terça-feira, 13 de maio de 2014

Na Planície dos Pássaros Negros

O mapa em amarelo e as estrelas da bandeira do Kosovo
"What? Not Serbia, not Albania? – Let me put it to you this way, my friend: some say this is Serbia, some say Albania. The Lord only knows which of the two it really is. So who owns this accursed plain where we spilled our blood, the Blackbird Plain, as they call it? It was there, my brother, that the fighting started – a hundred, maybe even two hundred years ago.”*
3 Elegies for Kosovo, Ismail Kadare


Sempre que eu me aproximo de um controle de fronteira por terra um arrepio me corre a espinha. Em aeroportos normalmente é um procedimento mais tranquilo, os policiais costumam ser mais bem treinados e mais habituados a diferentes passaportes – além disso, há a esperança de uma embaixada nas proximidades. Mas por terra, tudo pode acontecer...
Antes de o ônibus encostar no posto fronteiriço o cara da companhia de transporte passa uma lista, em que cada passageiro escreve o próprio nome e número de documento. Depois um policial entra recolhendo os passaportes, e quando pega o meu olha duas vezes a foto e depois para mim, como que para ver se entendeu direito. O que um brasileiro estaria fazendo ali, cruzando da Albânia para o Kosovo?
Todo mundo que tem mala é convidado a descer do ônibus e levar a bagagem até uma sala de inspeção. Um policial educado e em um inglês perfeito pede para que eu abra minha mochila, com meu passaporte em mãos, e me pergunta o que eu faço da vida, “além de jogar futebol”, ele brinca. Ah, o futebol é mesmo uma benção...
Pristina, moderna e em crescimento acelerado
Recolhemos nossas malas e voltamos todos para o ônibus, ainda sem nossos passaportes, e ele segue viagem... Já ouvi dizer que os viajantes que chegam ao Kosovo por terra costumam ter a entrada negada depois na Sérvia, sob a alegação de que você entrou no país ilegalmente – até 2007 o território era sérvio e eles se recusam a reconhecer a independência kosovar. Meu voo de volta tinha uma escala em Belgrado, mas isso era um problema para depois... Onde estava o meu passaporte? O ônibus já alcançava velocidade de cruzeiro rumo à planície verdejante abaixo quando o cara da Metropol Tirana começa a percorrer o corredor, com um bolo de passaportes na mão, para fazer a distribuição.
Aliviado, começo a apreciar a paisagem na Planície dos Pássaros Negros, Kosovo para os sérvios, Kosova para os albaneses. Depois do montanhoso leste da Albânia, fica claro por que o conflito se arrasta por essas terras há mais de 600 anos – é tudo verde, plano e fértil. O Kosovo já foi o coração do império sérvio, lá no século XII, a era de ouro do czar Stefan Dusan, com sede em Prizren, uma cidade que fica ao sul da capital, Pristina.
O domínio sérvio caiu por terra em 1389, depois de uma batalha que foi o divisor de águas na região pelos próximos cinco séculos, a Batalha do Kosovo – lutada em uma vila pertinho de Pristina, Kosovo Polje, onde hoje fica a estação de trem. Em um único dia um combinado de forças cristãs, incluindo sérvios, montenegrinos, húngaros, romenos e albaneses combateram os turcos, e perderam. A derrota deu início à diáspora sérvia rumo norte e marca o começo da supremacia étnica dos albaneses na região, que adotaram o islamismo sob domínio otomano.
Albaneses com de qeleshe, o chapéu tradicional, cena comum no Kosovo
Um albanês nunca irá concordar com isso, diga-se de passagem, porque eles se dizem descendentes dos ilírios, um povo indo-europeu que ocupava essa parte dos Balcãs antes de Cristo, anterior aos romanos e às invasões eslavas dos séculos VI e VII da Era Cristã.
O Kosovo foi parte do Império Otomano até 1912, quando os sérvios voltaram a dominar a região como resultado da Primeira Guerra dos Balcãs. Durante a Segunda Guerra Mundial, as terras são incorporadas à Grande Albânia, controlada pelos italianos de Mussolini. Em 1944 os kosovares são libertados dos fascistas pelos partisans albaneses, que depois entregam as terras à recém criada Iugoslávia de Tito - ele queria integrar a Albânia à nova federação dos eslavos do sul, mas não teve sucesso.
O Kosovo então permaneceu como a área mais atrasada e pobre da Iugoslávia, uma parte da Sérvia, sem o status de república das demais seis nações integrantes da federação (Croácia, Eslovênia, Bósnia, Macedônia e Montenegro, além dos sérvios). Era chamado pelos próprios iugoslavos como o Wild West (Oeste Selvagem), pela fama dos albaneses de sempre carregar uma arma.
