quarta-feira, 28 de agosto de 2013

A força do carneiro

Vista externa do Pride Park, com o símbolo do Derby County
Real football for real funs”. Futebol de verdade para verdadeiros fãs. Esse é o slogan da Championship, a segunda divisão inglesa, onde joga o Derby County. Pensando bem, é genial. Se você não pode oferecer o futebol de sonho do Barcelona, o melhor é tentar fazer os torcedores do Blackpool se sentirem especiais...
Mas o cenário não é tão ruim como pode parecer. Na chegada ao Pride Park Stadium, casa do Derby, o clima é absolutamente civilizado. Torcedores do visitante Brentford se misturam aos fãs locais sem sinal de animosidade, cerveja é consumida (e vendida) livremente nas proximidades, ingressos estão disponíveis até o início da partida, policiais observam tudo com ar tranquilo (sem cavalos) e não há sinal de cambistas.
O que pode ou não entrar no estádio
Compro meu ingresso por 10 libras (algo em torno de R$ 35) e entro – bem diferente da primeira divisão, em que até os ingleses se referem aos ingressos como gold dust (ouro em pó). Não há revista, só uma grade que abre assim que o ingresso é inserido no leitor eletrônico. Ao lado da catraca um aviso com desenhos mostra o que se pode ou não levar ao campo – facas, copos e garrafas de vidro, latas, guarda-chuvas grandes, fogos de artifício e dardos, claro, estão vetados. Dentro do estádio não há um só policial, a segurança é toda particular, responsabilidade do mandante da partida - vestindo coletes amarelo-fosforescente, eles estão por todos os lados.
Antes de chegar à beira do campo e subir ao meu lugar, passo no meio de um bar, onde não só se vende cerveja (Lager e Bitter), como também cider e vinho (branco e tinto). Os preços das bebidas, apesar de salgados para o nosso bolso enfraquecido pelo real, não são diferentes dos cobrados em muitos pubs da cidade: 3,70 libras (R$ 13) o pint da lager (Carlsberg, no caso). No mesmo local uma banca de apostas lista os odds (valor pago) para cada palpite. Apostar na vitória do Derby por 1 a 0, com gol do Ward, por exemplo, rendia 230 libras para cada 10 casadas (má sorte para quem acreditou nisso, o Ward nem entrou em campo)...
Ao chegar à beira das quatro linhas para subir ao meu lugar, o espetáculo do Pride Park se completa. O estádio não é muito grande, mas também não é pequeno, tem capacidade para 33,5 mil espectadores, todos sentados. É a casa do Derby desde 1997, quando foi inaugurado pela Rainha Elisabeth II.
West Lower Block L, Row KK, Seat 56
O gramado brilha de tão verde, impecável. Envolvido por aquela sensação difícil de explicar de quando se adentra qualquer estádio de futebol, especialmente à noite, subo em direção à minha cadeira, West Lower Block L, Row KK, Seat 56. Ele está lá, me esperando.
E o jogo? Bom, esse é válido pela segunda rodada da Capital One Cup, a chamada Copa da Liga Inglesa. É a menos glamourosa das copas do país, disputada todos os anos pelos 92 clubes membros da Football League (incluindo todos os 20 da Premier League, a primeira divisão). Para o adversário do Derby, o Brentford, que disputa a League One (equivalente à terceira divisão na Inglaterra), vale o sonho de avançar contra um rival um nível acima. Para o time da casa, a vitória significa vaga na terceira rodada da competição, que pode proporcionar uma partida contra um time grande, de primeira divisão (os confrontos são sorteados). É jogo único, se empatar tem prorrogação e pênaltis.
Os verdadeiros fãs estão mesmo por aqui. Atrás de mim, três velhinhas (aparentemente acima dos seus 70 anos) não só assistem como comentam atentamente a peleja e me olham feio quando levanto no primeiro lance de perigo. Alertado pela Fabi, peço desculpas e tento me controlar... A idade média do público, ao contrário do que se vê nas canchas brasileiras, é elevada. O Pride Park não estava muito cheio. Ao ser anunciada, a renda aponta pouco mais de 9.000 pagantes.
No bar, lager, bitter, cider, red or white wine
E o futebol de verdade? Claro que não se assiste aos 33 passes certos seguidos do Barcelona, mas o jogo flui agradável – e rápido! Não se vê muitos dribles ou lances de efeito, mas a bola muda de lado com velocidade e objetividade. Poucas faltas, quase nada de reclamações com o juiz e a maca não entrou em campo nem uma vez no primeiro tempo – o fair play está presente, mas sem bola chutada para fora a cada dez minutos porque tem alguém caído, fingindo contusão...
Com pouco mais de meia hora de partida já está 3 a 0 para o time do carneiro (os jogadores do Derby são chamados de rams, referência à histórica ligação da região com a produção de lã e depois com a Revolução Industrial). O queridinho da torcida é um loirinho com cabelo quase branco, Will Hughes, moleque de 18 anos que está em todas as partes, na meia, na ala e no ataque. Mas meu preferido, mesmo, é o gigante irlandês Conor Sammon, um centroavante careca e clássico - corpulento, trombador, faz bem o pivô e não desiste de uma bola, autor do segundo gol do jogo.
O segundo tempo corre sob controle para os carneiros, que marcam mais duas vezes – com direito ao segundo do irlandês gigante -, garantindo vaga tranquilamente na terceira fase da Copa da Liga. O sorteio é logo mais, hoje à tarde...
Se foi bom? Sábado que vem estarei de volta, para acompanhar Derby County x Burnley, desta vez pela Championship!

