Bandeira albanesa e Skanderbeg, no centro de Tirana |
A Albânia é um lugar sui generis no mundo, a começar pela língua. O albanês é o único idioma nos Balcãs pré-romano e eslavo – claro que sofreu influência dos dois, além do turco, mas tem origem em um povo indo-europeu que ocupava a região antes de todos os outros, os ilírios, que chegaram lá por volta de 200 Antes de Cristo. O próprio nome do país em albanês é diferente – Shqipëria (pronuncia-se “ship-ree-ia”) – que significa “Terra das Águias”, símbolo que está até na bandeira, uma águia de duas cabeças negra sobre o fundo vermelho. Os albaneses, na própria língua, se denominam shqiptars, “filhos da águia”.
A razão dessa denominação é poética. Reza a lenda que um jovem albanês estava caçando nas montanhas quando viu uma grande águia carregando uma cobra no bico, em direção ao ninho, onde descarrega a presa e voa novamente. Ele sobe à árvore e encontra um filhote de águia acuado pela cobra, que ainda estava viva. O albanês mata o réptil com o próprio arco e recolhe o filhote, levando-o consigo. A caminho de casa, o jovem é interceptado pela águia mãe, que exige o filho de volta. Ele se recusa, dizendo que agora o pequeno era dele, uma vez que a mãe não tinha sido capaz de protegê-lo. Em troca do filhote, a águia oferece o poder das próprias asas e a acurácia da sua visão, com o que ela diz que o albanês se tornaria invencível. Ele aceita, sendo daí em diante guiado e protegido pela ave, agora ele também transformado em um “filho da águia”...
Mural na Praça Skanderbeg, dos guerreiros ilírios aos partisans |
Sob o domínio dos romanos, os albaneses tornaram-se católicos, mas isso mudaria depois da batalha que serviu para definir conflitos nos Balcãs pelos próximos 600 anos, no Kosovo, em 1389. Uma força cristã combinada de sérvios, montenegrinos, bósnios, húngaros, romenos e albaneses é derrotada pelo exército otomano, abrindo as portas da Europa para o domínio turco. A Albânia, porém, só seria submetida ao controle do sultão quase cem anos depois.
Ao caminhar pela praça principal de Tirana, a figura única de um cavaleiro barbudo, de espada em riste, domina o cenário. É Skanderbeg, o maior herói albanês, um nobre que resistiu aos turcos por 25 anos, sitiado em seu castelo de Kruja, no interior do país. Ele venceu todas as 25 batalhas que lutou contra os otomanos - eles só conquistaram a Albânia em 1479, 26 anos depois da morte do cavaleiro (de malária, não em combate). Os albaneses se orgulham de dizer que são os verdadeiros salvadores da Cristandade, por terem mantido as forças turcas ocupadas durante tanto tempo no período em que eles estavam no auge do poder, desviando a atenção do resto da Europa.
A partir daí, à semelhança do que fizeram os bósnios, a maioria dos albaneses adota a fé muçulmana, uma forma de facilitar a própria vida durante os 500 anos de dominação turca. Assim, por exemplo, eles conseguiam fugir do chamado “tributo de sangue”, regulamento que exigia das famílias cristãs nas províncias otomanas a entrega de um filho homem para servir no exército ou burocracia administrativa do império.
Café no centro de Tirana |
Dois anos depois entraria em cena a figura que ia dominar o cenário político pelas próximas cinco décadas, Enver Hoxha, ao fundar o Partido Comunista Albanês. Nascido em uma família de classe média em Gjirokastra, no sul da Albânia, ele frequentou primeiro uma escola francesa e depois americana, em Tirana, e nos anos 30 vai a Paris, cursar a universidade.
Hoxha comanda a guerrilha durante a Segunda Guerra Mundial, primeiro contra os italianos, até 1943, depois contra os alemães, quando a Itália muda de lado. De novo, os albaneses se orgulham do seu papel na luta contra o fascismo – os 70 mil partisans comunistas detiveram 15 divisões alemãs estacionadas na região durante o conflito, ajudando a drenar forças nazistas de outras frentes. A Albânia e a Iugoslávia de Tito, aliás, foram os únicos dois países que conseguiram se libertar dos nazistas sem ajuda direta de tropas russas.
Com a vitória, ao fim da Segunda Guerra, Hoxha estabelece a República Popular da Albânia, em 1946. Tito tentou atrair os albaneses para a recém-criada Iugoslávia, para ser a sétima república da federação (ao lado de Sérvia, Croácia, Eslovênia, Bósnia, Montenegro e Macedônia), mas o novo ditador tinha outros planos. Ao mesmo tempo em que os iugoslavos se afastam de Moscou, a Albânia se aproxima da União Soviética, colocando em prática um modelo econômico nos moldes stalinistas.