Vindo da Albânia e depois de tudo o que eu já tinha lido e ouvido sobre o Kosovo, minhas expectativas não eram das mais positivas. Talvez até por isso minha impressão ao chegar a Pristina foi de surpresa total. Em vez de uma cidade atrasada, encravada na zona historicamente mais conflituosa dos Balcãs, o que eu encontrei foi um lugar moderno, razoavelmente limpo, com carros novos circulando pelas ruas e internet WiFi disponível em qualquer café ou restaurante.
Como Pristina fica em um vale, as encostas ainda continuam ocupadas por casas, mas na área central, lá embaixo, a cidade vive um verdadeiro boom da construção civil. Sítios e mais sítios em obras, enormes guindastes carregando vigas de aço para estruturar os novos arranha-céus, um cenário que não difere muito de Balneário Camboriú (SC), por exemplo.
Fotos de "desaparecidos" na guerra de 1999, em um prédio público
Parece que depois de tanto tempo os kosovares resolveram deixar os conflitos de lado e se concentrar nos negócios – ou pode ser também a enxurrada de dinheiro europeu desaguando no mais novo país do continente (o Kosovo tornou-se oficialmente independente só em 2008). Ao mesmo tempo, foi curioso ver tantos homens circulando pelas ruas com o característico chapeuzinho branco que identifica os albaneses, o qeleshe – algo que na Albânia mesmo eu vi muito pouco. Talvez porque aqui eles funcionem como declaração de identidade, uma forma de marcar a supremacia étnica albanesa no Kosovo.
A maioria albanesa é histórica na região desde que essas terras passaram ao controle da antiga Iugoslávia, o que sempre foi um grande motivo de preocupação para o governo de Belgrado. Filho de mãe croata e pai esloveno, Tito era famoso pelas suas visitas constantes às seis repúblicas da federação, que fazia sempre a bordo de seu trem azul particular, uma estratégia para balancear as tensões e interesses regionais. Mas apesar de Pristina estar a apenas seis horas de viagem de Belgrado, o marechal levou onze anos para fazer sua primeira visita à cidade, em 1967. O chefe da polícia secreta iugoslava, Aleksandar Rankovic, dizia ser capaz de garantir a segurança de Tito em qualquer lugar no mundo, exceto no Kosovo...
Esses eram os anos de liberalização do regime iugoslavo, ao mesmo tempo em que a pressão demográfica albanesa no Kosovo só aumentava. Os albaneses sempre foram notórios por ter grandes famílias, há até um ditado popular que ensina o que fazer com os filhos – é preciso gerar no mínimo três homens, um para ficar na terra, um para mandar ao exterior e outro para lutar na guerra. No final dos anos 60, a população albanesa kosovar já se aproximava dos 70%.
Estátua de Clinton, herói no Kosovo
A partir de 1968, os albaneses do Kosovo experimentam a chamada Rilindja (Renascimento), com a autorização de oferecer educação superior na língua albanesa – antes só permitida em sérvio. Em 1974, a Iugoslávia dá um poder de autogoverno aos kosovares.
Os ventos invertem a direção na década seguinte, com a entrada em cena de uma das figuras políticas mais negras da história moderna dos Balcãs. Estimulando o nacionalismo e surfando no descontentamento da minoria sérvia na região, Slobodan Milosevic aproveita o conflito ancestral no Kosovo como plataforma de ascensão ao poder a partir de 1987. Ele assume a presidência iugoslava em 1989 e no aniversário de 600 anos da derrota para os turcos marca uma posição nacionalista em Kosovo Polje, que ficou conhecido como o Discurso de Gazimestan. Nesse dia Milosevic sinalizou com a possibilidade do uso da força para garantir a supremacia sérvia na Iugoslávia, abrindo a Caixa de Pandora que levou à guerra, limpeza étnica e genocídio na Bósnia e na Croácia.
No mesmo ano Milosevic suspende a autonomia do Kosovo que tinha sido concedida dois anos antes. Os albaneses passam a boicotar as escolas e o governo iugoslavo, ao que os sérvios respondem substituindo 100 mil funcionários de origem albanesa na mídia e posições estatais na província. Nessa época a maioria albanesa já estava na casa dos 80%.
A guerra sempre foi esperada no Kosovo, mas no desintegrar da Iugoslávia estourou mesmo na Bósnia, em 1992. Na esteira da pulverização da federação iugoslava, em 1996 surge o UÇK (Exército de Libertação do Kosovo) e a tensão aumenta. Três anos depois, a Sérvia já separada de Croácia, Bósnia, Eslovênia e Macedônia, rejeita um plano apresentado pelos Estados Unidos para dar autonomia à região. Em seguida, Belgrado tenta repetir no Kosovo a estratégia de expulsão da população não-sérvia empregada no leste da Bósnia – o problema era que a maioria albanesa era simplesmente esmagadora.
