terça-feira, 29 de abril de 2014

God save the pub

O pint perfeito, no The Beehive, em Liverpool
“The perfect pub is like that wedding reception you’ll never forget because everybody – dads, babes in arms, walking-sticked grannies, the vicar, awkward teenage bridesmaids, that harmless oddball no one seems to know, the bigoted aunt charmed into enlightenment by the bride’s black, gay best friend – all get down to the place together”.*
Kate Burt


Depois de nove meses no Reino Unido, não tenho a menor dúvida do que eu vou sentir mais falta quando voltar para o Brasil: os pubs. Talvez a instituição mais tradicional da sociedade britânica – o grego Discorides escreveu sobre o costume dos ingleses de beber comunitariamente já no século I depois de Cristo – é onde eu me senti em casa. Infelizmente, não temos nada parecido. Onde mais você pode encontrar um sofá confortável, assessorado por uma discreta mesa de madeira para repousar um pint de ale, sem jamais ser incomodado por garçons insistentes? O problema é que eles estão fechando...
George Orwell, um defensor apaixonado dos pubs, teve a capacidade de enxergar o fim da privacidade e o futuro da sociedade no Grande Irmão nos vigiando o tempo todo, mas não previu algo tão catastrófico. Ele definiu com delicadeza o que é um pub perfeito em um texto publicado pelo jornal Evening Standard, em 9 de fevereiro de 1946, intitulado The Moon Under Water (A Lua Debaixo D’água) – o saudosismo está lá, mas não há sinais visíveis do risco de extinção. E, no entanto, 18 pubs fecham as portas a cada semana no Reino Unido...
A crise começou a se desenhar nos anos 70, quando as grandes cervejarias viram nos pubs o caminho para garantir pontos de venda exclusivos para suas marcas, levando à concentração de estabelecimentos em poucas mãos e uma redução na oferta de cervejas à disposição dos clientes, especialmente as ales, locais e artesanais.
Elegância e tranquilidade do The Lamb, em Londres
Sentindo o empobrecimento de sabor nas próprias papilas, quatro senhores do noroeste da Inglaterra resolveram se mexer. Juntos, Michael Hardman, Graham Lees, Jim Makin e Bill Mellor criam a CAMRA (Campaign for Real Ales), em 1971, um movimento em defesa das cervejas artesanais, pubs de comunidade e direitos do consumidor. De lá para cá a “Campanha pelas Verdadeiras Ales” só cresceu e hoje tem cerca de 160 mil membros. Mas uma aliança exótica deles com a primeira-ministra Margareth Thatcher, no final dos anos 80, ajudaria a criar um novo monstro.
Com o intuito de defender as pequenas cervejarias que estavam sendo despejadas para fora do mercado pelas grandes, via controle dos pubs, a Monopolies and Mergers Commission (Comissão de Monopólios e Fusões) criou uma lei proibindo que um fabricante de cerveja tivesse mais de 2.000 pubs. O tiro saiu pela culatra. Para driblar a regulação, as grandes criaram companhias separadas para administrar seus pubs, livrando-se da limitação, uma vez que essas novas empresas não tinham envolvimento direto com a produção.
Assim surgiram as Pub Companies, ou Pubcos, como são conhecidas por aqui, que atualmente se transformaram em negócios gigantescos, inclusive com capital aberto na bolsa de valores. Nos últimos 15 anos eles colocaram em movimento um processo de “McDonaldização” dos próprios pubs, criando redes de bares com as mesmas características: decoração remotamente vitoriana, menus semelhantes, flagrante ausência de personalidade e uma oferta de cervejas que não vai muito além das grandes marcas internacionais de lagers (Carlsberg, Heineken, Budweiser etc), deixando de lado as ales artesanais e locais.
O democrático The Queens Arms, em Bakewell
Se isso não bastasse, as Pubcos colocaram em prática um mecanismo para aumentar sua rentabilidade, conhecido como The Tie (O Nó), através do qual oferecem aos landlords (administradores dos pubs) que os arrendam um desconto no aluguel, se adquirirem a cerveja da companhia. O acordo funcionou bem durante os anos dourados da bonança financeira europeia, mas a partir da crise de 2008 começou a entrar água no chopp. Obrigados por contrato a comprar a bebida a preços inflacionados, os landlords não conseguiam mais fechar as contas – segundo a CAMRA, os amarrados pelo nó chegam a pagar 110 pounds (R$ 403) por barril de cerveja, em comparação aos 70 pounds (R$ 257) desembolsados pelos pubs independentes.
O resultado é simples: eles estão fechando. Atualmente a taxa de desaparecimento de pubs no Reino Unido está em 18 por semana, segundo a CAMRA, mas já foi pior - em 2010 era de 25 por semana. Ainda assim, a decadência é visível... Em uma caminhada pelo centro de qualquer cidade inglesa é improvável que você não encontre pelo menos um pub abandonado, o triste cenário de madeira compensada pregada nas janelas para evitar invasores, ainda identificado por algum orgulhoso brasão característico.
Além do aperto das Pubcos, os landlords vêm sendo obrigados a enfrentar um duro concorrente: os supermercados. Em expansão e competindo duramente entre si no Reino Unido, as grandes redes de varejo enxergaram na cerveja uma forma de atrair clientes. Para isso, reduzem os preços com vontade, inclusive investindo em marcas próprias, ainda mais baratas. No cenário de crise do qual o país ainda não saiu completamente, o preço se mostrou um fator essencial.
Um exemplo: em supermercados como Asda ou Sainsbury’s é possível encontrar as marcas próprias de lager a 0,92 pound (R$ 3,40) – e não uma, mas quatro latas de 440 mililitros. Em comparação, nos pubs de Derby (cidade com um dos custos de vida mais baixos no Reino Unido) o pint (568 mililitros) da lager mais barata não sai por menos de 2,30 pounds (R$ 8,50).
Concorrido balcão do The Alexandra Hotel em dia de jogo, em Derby
Se não bastasse, em 1º de julho de 2007 outra lei surge para consolidar a tempestade perfeita contra os pubs: a proibição de fumar em locais fechados no Reino Unido. Pode parecer menos relevante, mas pense em ter que sair para acender um cigarro lá fora, no frio e geralmente chuvoso clima britânico...
Com tudo isso, percebi logo que não havia tempo a perder. As estimativas da CAMRA dão conta de que existem ainda 50 mil pubs no Reino Unido, e eu só tinha um ano. Todo homem precisa de metas na vida, e a minha, estabelecida poucos dias depois de chegar a Derby, era visitar 100 pubs durante minha estadia nas terras da Rainha.
Para isso estabeleci algumas regras, a começar o que seria “visitar” – é preciso entrar e consumir um pint de cerveja para que o pub seja acrescentado à conta. E nada de half pint (meio pint), a regra é clara: 568 mililitros. Como não sou afeito a radicalismos, resolvi incluir a Irlanda no campo de pesquisa, afinal nesse ponto as culturas etílicas das duas ilhas vizinhas são bem próximas.
Tenho orgulho de dizer que o experimento social (pelo menos eu estou convencido de que disso se trata) de mergulhar na cultura etílica britânica foi duramente perseguido - e gloriosamente cumprido. Do landlord com a tatuagem igual à do Mike Tyson em volta do olho no Rams Barrr aos suntuosos mictórios de mármore do Philharmonic, da companhia dos torcedores do Derby County no The Alexandra Hotel ao pobre papagaio mal humorado na escuridão do The Loudon Arms, do melhor da música folk irlandesa no The Cobblestone ao silêncio do claustro da antiga abadia de monges agostinianos no The Abbey, dos hostis imigrantes poloneses do Babajaga à garçonete de meia idade que me chama de darling (querido) no The Babington Arms, da lager aguada e de gosto metálico do Melbourne Bar às inacreditáveis 16 opções de Real Ales do The Brunswick Inn, eu andei por aí.
Sortida oferta de ales irlandesas no The John Hewitt, em Belfast
Depois de percorrer pubs em 16 cidades, superei a meta com louvor, computando 124 estabelecimentos em minha conta. Apesar do objetivo atingido, ainda tenho dois meses pela frente, e penso que devo me governar pelo estrito espírito britânico de fair play, me mantendo na busca até o fim. Em benefício dos meus leitores, em breve publico uma lista dos meus preferidos.

