem – e a ponte, em última instância. Eu tinha que ver aquela ponte de perto... Bom, ninguém disse que ia ser fácil.
Para começar, como já contei no post sobre Sarajevo, não há ônibus entre a capital e Visegrad partindo da estação central – eles saem de Lukavica, a rodoviária do Cantão Sérvio, vizinho à capital, que serve a República Srpska. São ainda as cicatrizes da guerra, as unidades federativas bósnias não se entendem muito bem e ainda há bastante ressentimento no ar, tornando essa viagem um pequeno desafio logístico.
Vista do alto, quando a neblina começava a se dissipar
Aos fatos. O ônibus para Visegrad parte de Lukavica às 6h30 da manhã e chega às 9h50. A rodoviária fica a uns 15 quilômetros do centro de Sarajevo. Para voltar, o último ônibus entre a cidade à beira do Drina e a capital sai de lá às 12h45. Ou seja, era preciso reservar um táxi no dia anterior, acordar às 5h da manhã e, dando tudo certo, eu teria menos de três horas para admirar a ponte.
Durante minha estadia na Bósnia mencionei para algumas pessoas meus planos de ir até Visegrad, o que invariavelmente era recebido com um estranhamento surpreso por parte do interlocutor. Depois da terceira ou quarta vez, eu me limitava a explicar meu desejo de visitar a cidade com uma frase verdadeira e simples: “Eu tenho que ver a ponte” - isso parecia despertar certa compreensão, como se eu estivesse me referindo a um parente morto. A sensação era de que eles conseguiam vislumbrar meus motivos, mas continuavam achando que eu só podia ser louco de querer ir até lá por causa de uma ponte.
A única pessoa que teve uma reação diferente e pareceu compreender exatamente o porquê de eu querer tanto ir até Visegrad foi a dona do hotel em que eu estava, em Sarajevo. Ex-professora da universidade, Neema, uma senhora de uns sessenta e tantos anos, conhecia bem o livro de Andric. No meu retorno de Mostar, enquanto eu carregava minhas malas para o quarto, ela ligou para Lukavica, checou os horários dos ônibus e se ofereceu para reservar o táxi para mim. Concordei e na manhã seguinte, antes de o sol nascer, eu já estava a caminho do Cantão Sérvio.
A rodoviária era na verdade uma cobertura de metal com baias de estacionamento para uns três ônibus. Algumas pessoas ocupavam o interior de um café e o saguão central estava fechado. Tento me comunicar, mas ninguém se mostra disposto a me entender. Encontro uma vendinha aberta, compro um pão coberto de sal e uma água para o café da manhã e o homem atrás do balcão, mesmo sem falar inglês, se dispõe a me ajudar, batendo na porta para o guarda abrir o saguão central.
Retrato de Ivo Andric, em frente à ponte que ele imortalizou
Entro, tento comprar minha passagem, mas o máximo que consigo é pagar a taxa de embarque, recebendo um pequeno quadrado encardido de recibo. O tíquete eu paguei na porta do ônibus, ao motorista, e subi. Também à espera da viagem, três policiais da República Srpska me seguem, me medindo de cima abaixo – finjo que não é comigo. Um outro homem que aguardava para embarcar é abordado por um guarda da rodoviária, porque não tinha pagado a taxa. Ele não teve dúvida, saiu da área coberta, cruzou o portão por onde saía o ônibus, fez sinal para o motorista e subiu – fora da rodoviária ninguém podia cobrá-lo...
Foi uma longa viagem. Se tem uma coisa que se aprende rápido na Bósnia é que a distância tem pouca ou nenhuma relação com o tempo gasto para cobrir um trajeto. De Sarajevo a Visegrad são apenas 120 quilômetros, mas aí não estão previstos os desvios...
O cenário era agradável, apesar de inóspito. Passamos por Pale, com pastos verdinhos e vários pastores de ovelhas, o que tornou a estória que ouvi de Faruk no Túnel da Vida muito mais real (ver post “Um túnel, futebol e duas estórias”). Ao longo da estrada, vi alguns carneiros inteiros sendo assados diretamente no fogo, empalados, à moda sérvia. Depois veio uma parada de uns 20 minutos e troca de ônibus em Rogatica, o que ampliou o atraso – chegamos só às 10h30, 40 minutos depois do previsto.
Ela apareceu inesperadamente, depois de uma curva, envolta pela neblina... A estória da ponte sobre o Drina é tão fantástica que parece ficção. Durante o período de dominação otomana nos Balcãs, de tempos em tempos as famílias cristãs eram obrigadas a entregar um menino para servir no exército turco, o chamado Feudo de Sangue. Essas crianças eram confiscadas e levadas em procissão pelos soldados, seguidos por dias pelas mães, chorosas, na expectativa de ter uma última visão dos filhos que nunca mais voltariam a encontrar.
Kapia, no vão central da ponte
Um desses meninos, nascido na vila vizinha de Sokolovici, logo atrás das montanhas que cercam Visegrad, subiu tanto na hierarquia otomana que alcançou a posição de grão-vizir, o administrador de todo o império, abaixo apenas do Sultão. Mehmed Pasha, que cruzou o Drina de balsa, provavelmente em 1516, lembrava com clareza de sua Bósnia natal e mandou construir a ponte ali, para ser lembrado no lugar onde nasceu, além de estrategicamente conectar o território bósnio aos dominadores do oriente.