Campo do Pride Park, gramado impecável
PS: Em tempo, na Championship, a segunda divisão inglesa, são 24 equipes, jogam todos contra todos, ida e volta. Os dois primeiros ascendem diretamente à Premier League (a primeirona). Os outros quatro que ficarem entre o terceiro e o sexto lugares disputam um play off, terceiro contra sexto, quarto contra quinto, em jogos de ida e volta. Os vencedores se enfrentam em jogo único, no Estádio de Wembley, em Londres, e o ganhador também sobe para a primeira divisão.

PS2: Deve ter gente pensando que já ouviu falar desse Derby County... Sim, é o primeiro time do Brian Clough no filme The Damned United (Maldito Futebol Clube, em português). O assunto é tão bom que merece um post só para ele, voltarei ao assunto em breve!

Tem um vídeo do interior do Pride Park que postei no YouTube, pra quem quiser sentir o clima:
http://youtu.be/V9YZcP8Ez80

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Holanda, o país do improvável

Café na praça principal de Schiedam
A gente aprende desde pequeno que a Holanda é o país dos moinhos, da terra recuperada do mar, das bicicletas e tudo o mais. Ver isso de perto é outra coisa. O que parece surpreendente assistindo pela televisão faz o queixo cair quando você presencia o milagre dos canais, o Delta Project e, especialmente, a vida que flui sobre duas rodas.
Os números falam por si sós. Cerca de 60% do território ocupado pelos holandeses é área drenada, 20% do total é terra tomada do oceano (ou seja, abaixo do nível do Mar do Norte) e 20% do país ainda é coberto de água.
Bom, isso são só os dados da realidade. O que faz a boca abrir mesmo é observar o sistema em andamento, como a engenharia disso tudo funciona à perfeição, com destaque para o transporte público.
Sim, a Holanda é mesmo o país das bicicletas. Para alguém que vem do Brasil e está acostumado a olhar as magrelas atravessado - quando o ciclista está sobre a calçada achamos que ele deveria andar na rua, quando circula pelo asfalto reclamamos que deveriam andar na calçada -, é um verdadeiro choque.
Na Holanda a bicicleta não é passatempo, é meio de transporte, mesmo. Nas cidades a ciclovias correm paralelas a quase todas as principais vias de deslocamento urbano, com direito a sinalização própria. Pode-se entrar com elas em ônibus, trams, metrô e trens, e existem estacionamentos para bicicletas gratuitos em todas as estações – é amarrar a bichinha e seguir de transporte público, se preferir.
Fora das cidades, mais 6.000 quilômetros de estradas de longa distância exclusivas para bicicletas cortam a Holanda, formando uma rede com 20 rotas, as chamadas LF (Landelijke Fietsroutes), com mapas próprios à venda nas bancas de jornal e livrarias.
Estacionamento de bicicletas, com dois andares, em Leiden
Olhando assim, parece que essa estrutura sempre esteve lá - pior que não. A reconstrução da Holanda após a Segunda Guerra Mundial privilegiou o automóvel, como em todo o resto do mundo. No final dos anos 50, a renda média dos holandeses tinha triplicado e eles podiam comprar mais e mais carros, levando ao movimento típico de transformar praças em estacionamentos e aumentar a malha rodoviária.
A mudança veio após a primeira crise do petróleo, em 1973, quando o país praticamente parou com a escassez e aumento dos preços do óleo, importado em sua imensa maioria. O governo enxergou na crise um sinal de mudança estrutural, percebendo a necessidade de reduzir o consumo de energia não-renovável – daí começou a incentivar o uso da bicicleta e a construir as ciclovias.
Na segunda metade da década de 70 as primeiras cidades, com maciça ajuda do governo central, inauguram algumas trilhas exclusivas para magrelas, a começar por Haia e Tilburg. Com isso, o uso da bicicleta saltou, respectivamente, 60% e 75% nos dois municípios. Era só o começo. Hoje 70% das jornadas abaixo de 7,5 quilômetros na Holanda são movidas a pedaladas.
Tram em frente à Estação Central (de trem), em Rotterdam