Ainda assim, 850 mil kosovares de origem albanesa deixam a região, cruzando as fronteiras para Albânia e Macedônia. As potências ocidentais decidem não cometer o mesmo erro duas vezes, depois da falta de ação que resultou até em campos de concentração e execuções em massa na Bósnia. Aviões da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) bombardeiam cidades sérvias (Belgrado, Novi Sad e Nis, entre outras), além de Pristina, no Kosovo. Pela primeira vez a Otan colocava em andamento uma operação militar sem aprovação do Conselho de Segurança das Nações Unidas, algo que os russos (aliados históricos dos sérvios) até hoje não digeriram. Esse foi um fato citado recorrentemente pelo presidente Vladimir Putin entre as justificativas para suas recentes ações na Ucrânia e anexação da Península da Crimeia.
Letreiro do recém-nascido, Kosovo é o país mais novo da Europa
Depois de 78 dias de bombardeio, Milosevic foi forçado a retirar as tropas sérvias do Kosovo. A partir de junho, a KFOR, sigla para a Kosovo Force, a força de paz da Otan, assume o controle da região. Quase dez anos depois, em 2008, uma assembleia eleita localmente decreta oficialmente a independência. Mais de 100 países reconhecem a autonomia kosovar, entre os quais Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, França, Austrália e Nova Zelândia. China e Rússia não, assim como o Brasil também não. De lá para cá, a maioria albanesa tornou-se ainda maior - dos cerca de 2 milhões de habitantes do Kosovo, 92% são dessa etnia, com os restantes 8% divididos entre sérvios, roma, bósnios, turcos e até egípcios. A guerra foi há 15 anos, mas em frente aos prédios públicos de Pristina ainda se vê fotos e nomes de pessoas “desaparecidas” durante a tentativa de limpeza étnica posta em prática pelos sérvios.
A presença norte-americana e da KFOR ainda é bem visível na capital, seja pela facilidade de encontrar quem fale inglês, seja na forma de bandeiras mesmo. Um pouco ao sul do centro você pode caminhar pela Rua George W. Bush, que faz esquina com o Boulevard Bill Clinton. Se para boa parte do mundo o ex-presidente democrata é lembrado pelo gosto por estagiárias gordinhas e charutos (combinados), no Kosovo ele é visto como um dos grandes responsáveis pela independência. Na avenida com seu nome há até uma estátua de bronze de quase três metros de Clinton, que foi surrealmente inaugurada por ele mesmo, em novembro de 2009.
Os kosovares se orgulham de ser o país mais novo da Europa. Ao norte da região central, em frente ao primeiro shopping center de Pristina, eles instalaram um enorme letreiro com a palavra Newborne (Recém-nascido, em inglês) - além de cenário para fotos serve de playground para as crianças, que se divertem escalando as letras gigantes.
Painel em homenagem a Adem Jashari, no ginásio de Pristina
O centro de compras fica ao lado do estádio de futebol e do ginásio público, decorado com uma enorme fotografia de Adem Jashari, um dos fundadores do UÇK. Camponês analfabeto de origem albanesa, ele tomou parte pela primeira vez em combate contra forças sérvias em 1991. Treinado na Albânia, foi preso daquele lado da fronteira em 1993 e mandado para a cadeia em Tirana. Na confusão pós-queda do comunismo no país vizinho, acabou sendo libertado por exigência de nacionalistas do Exército albanês e retornou ao Kosovo, liderando ações de guerrilha e sabotagem contra forças sérvias. Sua base ficava em Prekaz, uma pequena cidade no centro do Kosovo, a noroeste de Pristina, onde os sérvios por anos não ousaram entrar.
Em 7 de março de 1998, um destacamento das forças armadas sérvias cerca Adem Jashari e seu irmão Hamez, na casa da família, em Prekaz, uma operação que incluiu blindados e peças de artilharia. Eles recusam-se a se entregar e a batalha dura dois dias. Os militares sérvios finalmente invadem a casa, em uma ação que a Anistia Internacional, em sua análise do caso, qualificou como planejada para não deixar testemunhas. Jashari e outros 57 pessoas foram mortas na ação, incluindo 18 mulheres e dez menores com idade inferior a 16 anos.
Com isso surgiu um mártir, que virou símbolo da luta pela independência kosovar. Depois de 2008, camisetas com o desenho do barbudo Jashari usando qeleshe e a frase “Bac, U Kry!” (algo como “Acabou, Tio!”) se espalharam pelas ruas de Pristina. A casa em que ele a família foram mortos, em Prekaz, foi transformada em um memorial e centro de peregrinação para os nacionalistas albaneses no Kosovo. Além da foto gigante no ginásio, o guerrilheiro hoje dá nome ao aeroporto internacional da capital.
Depois de três dias em Pristina eu me dirijo à rodoviária - que para minha alegria existia na capital kosovar – para seguir viagem, rumo à Macedônia.