É de se imaginar que a construção de uma estrutura desse porte, não tenha sido fácil nem rápida – havia apenas outras duas dessas proporções em todo o Império Otomano. Foram seis duros anos, entre 1571 e 1577, descritos com maestria por Andric nos primeiros capítulos do livro, em que os turcos engajaram praticamente toda a população masculina não-muçulmana de Visegrad e seus arredores em trabalho forçado.
Em dado momento os camponeses sérvios se revoltaram e começaram a desfazer na calada da noite o trabalho que faziam de dia, na tentativa de forçar os turcos a desistir da ponte. Descobertos, tiveram seu líder executado em uma das cabeceiras – o comandante otomano, o cruel Abidaga, prometeu um pagamento extra ao cigano encarregado do empalamento se o homem sobrevivesse até o amanhecer do dia seguinte. Merdjan tomou todo o cuidado possível ao inserir a lança de madeira com ponta de aço, a marteladas, para não danificar nenhum órgão vital, e Radisav agonizou até o anoitecer do outro dia, suspenso no ar, como exemplo aos revoltosos.
Sofa, centro dos acontecimentos na velha Visegrad
Odiada no início, a ponte se tornou o centro da vida em Visegrad pelos séculos seguintes, impávida mesmo diante das piores enchentes que arrasavam a cidade sazonalmente. No seu vão central se realizavam as solenidades históricas, tragédias familiares se sucediam, procissões de casamento e de batismo festejavam e a rotina do dia-a-dia tomava forma. De um lado está a Kapia, uma lápide vertical de pedra com a inscrição em árabe que agradece ao grão-vizir e pede a bênção de Alá à construção, bem no meio da estrutura. Ali, nos velhos tempos, havia sempre uma barraquinha a servir café à moda turca, carregado de pó. O café era degustado do outro lado do vão central, no chamado Sofa, um banco de pedra em formato de U.
Sempre em volta da ponte, Andric desenrola a história dos Balcãs do século XVI até o início da Primeira Guerra Mundial, apresentando a cada capítulo cinco, seis, sete personagens inesquecíveis - alguns ganham vida e desaparecem em menos de dez páginas, por vezes.
Debruçado no Sofa, observando a majestade da Kapia, materializaram-se na minha frente alguns dos meus preferidos. Revi Fata Avdagina mergulhar no Drina em direção à morte, para fugir do casamento acertado pelo pai. Experimentei a ansiedade de Pop Nikola, o patriarca da Igreja Ortodoxa, ao receber o exército austríaco após o protetorado de 1878, ao lado do líder religioso muçulmano, Mula Ibrahim, e do rabi judeu, David Levi. Senti a dor pulsante da orelha de Alihodja, pregado no dia anterior ao solo da ponte pela milícia turca. Fui testemunha do encontro de Milan Glasicanin com o Diabo, em um jogo de cartas marcadas sob a luz da lua, ali mesmo na Kapia. Assisti à desgraça do streifkorp ruteno Gregor Fedun, iludido pelo encanto feminino durante o serviço de guarda. Vi-me observado por Lotte, a protetora dos judeus da Galícia, recostada em seu abrigo secreto no hotel. Escutei as intrigas políticas dos jovens nacionalistas e a revelação de Nikola Glasicanin sobre quem na verdade era Janko Sticovic, guiado pelo amor e pela inveja da conquista da professora Zorka. Por fim, acompanhei maravilhado o miserável zarolho cigano Corkan bailar pelo parapeito da ponte, de um lado a outro, completamente bêbado após mais uma noitada de insultos e gozações no Zahir In, incentivado pelos gritos inebriados de Santo Papo: “Rum para Corkan!”
Os dez arcos refletidos no Drina
Infelizmente, pelo menos em Visegrad essa convivência de culturas e religiões é passado. O cenário descrito por Andric - ele mesmo um defensor da convivência multiétnica nos Balcãs enquanto serviu como diplomata, antes mesmo da criação da Iugoslávia – não existe mais. Localizada no leste da Bósnia, a cidade faz parte da zona em que as maiores atrocidades tomaram forma durante a guerra, com os militares e paramilitares sérvios realizando a “limpeza étnica” da população muçulmana, incluindo o massacre de Srebrenica.
Atualmente, Visegrad é parte da República Srpska e uma caminhada pela cidade deixa isso bem claro. A área do antigo mercado, descrita no livro como o vivo e movimentado ponto das lojas dos comerciantes muçulmanos e judeus mais ricos, agora é uma melancólica rua ocupada por algumas vendinhas, lanchonetes e uma banca de revistas. Andric, que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura pelo conjunto de sua obra descrevendo a diversidade dos Balcãs, certamente ficaria triste em ver no que se transformou o lugar em que passou a infância e o começo da adolescência, antes de continuar os estudos em Sarajevo, Zagreb, Cracóvia, Viena e Graz.
Não posso negar que também fiquei decepcionado ao me deparar com a cidade inexpressiva, que não faz nenhuma justiça ao vivo entreposto comercial à beira do Drina descrito no livro. Mas, a caminho do ponto para pegar o ônibus de volta a Sarajevo, cruzo de novo a gloriosa ponte de Mehmed Pasha. E essa, mesmo depois de 400 anos, continua a mesma...

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