sexta-feira, 4 de abril de 2014

Do calabouço ao pub em 800 anos

Serpentes na entrada da Kilmainham Gaol
"Come away, O human child!
To the waters and the wild
With a faery, hand in hand,
For the world’s more full of weeping than you can understand”*
William Butler Yeats


Kilmainham, Dublin. Mais uma tarde chuvosa, com vento e temperatura de sete graus na capital irlandesa. O tempo cinzento só acrescenta ao ar sombrio da entrada do prédio, ainda mais considerando o que se passou daqueles muros para dentro, a principal prisão do país durante mais de 120 anos. Sobre o portão principal, as cinco serpentes dentuças e com olhar injetado de ódio se entrelaçam, eternamente atadas entre si pelas grossas correntes de ferro, imagem que deve ter sido difícil de apagar da memória dos internos.
Entro, compro meu ingresso e me dirijo ao banheiro, aproveitando os minutos antes do início da visita guiada. Lá dentro, lavando as mãos, me dou conta de fato que estou dentro de um presídio ao olhar para fora – tanto essa quanto todas as janelas no pátio em frente são isoladas por grades.
Construída pelos ingleses no oeste de Dublin, em 1796, Kilmainham Gaol é uma peça central da história da ilha. Por lá passaram os irlandeses condenados a povoar a Austrália, crianças durante a Grande Fome e os líderes de todas as cinco revoltas que precederam a independência do país, em 1922. O presídio foi fechado em 1924, logo após a Guerra Civil, e hoje é um museu.
Tudo gradeado, do banheiro ao pátio interno
Mas vamos por partes, para entender o que se passou aqui – e um pouco da Irlanda em si - é preciso um pouco de contexto... O começo da ocupação inglesa no torrão de terra vizinho começou bem lá atrás, com a invasão normanda do século XII, que deu início a 800 anos de dominação – que ainda persiste, no norte. A confusão se aprofundaria 300 anos depois, quando Henrique VIII declara-se rei da Irlanda e tenta implantar a mesma reforma protestante inglesa entre os irlandeses. Ele via a existência de terras católicas a oeste como ameaça constante de uma aliança com reis da mesma fé no continente, no que a Inglaterra se veria diante de um ataque em duas frentes ao mesmo tempo.
Nesse mesmo século XVI, uma série de campanhas militares inglesas se seguem, com o objetivo de implantar um sistema de colonização que confisca terras dos clãs católicos e de língua gaélica e as entrega a milhares de ingleses e escoceses protestantes, falantes do idioma do rei em 1750 os protestantes já dominavam 70% do solo da Irlanda. No final do século seguinte, a população católica (85% do total) é oficialmente banida do parlamento irlandês.
Terminada em 1796, Kilmainham Gaol fica pronta justamente a tempo de recolher os revoltosos de 1798, uma rebelião pela independência irlandesa baseada nos ideais das revoluções americana e francesa, que terminou rechaçada e com 20 mil mortos. Em 1801, os ingleses abolem o parlamento de vez e decretam o Ato de União, anexando a Irlanda ao Reino Unido.
No século XIX, outras três revoltas em busca da independência se seguem (1803, 1848 e 1867), mais uma vez com os líderes confinados às muralhas do grande presídio de Dublin. Durante boa parte desse século, Kilmainham vive uma situação de superlotação, mas não por causa dos presos políticos – a razão foi a Grande Fome. Entre 1845 e 1852, um fungo ataca sucessivas safras de batata na Irlanda, da qual um terço da população dependia para sobreviver. Os cálculos mais recentes dão conta que 1 milhão de pessoas morreram de fome e outro milhão imigrou, dando origem à grande diáspora que espalhou irlandeses pelo mundo e reduziu a população da ilha em um quarto. A Irlanda é o único país europeu que tem menos gente do que no século XIX, em torno de 4 milhões - eram 8 milhões em 1840, antes da fome.
Jeanie Johnstone, veleiro que levou irlandeses até a América no século XIX
Nesse período, era comum a presença de crianças na prisão – e não para acompanhar pais ou mães presos, elas mesmas eram diretamente condenadas. Em torno de 500 meninos e meninas passaram pelas celas do presídio, sentenciadas por crimes como roubar meia dúzia de anéis de corrente para trocar por comida ou quatro filões de pão. Também nesses anos Kilmainham serviu como um campo de detenção intermediário para os presos sob a sentença de Transportation (Transporte), condenados a cruzar o oceano e povoar a Austrália, fosse por ter cometido pequenos roubos ou assassinato – 4.000 deles passaram por aqui.