*“O pub perfeito é como aquela festa de casamento que você nunca vai esquecer, porque todo mundo – pais, bebês de colo, vovós de bengala, o vigário, as desajeitadas damas de honra adolescentes, aquele estranho inofensivo que ninguém parece conhecer, a tia de bigode perdidamente seduzida pelo melhor amigo da noiva, negro e gay – todos eles vão ao lugar juntos”.
Kate Burt



Para os interessados, o fantástico texto de Orwell sobre o pub perfeito está no link abaixo, em inglês:
http://theorwellprize.co.uk/george-orwell/by-orwell/essays-and-other-works/the-moon-under-water

Também abaixo os links de dois vídeos curtos que fiz em minhas andanças e carreguei no YouTube. O primeiro, apesar de feito em um pub não muito glorioso de Derby (Rams Barrr), retrata bem o quão democrático e relaxado pode ser seu ambiente. Onde mais se pode ver alguém defender com veemência que o Celtic é o “melhor time do mundo”?
http://youtu.be/KQmHDdV8H-s

O segundo, em Dublin (o St. John Gogarty), mostra como pubs também podem ser festivos.
http://youtu.be/qEdTDLWFhaU

domingo, 20 de abril de 2014

Belfast Murals Experience

Herança viva e em cores de todo o sofrimento durante o sangrento conflito entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte, os murais de Belfast são uma aula de história ao ar livre. Os motivos das pinturas vão da mitologia celta à luta pela independência irlandesa, de homenagens às vítimas dos confrontos – pessoas randomicamente assassinadas em atentados à bomba ou os que morreram voluntariamente em greves de fome de protesto -, passando pela miríade de grupos paramilitares surgidos e extintos durante as três décadas das Troubles.
Enquanto o imaginário republicano se distribui ao longo da Falls Road e adjacências, no maior gueto católico da zona oeste da cidade, as visões loialistas de sua ligação indissolúvel com o Reino Unido colorem a região da Shankill Road, poucos quarteirões ao norte.
Para facilitar o entendimento, os murais abaixo foram divididos entre Republicanos e Loialistas e estão agrupados por afinidade dos assuntos retratados. 

MURAIS REPUBLICANOS

Easter Rising 1916
Homenagem ao Levante da Páscoa (Easter Rising) de 1916, em Dublin, que apesar de derrotado pelos britânicos mudou radicalmente a opinião pública sobre os republicanos e abriu caminho para a independência, em 1922. No desenho, um voluntário empunhando um fuzil é retratado em frente ao prédio sede dos Correios, na capital da Irlanda. Os escudos são das quatro províncias irlandesas: Ulster, Munster, Leinster e Connacht. No meio do mural, o lírio branco simboliza o sacrifício dos que morreram lutando pelo estabelecimento da república.
Onde: Beechmount Avenue – Área da Falls Road 

Condessa Markievicz
Uma das líderes do Levante da Páscoa de 1916, foi sentenciada à morte pelos britânicos após a derrota da rebelião, junto com outros 15 comandantes do movimento. Temendo uma deterioração ainda maior da própria imagem na Irlanda ao executar uma mulher, o governo do Reino Unido comutou a pena dela, em 1918 – os demais não tiveram a mesma sorte e foram fuzilados. Mais tarde a Condessa conquistaria nas urnas uma cadeira no parlamento britânico, tornando-se a primeira mulher a ser eleita para Westminster – seguindo a política republicana, porém, ela nunca ocupou a vaga. Seu nome soa como algo da Europa Oriental, mas ela era mesmo irlandesa – o sobrenome vem do marido, um conde polonês.
Onde: Beechmount Avenue – Área da Falls Road 

Easter Lily
“Honre os mortos da Irlanda. Use um lírio da Páscoa”. Mais um mural com referência ao lírio branco, que simboliza os mortos na luta pela independência e pela República da Irlanda.
Onde: Beechmount Avenue – Área da Falls Road 

Collusion Wall
Não é bem um mural, mas uma composição com a foto, nome, data e culpado pela morte (na visão dos republicanos, claro) de vítimas das Troubles na Irlanda do Norte.
Onde: Beechmount Avenue – Área da Falls Road 

West Belfast Taxi Association
Homenagem aos chamados Black Taxis (Taxis Negros), que atualmente levam turistas em tours pelos murais de Belfast. Durante as Troubles, nos anos 70, os serviços de ônibus foram suspensos nas áreas católicas, em razão dos conflitos. Sem transporte público, a solução veio da própria comunidade: viajaram à Inglaterra e adquiriram veículos velhos, estabelecendo um sistema próprio. O mural também lembra os oito taxistas assassinados em serviço por loialistas, entre 1975 e 1992.
Onde: Beechmount Avenue – Área da Falls Road 

Ballymurphy Massacre
Em agosto de 1971, em meio ao processo de busca por armas e prisão de envolvidos com o IRA (Exército Republicano Irlandês) na área de Ballymurphy (área católica na zona oeste de Belfast), paraquedistas do Exército Britânico entram em conflito com civis e matam 11 pessoas, incluindo um padre, enquanto dava a extrema unção a um moribundo. Nenhum militar foi punido pelo incidente até hoje.
Onde: Beechmount Avenue – Área da Falls Road 

Pat Finucane
“... se você não defender advogados dos direitos humanos quem irá defender os direitos humanos?” Pat Finucane foi um ativista assassinado em sua casa, em fevereiro de 1989, no norte de Belfast, por membros da UDA (Ulster Defence Association), o maior grupo paramilitar loialista. Investigações posteriores mostraram que as forças de segurança britânicas mantinham agentes operando dentro da UDA e os republicanos acusam o Estado do Reino Unido como mandante da morte de Finucane. A frase inicial é de Rosemary Nelson, uma ativista de direitos humanos que também foi assassinada por loialistas, em 1999.
Onde: Beechmount Drive – Área da Falls Road 