*“O que? Não é Sérvia, nem Albânia? Deixe-me colocar para você dessa forma, meu amigo: uns dizem que isso é Sérvia, outros Albânia. Só Deus sabe qual dos dois realmente é. Então quem é o dono dessa planície amaldiçoada onde nós derramamos nosso sangue, a Planície do Pássaro Negro, como eles a chamam? Foi ali, meu irmão, que a luta começou – cem anos, talvez até duzentos anos atrás.”
3 Elegies for Kosovo, Ismail Kadare


Na van, a caminho da Macedônia
Carreguei no YouTube um vídeo curto de dois músicos albaneses em ação no centro de Pristina, a tradicional combinação de sopro e percussão. Também abaixo tem um link de outro vídeo que apresenta a visão albanesa de quem foi Adem Jashari.

Pristina
http://youtu.be/dPvgQs8mveU

Adem Jashari
http://www.youtube.com/watch?v=dP-JypvrqI8

Bibliografia:
O escritor albanês Ismael Kadare faz uma descrição poética da Batalha do Kosovo em 3 Elegies for Kosovo, centrando a narrativa em dois menestréis trazidos pelos reis sérvio e albanês para cantar a vitória de seus exércitos. Na véspera da batalha, mesmo com os dois povos prestes a combater lado a lado, ambos entoam canções que alertam para a invasão do Kosovo pelos vizinhos. Ou seja, o conflito kosovar é tão atávico que, mesmo quando aliados, os músicos albaneses e sérvios instintivamente cantavam uns contra os outros, simplesmente porque não sabiam cantar de outra maneira...
Para um relato mais contemporâneo, Kosova Kosovo, Prelude to war 1966-1999. O título soa denso, mas é na verdade um relato leve, rico em detalhes e extremamente bem humorado de Mary Motes, uma britânica que viveu parte dos anos 60 e 70 no Kosovo, como a primeira professora ocidental na Faculdade de Filosofia de Pristina.

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