Praça Skanderbeg ao entardecer |
Seguindo o mapa, chego à estação ferroviária, mas ao seu lado só encontro um terreno baldio, cheio de entulho e barro revirado. Dentro do saguão de onde deveriam partir os trens, uma família de ciganos parece instalada para ficar, ocupando o centro do recinto com uma tenda e uma pequena fogueira, onde um caldeirão fervia. Vou até o que seriam as bilheterias, mas os pontos de venda de passagens não são mais do que buracos gradeados, vedados por madeira compensada já enegrecida pelo tempo – ou pela fumaça da fogueira cigana. É, o serviço ferroviário albanês não parecia estar muito ativo...
Saio da estação e busco informação nas barraquinhas da vizinhança, em uma padaria, com dois motoristas de táxi, mas não encontro ninguém que falasse inglês. Finalmente entro em uma agência de viagens, onde uma moça solícita, em um inglês fluente, me explica que já há algum tempo os ônibus não partem mais dali. Ela também não sabia de onde, dizendo que isso “mudava constantemente”. O melhor a fazer, me disse, era entrar em um táxi e pedir para o motorista me levar aos ônibus que vão para Berat. Para garantir, ela escreve a fala em um papel, em albanês.
A casa da "dívida de sangue", à beira do Rio Lana |
Hospitalidade é uma coisa muito séria na Albânia. Tão séria que, ao lado da honra, ocupa o topo da escala de valores definidora de um código de conduta que regeu a vida albanesa durante quase 500 anos. É o chamado Kanun, uma detalhada constituição de 1.261 artigos formalizada no século XV, que estabelece princípios claros de como se portar no dia-a-dia. Trabalho, casamento, propriedade, economia, está tudo coberto em detalhes.
De acordo com o Kanun, a hospitalidade é vista como algo tão importante que o visitante torna-se uma figura quase divina. Há 38 artigos estabelecendo como ele deve ser tratado, com abundância de comida, bebida e conforto. Entre os procedimentos está a exigência de que um integrante masculino da família escolte o hóspede até o limite de sua propriedade, para garantir seu bem estar. Se o visitante for morto dentro das fronteiras da família, por exemplo, torna-se dever de um homem desse núcleo vingar sua morte, mesmo que a vítima seja só um desconhecido que pediu abrigo apenas por uma noite.
A chamada “dívida de sangue” é um dos pontos mais sombrios do Kanun. Conectados fortemente ao conceito de honra, os albaneses que seguem o código matam sem pensar muito, ao se sentirem ofendidos. E o problema é que uma morte abre um ciclo de vendetas que se estende por gerações – um integrante masculino da família do morto deve assumir a obrigação de vingar o assassinato, que, ao se cumprir, por sua vez desencadeia nova obrigação de vingança, e assim por diante. A questão só tem fim quando o último homem (no que se incluem crianças acima dos sete anos) da família ofensora estiver morto, ou quando uma reconciliação é negociada pelos membros mais velhos e respeitados da comunidade.
Mini bunker na região central de Tirana |
O projeto de revitalização do prefeito deu algum resultado, adicionando um pouco de cor à arquitetura dominada pelos blocos de apartamentos ao estilo soviético, uma série interminável de caixotes horizontais de concreto - mas não foi muito além. Vê-se em Tirana algum movimento de construção civil, com arranha-céus subindo em volta da Praça Skanderbeg, mas no geral a sensação é de que o comunismo acabou anteontem. Não foram cinco meses, mas quase 50 anos de ditadura. E em algumas conversas que tive pelos Balcãs, o ditador albanês é colocado no topo do ranking de malignidade, ao lado do romeno Nicolae Ceaucescu.
A Albânia foi durante décadas um dos países mais fechados do mundo, nos moldes do que a Coréia do Norte é hoje. Admirador de Stálin, Enver Hoxha colaborou com a União Soviética até 1960, quando Krushev exige uma base de submarinos em Vlora, no litoral sul albanês. Enxergando no secretário-geral do Partido Comunista Soviético uma mão fraca, ele nega o pedido e se afasta dos russos, voltando-se para a China.
Bunkers no caminho, até no quintal das casas |
Naqueles anos o endurecimento do regime ganha novas proporções. Uma pessoa pega ouvindo uma rádio estrangeira podia ser condenada a dez anos de trabalhos forçados nas minas de cromo. “Ir à igreja dava sete anos de cadeia”, conta Antonieta. Aproveito a deixa e pergunto se ela é cristã, para entender meus presentes de Páscoa. “Sim, sou católica. Mas aqui convivemos bem... Meu marido é muçulmano, meu pai também era, minha mãe católica”.
Durante esse período, ela relembra, música chinesa tocava “o tempo todo” no rádio. “Não temos nada a ver com eles, é do outro lado do mundo...” Ah, e usar jeans também era proibido.
Depois da invasão soviética da Tchecoslováquia em 1968, para colocar fim à Primavera de Praga, Hoxha tira a Albânia do Pacto de Varsóvia, a aliança militar dos Estados comunistas, e o país fica ainda mais isolado. Nessa época a paranoia do ditador alcança novos patamares e começam a pipocar as mais sólidas heranças malditas do regime, os mini bunkers.