Plastic Bullets
Desde sua introdução nos confrontos entre as forças de segurança e manifestantes durante as Troubles, em 1971, balas de plástico e de borracha causaram a morte de 17 pessoas na Irlanda do Norte, fato lembrado nesse mural, com os retratos das vítimas, nome e idade – a mais jovem tinha dez anos.
Onde: Beechmount Drive – Área da Falls Road 

Blanket Men
A figura de barba loira no centro do mural é Kieran Nugent, o primeiro dos chamados Blanket Men (algo como “Homens da Manta”). Ao dar entrada na prisão de Long Kesh, em Belfast, Nugent, um membro do IRA condenado a três anos de prisão por ter roubado uma van, nega-se a usar o uniforme do presídio, declarando-se um preso político e exigindo manter as próprias roupas. Colocado em uma cela sem roupa nenhuma, é obrigado a se cobrir com uma manta. Outros presos do IRA imediatamente se juntam ao protesto (leia mais no post “Troubles”). Abaixo da imagem de Nugent está transcrita uma frase dele: “A única forma de eles colocarem um uniforme de prisioneiro em mim é se eles o pregarem em minhas costas”.
Também aparece no mural Brendam Hughes, ou The Dark (O Negro), como era conhecido, um líder do IRA que escapou cinematograficamente de Long Kesh em dezembro de 1973, enrolado em um colchão colocado na caçamba de um caminhão. Ele está representado em duas imagens – antes (de bigode) e depois da greve de fome de 1980, embrião do grande protesto do ano seguinte.
À esquerda há ainda uma “lembrança” à primeira-ministra britânica Margareth Thatcher, em um cartaz de “Procurada” por “assassinato e tortura de prisioneiros irlandeses”.
Onde: Beechmount Drive – Área da Falls Road 

Bobby Sands
Comandante em chefe dos prisioneiros republicanos em Long Kesh, Bobby Sands foi o líder da greve de fome de 1981 – e o primeiro dos dez homens a morrer de inanição dentro da prisão, depois de 66 dias recusando a comida colocada todos os dias nos pés de sua cama. Ele tinha 28 anos de idade. Enquanto negava-se a se alimentar, Sands foi apresentado pelo IRA como candidato ao parlamento britânico – e elegeu-se com 30 mil votos, mais do que a primeira-ministra Margareth Thatcher havia recebido no próprio reduto eleitoral.
Ao lado da sua imagem são listadas duas de suas frases mais famosas: “Todos, republicanos ou não, têm seu papel particular para representar” e “... nossa vingança será a risada de nossas crianças”. Sands é retratado como “poeta, gaeilgeoir (falante de gaélico, uma das línguas oficiais da Irlanda), revolucionário e voluntário do IRA”. Esse talvez seja o mural mais fotografado de Belfast.
Onde: Sevastopol Street – Área da Falls Road 

The Hunger Strikers
Esse mural originalmente apareceu no Harlem, em Nova York, e depois foi transferido para Belfast. Sob as imagens dos dez presos que morreram durante os 217 dias da greve de fome de 1981 em Long Kesh e da palavra Saoirse (Liberdade, em gaélico), aparece um poema de Bobby Sands, o líder do movimento: “Todas as coisas devem passar como uma só, para que a esperança nunca morra. Não há altura ou vontade sangrenta que um homem livre não possa desafiar. Não há fonte de força estrangeira capaz de dobrar um homem que sabe que o seu livre arbítrio nada pode matar. E disso nasce a liberdade”.
Em volta do poema, símbolos celtas se alternam a imagens de outros ativistas mundiais, como Nelson Mandela, Martin Luther King, Gandhi e alguns republicanos irlandeses históricos.
Onde: Falls Road

Frank Hughes
Pintado no aniversário de 30 anos da greve de fome de 1981, em 2011, o mural homenageia o segundo prisioneiro a morrer durante o movimento, Frank Hugues, retratado na imagem maior, rodeado por outros republicanos ilustres. Mais famoso pistoleiro do IRA e lendário pelas situações de risco das quais escapou ileso, foi capturado em um tiroteio com as forças de segurança britânicas em 1978. Acusado de matar 30 soldados e policiais britânicos (embora seus companheiros reconhecessem “apenas” 12), foi recolhido a Long Kesh, onde morreu após 59 dias recusando comida, aos 25 anos de idade.
A frase (“Não são os que podem impor mais, mas os que suportam sofrer mais que irão prevalecer”) não é de Hugues, embora fosse uma de suas favoritas. O autor é Terence McSwiney, um republicano irlandês que morreu em greve de fome contra a dominação britânica em 1920, em uma prisão inglesa.
Onde: Northumberland Street – Área da Falls Road

Long Kesh 1974
Esse mural marca um dos raros episódios em que republicanos e loialistas se uniram contra os britânicos: a noite de 15 de outubro de 1974. Revoltados com os abusos dos guardas e a política de detenção sem julgamento, 800 internos colocaram fogo em suas celas, queimando os chamados compounds, área em que ficavam as celas. A ação foi toda comandada e realizada pelos republicanos, mas um acordo com os loialistas garantiu que as celas deles fossem usadas como um centro de primeiros socorros dos presos no combate com as forças de segurança. Cerca de 180 prisioneiros e guardas foram atendidos nos hospitais de Belfast naquela noite.
Onde: Falls Road

Falls Memorial Garden
Um dos jardins que funcionam como memoriais em Belfast, esse é centrado em um mapa da área da Falls Road, rodeado por 14 retratos de ativistas do IRA e moradores da região mortos durante as Troubles. Abaixo de cada rosto estão inscritos o nome, idade, incidente e a rua em que morreram. Sobre o mapa, dois fuzis e um símbolo com a cabeça de um cachorro.
Onde: Falls Road

The Markets
Localizado logo ao sul do Centro de Belfast, esse gueto católico tem esse nome por ficar na região onde se estabeleciam os antigos mercados na cidade. No mural há sete rostos de ativistas do IRA provenientes da área mortos em ação. No centro, o desenho de três membros da chamada IRA Active Service Unit (Unidade de Serviço Ativo do IRA), um deles mirando um lança-mísseis russo RPG7.
Onde: Friendly Way – The Markets

McGurk’s Bar
Bem debaixo do Westlink (uma autoestrada), o mural recria um pub que funcionava nesse exato local até o dia 4 de dezembro de 1971, quando foi pelos ares em um atentado à bomba da UVF (Ulster Volunteer Force), um grupo paramilitar loialista. Dentro do bar morreram 15 pessoas, todas católicas, inclundo o proprietário (retratado na pintura como se estivesse à porta do estabelecimento), sua mulher e filha – outras 17 ficaram feridas. Até hoje ninguém respondeu pelo crime.
Onde: Esquina da North Queen Street com Great George Street – Centro