O evento que colocou o presídio definitivamente em um lugar de destaque na história irlandesa, porém, seria mesmo político: outra revolta pela independência, dessa vez em 1916, o chamado Easter Rising (Levante da Páscoa). A rebelião começou em uma segunda-feira, logo depois do domingo de Páscoa, com um grupo de voluntários armados tomando edifícios-chave em Dublin. Os britânicos rapidamente se organizam, enviando reforços à cidade. Uma embarcação militar desce o rio Liffey e bombardeia o Liberty Hall e o Trinity College, sede da histórica universidade, ironicamente fundada pela Rainha Elisabeth, em 1592. O levante durou apenas seis dias, com seus 15 líderes executados - 14 deles fuzilados na Kilmainham Gaol.
A visita ao presídio é fortemente baseada no movimento de 1916, até pela importância da data para a Irlanda. O tour passa pelas celas em que os líderes ficaram confinados e termina no pátio interno em que ocorreram os fuzilamentos, hoje marcado por uma cruz e uma imensa bandeira tricolor irlandesa.
No início, a maioria da população irlandesa estava contra o movimento de 1916, mas a violência britânica na repressão – incluindo o fuzilamento sumário de homens acusados de participar do levante nas ruas de Dublin – e as execuções dos líderes que se seguiram mudaram radicalmente a opinião pública. Ao final, 64 voluntários e 142 policiais ou soldados estavam mortos, além de 254 civis (fora 2.000 feridos).
Cela dos primeiros anos da Kilmainham Gaol
Ao levante se seguiram os combates de guerrilha da chamada Guerra de Independência, que duraram até 1922, encerrados pelo Tratado Anglo-Irlandês, assinado no final do ano anterior. Em dezembro de 1921, os britânicos habilmente oferecem aos rebelados um acordo de paz que incluía a Partition (Partição), a separação de seis condados ao norte, com uma maioria protestante cuidadosamente construída geograficamente na escolha das fronteiras. O resultado foi o estabelecimento da atual Irlanda do Norte e do chamado Irish Free State (Estado Livre Irlandês), formado pelos remanescentes 26 condados ao sul, que permaneceria um domínio auto-governado dentro da British Commonwealth of Nations (Comunidade Britânica de Nações). Aliás, o conceito é usado aqui pela primeira vez, para substituir o termo “Império Britânico”, odiado pelos irlandeses. Assim, em relação ao Reino Unido, a situação do novo Estado da Irlanda se equiparava à de países como o Canadá, Austrália e Nova Zelândia.
O tratado, porém, não satisfez a todos os rebelados e a Irlanda mergulhou na guerra civil, com membros do governo provisório (a favor da Partição) e os republicanos contra o acordo - que na visão deles garantia liberdade de governo, mas mantinha a Irlanda de fato dentro do Império Britânico, além da ocupação do norte da ilha. Os combatentes a favor do tratado vencem a batalha, que termina em maio de 1923. No ano seguinte, o governo irlandês fecharia definitivamente a Kilmainham Gaol.
Em 1936, expiram os últimos direitos do Reino Unido previstos no tratado de 1921 – a autoridade do trono em relações internacionais -, e em 1949 a Irlanda finalmente é declarada uma república. Mas ainda havia a questão não resolvida no norte, que voltaria à tona com força 20 anos depois, com as chamadas Troubles em Belfast e Derry. Mas isso é assunto para outro post...
East Wing, a arquitetura sob a lógica do Panótipo
Além do panorama histórico, a visita a Kilmainham é a chance de ver a própria evolução da visão britânica (e mundial) de cadeia. Nas primeiras celas da prisão, do início do século XIX, não havia separação dos presos, homens e mulheres se amontoavam no mesmo espaço - com resultados que não são difíceis de imaginar. Depois surge o conceito de separação e isolamento dos presos, com a posterior aplicação da filosofia do Panótipo, de Jeremy Bentham, integrada à própria arquitetura da prisão.
A ideia é tão simples quanto perversa: estabelecer na mente do preso a certeza de que ele está sendo vigiado todo o tempo, mesmo que não esteja. Sob essa lógica foi construída a East Wing (Ala Leste) do presídio, em 1861. Ali, de um ponto no terceiro nível da estrutura, um único guarda conseguia ter uma visão privilegiada de 270 graus de todas as celas distribuídas ao redor, ao mesmo tempo reduzindo a necessidade de pessoal da cadeia e mantendo os presos em constante alerta.
A sensação ao entrar na East Wing é curiosa, de já ter visto aquilo antes... Talvez porque o modelo serviu de base para inúmeras outras prisões espalhadas pelo mundo, e é a imagem clássica que se costuma ver em muitos filmes de cadeia. Além disso, seus corredores serviram de cenário para outros tantos roteiros - entre aquelas grades Pete Postlethwaite e Daniel Day-Lewis fizeram os papéis de pai e filho em In The Name of The Father (Em Nome do Pai).