Casarões otomanos de Berat, a Cidade das Mil Janelas |
Antes de dar a aprovação final à estrutura, Hoxha exigiu que o engenheiro-chefe do projeto permanecesse dentro de um dos bunkers, sob o bombardeio de um tanque de guerra. O homem saiu da experiência meio trôpego, mas intacto, e o plano de construir 60 mil unidades dos pequenos cogumelos cinzentos foi adiante.
Olhando pela janela, em qualquer estrada albanesa, eles estão por todos os lados. O problema é que não ocupam apenas pontos estratégicos, muitas vezes estão no meio de pastagens, lavouras e até quintais de casas. Projetados para resistir a tudo, são caros e difíceis de remover. Com uma picareta, um homem comum tem que dedicar uns três meses de trabalho árduo nas horas vagas para demolir um mini bunker, só para abrir espaço na garagem de casa para um carro, por exemplo. Mas como não há nada que seja de todo mau, muitos albaneses confessam ter perdido a virgindade dentro de um deles...
Uma ds vinhas-trepadeiras de Berat |
Lá experimento mais um pouco da hospitalidade albanesa, recebido pelo dono do hotel em que fiquei, Nasho Vruo. Um senhor de quarenta e tantos anos, Nasho fala alemão, francês e italiano, além de albanês, mas nada de inglês. Va bene, fazendo uso de um italiano de novela das oito, eu me viro. Ele faz questão que eu prove seu vinho – uma tradição em Berat, a maioria das casas produz a própria bebida.
Ao final de um longo dia de subidas e descidas, incluindo uma escalada ao castelo que domina a cidade do alto, no flanco norte, observo o pôr do sol da minha varanda, com as montanhas nevadas no horizonte. Lá embaixo, ao longo do rio, o movimento do korzo diário ganha volume, um caminhar para cima e para baixo da avenida principal, sem muito mais objetivo do que ver e ser visto. Ao fundo, o chamado rítmico dos muezins para a oração do entardecer começa a subir das mesquitas.
Retorno a Tirana no dia seguinte pela manhã, dessa vez uma passagem relâmpago, suficiente só para esperar meu ônibus para o próximo destino. Mas havia tempo para uma caminhada pelo chamado Bloku, a área ao sul do Rio Lana que nos tempos de Hoxha era território proibido para o albanês comum.
Depois da morte de Mao Tsé Tung (em 1976) e as mudanças que começaram as reformas modernizadoras na China, a partir de 1978, Hoxha põe fim à relação da Albânia com os asiáticos, afundando a economia local na crise e levando até à falta de comida. Nesse período, em que o país não tinha mais aliados, o ditador se encerra nos seus quarteirões fortificados, enquanto o resto do país caminhava para o colapso.
Restaurante no Bloku, em Tirana, bairro de elite à la albanesa |
Hoxha morreu em 1985, mas o regime se manteve, ainda que caindo aos pedaços. As pessoas não iam mais trabalhar, simplesmente porque o salário que recebiam não era suficiente para comprar quase nada. Ali no Bloku, logo do outro lado da ponte, encontra-se um dos símbolos mais bizarros do regime, uma enorme pirâmide de concreto projetada pela filha do ditador, construída em 1988 para abrigar um museu em homenagem ao ex-governante. A estrutura já foi um centro de conferências e uma boate, mas hoje está abandonada e coberta por graffitis – virou ponto de encontro da juventude de Tirana, que costuma escalar a pirâmide para ouvir música e desfrutar da vista.
O regime comunista só entrou em colapso definitivo em 1990, depois da queda do Muro de Berlim, quando mais de 4.000 albaneses buscam asilo em diversas embaixadas de Tirana. No ano seguinte, às vésperas da primeira eleição democrática, 20 mil albaneses aproveitam a abertura das fronteiras e fogem em barcos para Brindisi, na Itália.
A pirâmide do Bloku, em Tirana |
Em 1996, um esquema financeiro de pirâmides estimulado pelo próprio governo entra em colapso e 70% da população perde suas poupanças, um prejuízo estimado em US$ 1 bilhão. O ódio toma as ruas, depósitos de armas das forças armadas são tomados à força, fuzis, metralhadoras, granadas, tanques e até jatos de combate são levados. Armada, a população sai pelas ruas saqueando o que encontra pela frente.
As coisas começam a melhorar levemente a partir de 2002, com a entrada de dinheiro europeu investido em bancos e na construção civil, mas até hoje falta de água e energia acontecem até na capital. A presença norte-americana na Albânia também aumentou de lá para cá e bandeiras dos Estados Unidos são comuns em Tirana. Em abril de 2009 o país passa a integrar a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), a aliança militar do ocidente.
Casa onde vivia o ditador Enver Hoxha, no Bloku |
Carreguei no YouTube um vídeo curto do entardecer em Berat:
https://youtube.com/watch?v=jXhXq5OLayI
Bibliografia:
O escritor albanês Ismail Kadare, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, oferece uma descrição viva do Kanun em um dos seus livros, Abril Despedaçado. A obra foi adaptada ao cinema pelo diretor brasileiro Walter Salles, substituindo as montanhas da Albânia pelo sertão nordestino, no filme de mesmo nome, de 2001.
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