Grande Fome
O mural lembra a Grande Fome que se abateu sobre a Irlanda entre 1845 e 1852, quando um fungo ataca sucessivas safras de batata, da qual um terço da população dependia para sobreviver. Os cálculos mais recentes dão conta que 1 milhão de pessoas morreram de fome e outro milhão imigrou, dando origem à grande diáspora que espalhou irlandeses pelo mundo e reduziu a população da ilha em um quarto. A Irlanda é o único país europeu que tem menos gente do que no século XIX, em torno de 4 milhões - eram 8 milhões em 1840, antes da fome. O desenho mostra um veleiro deixando a ilha e na trilha dele a fome, representada por um casal sustentando uma menina morta, sob o olhar dos irmãos.
Onde: Crocus Street – Área da Falls Road

MURAIS LOIALISTAS

Quis Separabit
O mural mostra o brasão da Irlanda do Norte, criado em 1924 após a Partição de 1922, que manteve os seis condados do Norte dentro do Reino Unido. Embora tenha sido abolido em 1973, após o governo britânico instituir o governo direto da província, ainda é uma imagem importante para os loialistas, por representar a ligação da região a Westminster. De um lado o leão britânico e de outro o alce irlandês suportam o escudo do Ulster, com a mão vermelha que é seu maior símbolo. Abaixo do brasão, o moto que é quase um desafio loialista, em latim: Quis Separabit (Quem nos Separará).
Onde: Shankill Parade - Área da Shankill Road


Red Hand of Ulster
Representação do mito que explica a origem da Mão Vermelha do Ulster, símbolo maior da província, usado tanto pelos republicanos quanto pelos loialistas. Reza a lenda que dois chefes de clã celtas desejavam a área e decidiram definir a posse através de uma corrida de barcos: quem atingisse terra seca primeiro teria direito à região. Um dos dois, ao perceber que iria perder a regata, decepa a própria mão e a atira para a margem, chegando à frente do próprio veleiro - e do rival -, garantindo para si os novos domínios.
Onde: Shankill Parade - Área da Shankill Road

King William III
Outro grande símbolo para os loialistas, William of Orange (ou William III) foi o rei protestante que derrotou o católico James II em 1690, na Batalha do Boyne, em Drogheda, na costa leste da Irlanda. James tinha sido deposto do trono inglês por William em 1688 e tentava reconquistar a posição com ajuda dos irlandeses católicos e franceses, combatendo tropas protestantes inglesas, holandesas e do Ulster.
A vitória de William é vista como chave para a manutenção do domínio protestante no norte da Irlanda e até hoje, no dia da batalha (12 de julho), uma parada ganha as ruas de Belfast. Os participantes desfilam trajando laranja e carregando bandeiras do Reino Unido para relembrar a data, uma das maiores razões atuais de desentendimento com os católicos, que enxergam no ato uma provocação explícita, especialmente quando passa por seus bairros.
Onde: Shankill Parade - Área da Shankill Road

CuChulain
Talvez o mais surreal de todos os murais de Belfast, em uma competição acirrada com a Mão Vermelha do Ulster... É o retrato de Setanta, um herói da mitologia celta que ganhou fama ao matar um cão de guarda muito feroz de um chefe de clã, quando ganhou o novo nome, CuChulain. Sua imagem é usada tanto por republicanos como por loialistas – aparece na fachada da sede dos Correios de Dublin, por exemplo, para homenagear o sacrifício dos que morreram no Levante da Páscoa de 1916.
Nesse mural, o herói aparece empunhando a espada como defensor do Ulster, sob a bandeira da província. O surrealismo se completa com o papiro ao lado do guerreiro, um texto em apoio à identidade dos protestantes na Irlanda do Norte, escrito por um líder da Associação Quechua de Igrejas Evangélicas, do Peru.
Onde: Shankill Parade - Área da Shankill Road

69 Gold Rush
O mural relembra um episódio em 1969, quando uma área da Christopher Street estava sendo reurbanizada. No processo de demolição de um casarão vitoriano, algumas moedas de ouro voaram pelos ares. A notícia se espalhou rápido e em minutos havia centenas de crianças da vizinhança cavando no entulho, em busca do tesouro, no que ficou conhecida como a Corrida do Ouro de 69.
Onde: Hopewell Crescent - Área da Shankill Road

“We will not have Home Rule”
Esse mural foi estabelecido para marcar os 100 anos da Ulster Covenant e homenagear Edward Carlson, também conhecido como Lord Carlson, o principal líder histórico loialista. Político unionista, ele organizou um abaixo-assinado com 400 mil assinaturas em 1912, quando toda a Irlanda ainda fazia parte do Império Britânico, contra o chamado Home Rule em discussão na Inglaterra, que concederia o autogoverno aos irlandeses. Os signatários da Ulster Covenant se comprometiam a fazer uso de “quaisquer meios necessários” para resistir à independência irlandesa e manter o Norte protestante conectado ao Reino Unido.
Em seguida à petição, Lord Carlson cria a UVF (Ulster Volunteer Force), com 100 mil voluntários armados, um exército particular e o primeiro grupo paramilitar loialista, criando pressão suficiente para que os britânicos desistissem de ceder o autogoverno aos irlandeses, temendo uma guerra civil. O movimento acabou levando à Partição, que separou os seis condados protestantes da Irlanda do Norte, em 1922, mantendo-os sob a proteção da coroa. A frase de Carson que ficou famosa e está na base do mural é simples: “Não teremos autogoverno”.
Onde: Shankill Road

Signing the Covenant
Outro mural em homenagem a Lord Carlson, que retrata o político assinando a Ulster Covenant, sobre a Union Jack, a bandeira do Reino Unido. Em cima do desenho, mais uma frase de efeito do loialista: “... nossa adorada posição de cidadania igualitária no Reino Unido”.
Onde: Moskow Street – Área da Shankill Road

Ulster to England
Do lado direito aparecem várias fotos da rainha Elizabeth II, demonstrando a devoção da Irlanda do Norte à soberana britânica, enquanto do lado esquerdo é transcrito um poema em inglês arcaico, uma declaração de amor do Ulster à Inglaterra.
Em uma tradução livre, seria algo assim: “Você pode encontrar outra filha com uma face mais loira do que a minha, com uma voz mais alegre e doce, e um olhar mais delicado do que o meu; mas não poderá encontrar outra que irá amá-la metade do que eu a amo”. A imagem com o poema é a reprodução de um cartão postal de 1912, que circulava durante as discussões sobre o autogoverno para a Irlanda e a busca de assinaturas para a Ulster Covenant.
Onde: Crimea Street – Área da Shankill Road

Summer of 69
O mural é a lembrança do início das Troubles na Irlanda do Norte, no verão de 1969, quando uma passeata em Derry explodiu na onda de violência e confrontos de rua que se espalharam pela província durante três dias e três noites. Em Belfast, católicos e protestantes se enfrentaram nas ruas, em uma verdadeira guerra campal. Ao final, 1.500 pessoas do lado católico tinham perdido suas casas, queimadas, contra 300 do lado protestante. O mural, em uma área loialista, mostra dois garotos em frente a ruínas das próprias casas, com uma Union Jack (bandeira do Reino Unido) ao fundo - um deles carrega um tambor com as três cores britânicas (azul, vermelho e branco).
Onde: Hopewell Crescent – Área da Shankill Road