The Cobblestone, folk irlandês de primeira
Smithfield, Dublin. Saio do hotel à procura de um pub para tomar um pint e encerrar a jornada, no começo de noite. Ando menos de cem metros e sou atraído pelo som de violinos e a gaita, os instrumentos clássicos do folk irlandês. A música transpirava de dentro da fachada vermelha, as janelas protegidas por grades de ferro sob o nome do lugar: The Cobblestone. Entro.
No interior do bar, logo na entrada, mesas e banquetas formam um círculo, com pequenas plaquetas sobre os bancos: “Reserved for musicians” (Reservado para músicos). Era dali que vinha o som, levemente atrapalhado pelo barulho de conversação entremeado de gargalhadas que vinham do fundo do estabelecimento. Encosto no balcão, garanto um pint de Guinness e me ponho a ouvir.
De tempos em tempos, pessoas de fora da roda se aproximavam e cantavam uma canção, por vezes acompanhadas dos instrumentos, outras à capela. Em um desses episódios, um homem de barba grisalha, em tornos dos 60 anos, pede licença e assume o centro do palco improvisado, declamando uma música solo, toda em gaélico. A língua, dominante antes da chegada dos ingleses, hoje é mais um símbolo. Apesar de ensinada nas escolas e idioma oficial do país, presente obrigatoriamente em qualquer placa ou sinal público que apareça em inglês, atualmente é falada mais pelos interessados na cultura irlandesa.
Velha guarda na roda de músicos do pub
Depois que ele termina, eu me aproximo para uma conversa. Algumas horas e outros tantos pints da cerveja negra depois, me vejo no centro do círculo de hospitalidade irlandesa. Fergus me apresenta a quem passa, inclusive ao filho, um ruivo que continuava a servir pints sem parar, do outro lado do balcão.
Falo a Fergus sobre meu interesse em conflitos, da minha viagem à Bósnia, e pergunto sobre a situação atual na Irlanda do Norte, uma vez que eu iria para Belfast dois dias depois. Ele se surpreende e revela que ele mesmo já esteve em Sarajevo algumas vezes, para estudar a tentativa de convivência entre as etnias que experimentaram até genocídio pouco mais de 20 anos atrás, em busca de conhecimento para aplicar no que ele chama de Six Counties (Seis Condados).
Coçando a barba, ele assume um ar de conspiração, olha para os lados e me diz ser historiador, envolvido na intermediação do conflito sectário entre católicos e protestantes no oeste de Belfast. Bem nessa hora passa um senhor de quase dois metros de altura, magro, mas com uma barriga de cerveja que chegou uns dois segundos antes dele. Sou apresentado ao proprietário do The Cobblestone, contente por ver que aprecio a boa música – e cerveja – irlandeses.
Ao saber que sou jornalista e que me interesso por conflitos, em segundos ele também me apresenta ao próprio filho, um garoto de pouco mais de vinte anos, estudante de sociologia na Trinity College. Ele se despede, meio sem jeito, como todo filho quando se vê exibido pelos pais, e o dono do pub acrescenta para mim: “You can’t leave this lads without occupation, can you?” (Você não pode deixar esses garotos sem fazer nada, não é?).
Só alguns minutos depois consigo retomar a conversa sobre Belfast com Fergus e pergunto como ele enxerga a solução do conflito na Irlanda do Norte. Ele mais uma vez se refere ao território como Six Counties e percebo o quanto a semântica é importante por aqui - e como os termos que cada um usa entrega de que lado o interlocutor se encontra. Para os católicos, não existe Irlanda do Norte, apenas os “Seis Condados”, ou no máximo o North (Norte). A República da Irlanda, ou Eire, é chamada por Fergus simplesmente como South (Sul).
The Cobblestone, visto do fundo do bar
Mais do que a forma, é o conteúdo da resposta dele que me surpreende. Fergus diz não ver mais sentido em tentar unir as duas partes da ilha em um mesmo Estado. “The best thing to do from now on is to try and find a way to leave together inside de present borders” (A melhor coisa a fazer de agora em diante é tentar viver juntos dentro das fronteiras atuais).
Parece simples? Em Belfast eu veria que nem tanto...

*“Afaste-se, oh criança humana!
Para as águas e o selvagem
Com uma fada, de mãos dadas,
Porque o mundo é mais carregado de sofrimento do que você pode entender”


Carreguei no YouTube um vídeo da música folk irlandesa no The Cobblestone:
http://youtu.be/jSpLlCYZTuE

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