Bayardo
Esse memorial marca o local em que havia um pub, o Bayardo, detonado em um atentado à bomba do IRA no dia 13 de agosto de 1975, matando cinco pessoas e ferindo outras 60. Cercado pelas bandeiras da Escócia, Irlanda do Norte e Reino Unido, um mural de fotos apresenta os rostos dos cinco mortos, além de fotografias do que era o pub e do que restou após a explosão. Há duas mensagens escritas: “Não esqueçamos” e “5 protestantes inocentes assassinados”. Difícil não relacionar o Bayardo com outro mural, do lado católico, para marcar o local de um atentado semelhante em 1971, no McGurck’s (veja foto acima, em Murais Republicanos).
Onde: Shankill Road

We Will Remember Them
Mural em homenagem à UVF (Ulster Volunteer Force), o primeiro grupo paramilitar loialista, criado em 1913 por Lord Carlson. No centro, o símbolo da unidade, com a Mão Vermelha do Ulster no meio e a inscrição “Por Deus e pelo Ulster”. Na parte inferior, apoiados sobre as respectivas armas de cada período, a boina dos primeiros voluntários, o capacete das forças da Irlanda do Norte que lutaram pelos britânicos na Primeira Guerra Mundial e os gorros paramilitares usados durante as Troubles. Na seção superior, fotos de Lord Carlson passando suas tropas em revista, em 1913, e os paramilitares herdeiros do movimento em ação durante os anos 70, 80 e 90. Embaixo de tudo a frase: “Nós nos lembraremos deles”.
Onde: C. Coy Street – Área da Shankill Road

Ulster Volunteer Force 1913
Mais um mural em homenagem à UVF (Ulster Volunteer Force), com o símbolo da unidade paramilitar e o desenho dos primeiros voluntários da unidade criada por Lord Carlson, em 1913. Abaixo da imagem, a frase: “Voluntários de Belfast Oeste Garotos da Shankill”.
Onde: C. Coy Street – Área da Shankill Road

Ulster Volunteer Force
Do lado esquerdo, o brasão da moderna UVF (Ulster Volunteer Force), o grupo paramilitar recriado em 1966. Do lado direito, sobre um fundo azul, quatro paramilitares da unidade trajando o tradicional uniforme negro e capuzes, com os característicos cintos brancos, empunham fuzis ao redor do símbolo da UVF e de cinco rostos de vítimas protestantes do confronto com o IRA.
Onde: Área da Shankill Road

UDA
Criada em Belfast, em 1971, a UDA (Ulster Defence Association) resultou da união de unidades paramilitares menores que surgiram do lado loialista após o início das Troubles, em 1969. A maioria das suas ações – que resultaram em estimadas 400 mortes do lado católico – eram realizadas pelos UFF (Ulster Freedon Fighters), representados no paramilitar de capuz e vestimenta camuflada no centro do mural, empunhando um fuzil. A UFF foi colocada na ilegalidade pelos britânicos em 1973 e a UDA em 1992.
O desenho sugere uma conexão entre os militantes mais antigos do Ulster (Ulster Defence Union, de 1893) e os paramilitares modernos. O mural tem um efeito ótico que faz com que o observador se veja sob a mira da arma apontada no centro pelo homem do capuz, não importa de onde se olhe.
Onde: Hopewell Crescent – Área da Shankill Road

Red Hand Commando
Homenagem a Stevie McCrea, membro de um grupo paramilitar loialista menor, o Red Hand Commando, associado à UVF (Ulster Volunteer Force). Dois fuzileiros da unidade, com as armas baixas, margeiam o símbolo da unidade. Ao lado, um poema em memória a McCrea, morto em 1989 em conflito com o republicano IPLO (Irish People’s Liberation Organization), por sua vez uma divisão do INLA (Irish National Liberation Army).
Onde: Hopewell Crescent – Área da Shankill Road

Topgun McKeag
No centro do mural está Stevie Topgun McKeag, comandante militar dos UFF (Ulster Freedon Fighters) na área da Shankill Road, ligados à UDA (Ulster Defence Association). Morto em 2000, ele ganhou o apelido em razão de uma tradição entre os paramilitares loialistas, de conceder o título de Topgun (algo como “Melhor Pistoleiro”), em uma cerimônia anual, ao membro recordista de mortes no período – McKeag tinha a reputação de levar o prêmio quase todo ano. Segundo os católicos, ele teria matado 12 pessoas, entre homens e mulheres.
Onde: Hopewell Crescent – Área da Shankill Road

Jackie Coulter
Em agosto de 2000 as tensões aumentam entre os próprios loialistas, com ataques e mortes de lado a lado, entre a UDA (Ulster Defence Association) e a UVF (Ulster Volunteer Force). Jackie Coulter, membro da UDA, foi o primeiro a ser morto nos conflitos, logo ali ao lado, na Crumlin Road. Durante quatro meses, sete pessoas foram assassinadas e 200 famílias tiveram que deixar suas casas, para fugir de intimidações.
Onde: Hopewell Crescent – Área da Shankill Road

Freedom 2000
O mural foi pintado para marcar a data de libertação de um grupo de presos loialistas, em 2000. O mais interessante, porém, é o retrato da evolução da arquitetura das prisões na Irlanda do Norte ao longo do tempo. Na parte superior, à esquerda, aparece a antiga Crumlin Road Prison (ou The Crum para os íntimos), hoje transformada em um museu. Logo à direita, no desenho menor, as primeiras tendas que abrigaram os prisioneiros políticos na Long Kesh Prison, e abaixo os chamados H Blocks, também em Long Kesh, cenário da greve de fome dos prisioneiros republicanos em 1981.
Onde: Hopewell Crescent – Área da Shankill Road

William McCullough
Mais uma homenagem a um paramilitar loialista morto pelos republicanos, nesse caso Lieutenant Colonel (Tenente Coronel) William McCullough, membro da UDA (Ulster Defence Association), assassinado por integrantes do INLA (Irish National Liberation Army), em 1981. Um filho de McCullough, Alan, teria sorte semelhante, fuzilado por membros da própria UDA, da qual fazia parte, em 1999.
Onde:  Hopewell Crescent – Área da Shankill Road

Ulster Blood
Mural que lembra James Buchanan, o décimo quinto presidente norte-americano (entre 1857 e 1861), cujos pais imigraram para os Estados Unidos de Derry, na Irlanda do Norte. Abaixo da águia americana e dos dizeres “De pioneiros a presidentes”, um retrato de Buchanan sobre uma frase dele: “Meu sangue do Ulster é minha herança mais preciosa...”
Onde: Shankill Road

Crossroads
Pintura em comemoração aos “90 Anos de Resistência”, que tiveram início com a Ulster Covenant, o abaixo assinado de Lord Carlson contra o autogoverno da Irlanda, completados em 2012. Em quatro quadros são retratados os primeiros voluntários da UVF (Ulster Volunteer Force), os soldados do Ulster que combateram pelos britânicos na Primeira Guerra Mundial, os paramilitares loialistas durante as Troubles e uma encruzilhada (Crossroads).
No último quadro, à esquerda, há um homem encapuzado empunhando um fuzil e duas placas com os dizeres Eire (Irlanda) e War (Guerra). À direita, os sinais apontam para United Kingdom (Reino Unido) e Peace (Paz), enquanto um homem trajando terno sustenta um livro onde se lê Good Friday Agreement, o acordo assinado em 1998 que colocou fim aos 30 anos de conflito aberto entre republicanos e loialistas.
Onde: C. Coy Street – Área da Shankill Road

terça-feira, 8 de abril de 2014

Troubles

Division Street, que separa católicos e protestantes em Belfast
“It is not those who can inflict the most, but those who can suffer the most who will conquer”*
Terence McSwiney


Quando desembarco na rodoviária de Belfast, depois de uma tranquila viagem de duas horas e meia desde Dublin, chego à conclusão de que pelo menos uma coisa une indissoluvelmente os dois lados da Irlanda: o clima. Debaixo da mesma chuva fina que cobria o Sul, vento e frio de cinco graus, me arrasto até o hotel, no sul da capital do Norte. Mas no dia seguinte, em um memorável golpe de sorte, o céu azulou e o sol saiu, embora a temperatura não tenha mudado muito...
Salto cedo da cama e encaro o Ulster Fry – um café da manhã à base de ovos, bacon, salsicha e pão de batata, tudo frito –, consciente de que seria um longo dia de caminhada para conseguir cobrir os quilômetros do meu roteiro, em busca da herança mais visível dos conflitos na Irlanda do Norte: os Belfast Murals. Às dezenas, os enormes e coloridos murais se espalham por diferentes áreas da cidade, tanto nos bairros católicos quanto nos protestantes, com diferentes temas, é claro.
Pela proximidade de onde eu estava, decido começar pela área da Falls Road, o maior enclave católico e centro nevrálgico do movimento republicano em Belfast, onde ficava o comando do IRA (Irish Republican Army, o Exército Republicano Irlandês) e que hoje abriga a sede do Sinn Féin (o braço político do grupo). Analisando o mapa, a lógica indicava que bastava seguir rumo oeste, cruzar o Westlink (uma autoestrada) e depois seguir pela Falls Road na direção leste, até o centro. O problema é que em Belfast – e na Irlanda do Norte em si – a lógica é outra...
Atrás das casas, um alambrado de três metros para separar bairros
Logo depois de atravessar o Westlink, me deparo com uma muralha, coberta de arame farpado. Sigo margeando o muro por uns 200 metros, em busca de uma rua que dê passagem a oeste, mas só encontro um beco sem saída. Sou obrigado a voltar todo o trajeto e percorrer a autoestrada até achar uma rotatória com o acesso. Essa foi uma das formas encontradas de estabelecer a paz entre católicos e protestantes, isolando completamente os guetos na maioria das ruas, mantendo apenas algumas passagens, mais fáceis de controlar...
Finalmente encontro um caminho para a Falls Road e tenho a primeira mostra do que viria pela frente. Uma pichação grita: “Rot in hell Thatcher scum!” (Apodreça no inferno, Thatcher escória!), em uma “homenagem” à primeira-ministra Margaret Thatcher, falecida no ano passado, que chefiou o governo britânico durante os duros anos de repressão às Troubles, durante o final dos anos 70 e ao longo dos 80. Ao lado da pichação, começa o Collusion Wall, com o nome, a foto e a data de morte de dezenas de vítimas católicas do confronto.
Depois do acordo para a Partição de 1921 (que estabelece a divisão da Irlanda, mais detalhes no post “Do calabouço ao pub em 800 anos”), da Guerra Civil e da proclamação da república, em 1949, as coisas mais ou menos se acalmam no Sul. É aí que o conflito migra para o Norte... Em Belfast, enquanto a cidade crescia, os dois lados do confronto ocupavam seus guetos, os católicos na área da Falls Road (oeste da cidade), Markets (sul) e Short Strand (leste), enquanto os protestantes, em maioria na capital, se estabeleciam nas regiões da Shankill Road (noroeste), Sandy Row (sudoeste), New Lodge (norte) e East Belfast (leste).
"Apodreça no inferno, Thatcher escória!"
As duas comunidades pouco se misturavam, liam os próprios jornais, frequentavam pubs diferentes e faziam as compras em comércios divididos. Até nos esportes havia uma clara divisão, os católicos dedicados ao hurling (uma espécie de hóquei na grama, mas em um campo bem maior) e ao gaelic football (uma fusão ininteligível entre rugby e futebol), enquanto os protestantes praticavam críquete e rugby.
Mas o conflito ia além da religião. Enquanto os loialistas (protestantes, a favor da manutenção do Norte no Reino Unido) tinham autogoverno e o próprio parlamento em Stornmount, os católicos se viram em situação desfavorável. Com a maioria protestante construída no tratado que separou os seis condados a nordeste da ilha para formar a Irlanda do Norte, a minoria católica não conseguia representação política, além de sofrer discriminações na alocação de habitações públicas e emprego.
O resultado foi a radicalização, com paramilitares se armando dos dois lados. Entre os católicos o IRA renasce, coadjuvado pelo INLA (Irish National Liberation Army, o Exército Irlandês de Libertação Nacional). Entre os protestantes, a UDA (Ulster Defence Association, Associação de Defesa do Ulster) e a UVF (Ulster Volunteer Force, Força Voluntária do Ulster) também se armam.
A fagulha que causa a explosão vem do outro lado do Atlântico, com o movimento pelos Direitos Civis nos Estados Unidos. Em 1968 começa uma onda de passeatas católicas em Derry e Belfast, pedindo igualdade de direitos – e a integração da Irlanda do Norte ao Sul. No ano seguinte, em agosto, uma dessas passeatas descamba para a violência no Bogside, em Derry. Durante três dias e três noites, a cidade assiste ao confronto entre católicos e a polícia, e pela primeira vez na história usa-se gás lacrimogênio para reprimir um movimento no Reino Unido.
Collusion Wall, com a lista de católicos mortos durante as Troubles
Na terceira noite, o conflito se espalha para outras cidades do Norte e em Belfast ruas inteiras nos guetos católicos são queimadas, atacadas pelos protestantes. Os católicos, claro, retribuem a gentileza. Quando a poeira baixa, além de oito mortos, 1.500 pessoas tinham perdido suas casas no lado republicano e outras 300 na parte loialista. Mais tarde os fabricantes de leite da Irlanda do Norte dariam conta da falta de 43 mil de suas garrafas, usadas no confronto em forma de coquetéis Molotov.
Percebendo que a Irlanda balançava à beira do precipício da guerra civil, o governo britânico resolve intervir e despacha o exército para a província. As tropas inicialmente organizam o caos, desfazendo as barricadas improvisadas que católicos e protestantes tinham erguido para proteger os próprios bairros e estabelecendo barreiras oficiais – em parte mantidas até hoje. Em seguida, os soldados começam uma busca nos guetos por armas, o que aprofundou a radicalização no lado católico.
Em 1970, com o objetivo de diminuir a pressão sobre seu reduto, especialmente na área da Falls Road, o IRA começa uma campanha de atentados a bomba no centro de Belfast, na tentativa de atrair o exército para a área central e reduzir sua presença nos bairros. A resposta britânica veio no ano seguinte, com a Operation Demetrius, uma operação em larga escala para prender suspeitos de atos terroristas. No final de 1971, havia cerca de 1.500 internos na Irlanda do Norte detidos sem julgamento – a liderança do IRA, porém, atravessa o processo intacta.
Escritório central do Sinn Féin, na Falls Road
Em 1972, mais uma vez em Derry, outra passeata termina em conflito, dessa vez com um batalhão de paraquedistas do exército britânico. O saldo foi de 13 civis mortos, no que ficou conhecido como Bloody Sunday (sim, aquele mesmo da música do U2). Vendo mais uma vez a situação fugir do controle, o Reino Unido dá um passo adiante, suspende o parlamento da Irlando do Norte e estabelece o Direct Rule, assumindo diretamente o governo da província.
Nos anos seguintes, o IRA leva a campanha de atentados para o coração da Inglaterra, incluindo uma bomba detonada no centro de Birmingham em novembro de 1974, a segunda maior cidade do país, matando 21 pessoas e causando 162 feridos. Em seguida, o governo reage com uma série de atos de prevenção ao terrorismo, dando poderes draconianos ao exército para lidar com o IRA. Os procedimentos legais são suspensos na Irlanda do Norte, com os acusados passando a ser julgados por um único juiz, sem júri. As condenações, assim, tinham que ser obtidas através de confissões – que por sua vez passaram a ser obtidas usando táticas funestas de pressão física e mental.

Homenagem aos mortos na Greve de Fome de 1981
Mas voltemos à Falls Road... Tomo uma travessa da rua e chego ao Irish Republican History Museum, um pequeno museu dedicado à história republicana da Irlanda. No interior da sala única, peças de memorabilia de décadas de conflito estão em exposição, fuzis armalite usados pelos fuzileiros do IRA, granadas, uma coleção incrível de cartazes de propaganda republicana, uniformes de policiais e até uma porta da Long Kesh Prison, o principal presídio político da Irlanda do Norte nos anos 70 e 80.
Na entrada, uma senhora nos seus 60 anos me recebe com um sorriso triste. Sem me desviar dos olhos de um azul bem pálido, escuto Susi me falar sobre as Troubles. Ela conta sobre as visitas ao ex-marido, em Long Kesh, em 1976, e imagino quantos casamentos devem ter sido interrompidos pela prisão. Explico que para mim é difícil compreender um conflito por causa de fé, acostumado com a diversidade religiosa do Brasil, no que ela replica: “Vivi aqui minha vida inteira e até para mim é difícil de entender...”
A história desse presídio, em si, é um capítulo à parte nas Troubles. A partir de 1975 o governo britânico começa a abandonar gradualmente a política de prisões sem julgamento, mas ao mesmo tempo coloca em ação um plano para tentar isolar os radicais do IRA da comunidade católica, no que ficou conhecido como “normalização”, ou “criminalização”. A ideia era descolar dos condenados republicanos o rótulo de presos políticos, substituindo-o pelo de terroristas.
A situação ganha em dramaticidade no dia 16 de setembro de 1976. Ao dar entrada em Long Kesh, Kieran Nugent, um membro do IRA condenado a três anos de prisão por ter roubado uma van, é perguntado sobre seu número para receber o uniforme do presídio. A resposta dele desencadeou uma série de acontecimentos que chegariam ao ápice cinco anos depois: “You must be joking me” (Você deve estar brincando comigo). Como preso político, ele se recusa a usar o uniforme e exige manter as próprias roupas.
"Nossa vingança será a risada das nossas crianças"
Nugent foi colocado em uma cela sem roupa nenhuma, obrigado a se cobrir com um cobertor – tornando-se o primeiro dos Blanket Men (algo como “Homens da Manta”). Outros presos do IRA imediatamente se juntam ao protesto. Segundo o regulamento da prisão, sem roupas os detentos não podiam deixar as celas, perdendo o direito a visitas. A desobediência à regra de usar o uniforme também cancelava o benefício de remissão de pena por bom comportamento (que na Irlanda do Norte podia reduzir o tempo de prisão até pela metade). Em revolta, eles destroem os móveis das celas, que são retirados. Confinados a um cubículo de 2 por 2,5 metros, tudo que os Blanket Men tinham era um colchão, cobertores, uma bíblia e o companheiro de cela. Seu único contato com o mundo externo era através de uma carta censurada por mês.
A situação se arrasta e em 1978 surge um novo conflito, dessa vez por causa do banho dos presos. Os Blanket Men eram autorizados pelos guardas a sair da cela para se lavar, cobertos com uma toalha. Mas em determinado dia lhes foi recusada outra, extra, para se secar. Eles reclamam o direito à privacidade, de se manterem cobertos mesmo dentro do lavatório, o que lhes é negado - era o começo do Dirty Protest (Protesto Sujo).
Sem sair mais da cela, os presos recusam-se a tomar banho ou fazer a barba e começam a fazer suas necessidades em pinicos. Em determinado momento, surgem conflitos com os guardas sobre o esvaziamento dos potes e uma consequente troca de gentilezas, com o conteúdo deles sendo atirado de lado a lado. O resultado é que desse dia em diante os guardas se negam a recolher os pinicos e os Blanket Men começam a esfregar as fezes nas paredes e despejar a urina por baixo das portas, como forma de se desfazer deles.
O impasse sobre o direito ao status de presos políticos prossegue até 1981, quando em 1º de março os presos dão início a uma greve de fome, exigindo cinco demandas: usar as próprias roupas, livre associação, não exigência de trabalhar na prisão, direito de receber entregas e a restauração da remissão de pena aos Blanket Men. A greve começa com um só preso, Bobby Sands, logo acompanhado de mais quatro - ele morre depois de 66 dias recusando comida, que era posta diariamente aos pés do seu colchão.
O protesto dura 217 dias, em meio a uma série de intervenções tentando negociar o fim da greve de fome, da Igreja Católica à Comissão Europeia de Direitos Humanos, diante de uma inflexível Margareth Thatcher. Ao final, dez presos estavam mortos. Não imediatamente após o final da greve, mas em pouco tempo suas cinco demandas acabariam por ser quase todas atendidas.

Portão controla acesso entre as áreas da Falls Road e Shankill Road
Agradeço à Susi e deixo o museu, em direção à área protestante de Shankill Road, uma rua que corre praticamente paralela à Falls Road, uns 400 metros ao norte. Enfrento o mesmo problema para atravessar para o outro lado, até encontrar uma passagem, pela Northumberland Street. Ali encontro um portão de ferro cortando a rua, que pelo menos naquele momento estava aberto, com outro semelhante sobre a calçada, para os pedestres.
Caminho até a Shankill Road e dobro à esquerda. Em poucos metros, começo a encontrar um mural atrás do outro, agora com imagens e dizeres loialistas. Paro em frente a um que me chama especialmente a atenção: sobre um fundo bem azul, quatro paramilitares armados de fuzis, vestidos de negro e com capuzes, cercam o símbolo da UVF (Ulster Volunteer Force), logo abaixo de cinco rostos com os respectivos nomes, vítimas das Troubles.
Do outro lado da rua, um senhor de cabelos brancos e olhos bem azuis, da mesma palidez dos da Susi, acena para mim. Eu me aproximo e entabulamos conversação. No começo patino para decifrar o carregado sotaque, mas depois de alguns minutos já consigo entender uns 70% do que ele fala.
Mural onde encontrei o Martin e comecei meu tour
Ao perceber meu interesse, Martin decide me levar para um tour particular pela Shankill Road. Ofegante mas determinado, ele vai subindo a rua, enquanto tento arrastar um pouco meus passos para lhe dar tempo de respirar. Aproveito e pergunto sobre a barreira entre as áreas católica e protestante, quero saber quando os portões são fechados. “Fecham nos dias de parada e à noite”, ele responde. “Você sabe, as pessoas bebem e ficam estúpidas... Isso evita que eles atirem pedras uns nos outros, além de outras coisas também.”
Paradas e bandeiras atualmente são os principais motivos de desentendimento entre as duas partes, em especial as realizadas pelos loialistas, quando passam pelas áreas católicas. Uma tradição centenária na Irlanda do Norte, as duas principais paradas protestantes são realizadas anualmente, em julho. A de 1º de julho recorda a Batalha do Somme, que teve início no mesmo dia, em 1916, durante a Primeira Guerra Mundial, na França – com participação da 36ª Ulster Division combatendo os alemães ao lado das forças britânicas. Já no dia 12 de julho os loialistas ganham as ruas vestidos de laranja, para lembrar a Batalha do Boyne, de 1690, quando o protestante Willian of Orange derrotou o católico James II em Drogheda, na costa leste da Irlanda, assegurando o trono inglês.
Os católicos veem essas marchas como uma provocação e um símbolo odiado da dominação unionista no norte da Irlanda, embora eles também realizem suas próprias paradas. A principal delas acontece na Páscoa, em lembrança ao Easter Rising (Levante da Páscoa) de 1916, que deu impulso à independência e criação da República da Irlanda.
Martin me pergunta se vi o mural em homenagem à rainha, Elizabeth II. Digo que vi, e que ali eles parecem gostar mais dela do que na Inglaterra. “Nós amamos nossa rainha”, ele responde, com um sorriso satisfeito. E brinca: “Se você vier aqui e falar mal da rainha, é melhor ter asas nos pés...” Aproveito a deixa e pergunto se, afinal, eles se consideram ingleses. Ele abana a cabeça enfaticamente de um lado para o outro, e diz: “We are Ulster Irish – and British” (Somos irlandeses do Ulster – e britânicos).
Diamond Jubilee, com seu carneiro e o telefone público da UDA
Em frente ao memorial que lembra a Batalha do Somme, com o sol começando a se pôr, eu agradeço e meu guia se despede de mim com um caloroso aperto de mão, ele ofegando Shankill Road acima e eu rua abaixo, rumo ao centro. No caminho, com os pés pedindo descanso, paro para tomar um pint no Diamond Jubilee, famoso por ser um reduto da UDA (Ulster Defence Association), o maior grupo paramilitar protestante. O pub transpira loialismo até no nome, em homenagem ao jubileu de diamante da rainha Victoria, a primeira vez que um monarca britânico atingiu 60 anos de reinado – marca igualada em 2012 por Elizabeth II.
Apesar da animosidade contida da moça no balcão e do interior surreal - incluindo banquetas de madeira, um mosaico retrô formado pelos ladrilhos do piso e a cabeça de ovelha de gravata borboleta e chapéu – nada denuncia o passado paramilitar. No fundo do bar, porém, noto um telefone público. Em uma época em que não havia celulares, devia ser essencial para comandar as operações da UDA. Fico imaginando se – ou quantas – execuções foram ordenadas através daquela linha...
Nos últimos anos as coisas parecem mais ou menos acomodadas na Irlanda do Norte. Depois de uma série de comandos de cessar fogo definidos e desrespeitados dos dois lados durante os anos 90, no dia 10 de abril de 1998 finalmente chegou-se à paz, com o chamado Good Friday Agreement. O acordo previa um governo conjunto entre protestantes e católicos, libertação de presos, redução da presença de tropas britânicas na província, direitos civis iguais para as duas partes, desarmamento de paramilitares e até referendos para uma possível unificação da Irlanda.
Área da baixa Shankill Road, nas proximidades do Diamond Jubilee
Alguns conflitos se seguiram, mas em maio de 2005 o IRA abandona sua campanha militar de décadas e promete seu próprio desarmamento. Em março de 2007 os dois lados que eram inimigos mortais são eleitos em um governo de coalizão e em julho o exército britânico anuncia o fim da sua missão de 38 anos na Irlanda do Norte. As estimativas mais recentes dão conta de 3.600 mortos.
O que ainda resta das Troubles, como transparece na questão das passeatas, bandeiras e nos murais, é como lidar com o passado... O caminho da reconciliação, porém, hoje parece mais claro, com a visita a Londres do presidente da República da Irlanda, Michael D. Higgings, a primeira de um chefe de estado irlandês ao Reino Unido. Recebido primeiramente pela rainha Elizabeth II e seus Irish hounds - gigantescos e peludos cachorros de origem irlandesa que devem ter inspirado a concepção do dragão do filme História sem Fim - , o velhinho simpático discursou ao Parlamento em um tom amistoso, inescapável dada a integração econômica dos dois países, com um comércio bilateral girando em torno de 30 bilhões de pounds por ano (R$ 110 bilhões). A visita de hoje retribui outra, da rainha a Dublin, em 2011.
As partes mais importantes de sua fala Higgings mesmo traduziu para o gaélico, apontando a trilha para o entendimento com uma leve ressalva sobre a Irlanda do Norte: "É claro que ainda há uma estrada a ser percorrida, a estrada de uma reconciliação criativa e permanente". Ao final, foi aplaudido em pé, incluindo o primeiro-ministro britânico David Cameron e o líder trabalhista da oposição, Ed Miliband.
Por falar em murais, não sobrou muito espaço aqui para eles. Foi proposital, é que eles merecem um post próprio, que virá a seguir.

*"Não são os que podem impor mais, mas os que suportam sofrer mais que irão prevalecer”
Terence McSwiney

Bibliografia:
Para quem quiser saber mais sobre a questão irlandesa, em especial na Irlanda do Norte, recomendo um livro e um filme, ambos sobre a greve de fome de 1981:
Tem Men Dead (David Beresford). Não encontrei edição em português. É o relato inacreditável de todo o episódio, inclusive com os batidores da greve de fome e um panorama excelente de todo o conflito irlandês, escrito por um jornalista que foi correspondente do jornal inglês The Guardian na Irlanda do Norte durante as Troubles.
Hunger (Enda Walsh e Steve McQueen). O filme, sobre a mesma greve de fome, é de 2008 e foi co-escrito pelo diretor de 12 Years a Slave, que ganhou o Oscar nesse ano.