Tudo bem, a bicicleta é levada mesmo a sério, mas está longe de ser a única opção. Fiquei mais tempo em Rotterdam, a segunda maior cidade holandesa e porto mais movimentado da Europa. São 600 mil habitantes, espalhados por uma série de canais, à beira do rio Maas. A estrutura de transporte público inclui 12 linhas de trams (espécie de metrô de superfície, mais lento), cinco linhas, 75 quilômetros e 62 estações de metrô subterrâneo (incluindo ligações às cidades vizinhas de Haia e Schiedam), além de três rotas de waterbus (barcos que circulam pela área urbana e vizinhança, onde se pode levar a bicicleta, claro). Só para lembrar, nossa São Paulo, com seus quase 20 milhões de habitantes na região metropolitana, tem 65 quilômetros e 58 estações de metrô...
Como Rotterdam é toda entremeada pelos canais, uma série de pontes levadiças conecta a cidade, erguidas regularmente para dar passagem a barcaças, navios ou mesmo veleiros. O que embasbaca é que por cima da ponte também passa a linha de tram, movida a eletricidade. A ponte sobe, desce e em seguida passa o trenzinho elétrico. Falando assim alguém pode imaginar um processo arrastado, que atravanca a cidade, mas não. Entre parar o trânsito, baixar as cancelas, subir a ponte, passar o barco, descer de novo e liberar o tráfico passam-se não mais que três ou quatro minutos (veja um vídeo disso no final do texto).
OV-chipkaart em ação
Esse sistema de transporte público é todo integrado por um cartão magnético, o OV-chipkaart, semelhante ao Oyster, usado em Londres (Reino Unido). A diferença na Holanda é que o sistema é nacional – ou seja, o cartão vale para qualquer meio (seja ônibus, tram, trem ou barco), em Rotterdam, Amsterdam ou qualquer cidade. A sensação é surreal, você viaja de trem como se estivesse andando de metrô, passa o cartão na entrada da estação (que aliás não tem cancela, os clandestinos são fiscalizados dentro dos trens) e de novo ao sair.
A única exigência mínima para as viagens de trem é ter sempre crédito mínimo de 20 euros no cartão, que é a tarifa máxima ferroviária na Holanda. Assim, se você quiser burlar o sistema, passando o cartão na entrada e se omitir na saída, 20 euros são automaticamente debitados da sua conta. Se for fiscalizado dentro do trem e não tiver crédito no cartão ou passagem, multa de 40 a 50 euros. Nos trajetos que fiz, posso dizer que fui fiscalizado em uma a cada duas viagens.
Gazelle, a minha companheira em Rotterdam
Em Rotterdam, uma das pérolas da engenharia holandesa data dos anos 40, o Maastunnel. É um túnel sob o Rio Maas, com 1,3 quilômetro de comprimento, sendo 1 quilômetro debaixo da água (na parte mais profunda, 20 metros abaixo do nível do mar). Foi a opção holandesa para conectar os dois lados da cidade sem atrapalhar o intenso tráfego dos navios para o porto, que exigiria uma ponte muito alta.
Mas se você está na Holanda, um túnel não pode ser um simples túnel: há uma seção para os automóveis e outra, separada (uma passagem paralela, de onde nem se vê nem se ouve os carros), para bicicletas e pedestres. Essa parte é dotada de duas compridas escadas rolantes, uma de cada lado do rio, para facilitar a descida e subida das pessoas e bicicletas (tem um vídeo de uma travessia minha de bicicleta pelo Maastunnel no final do texto também).
Sobre o Delta Project nem preciso falar muito, vocês já devem ter visto no Discovery Chanel ou algo do tipo. Começou em 1958, na Zelândia, província do sul da Holanda, depois que uma enchente catastrófica inundou a região cinco anos antes. A ideia original era bloquear o estuário e criar uma rede interna imensa de água, mas a consciência ambiental falou mais alto. O que eles acabaram construindo foi uma imensa rede de barreiras móveis (a parte mais extensa tem 3 quilômetros) que podem ser baixadas para fechar a baía e evitar a entrada da água do mar.
É, esse holandês faz coisa...

Os vídeos de que falei, carregados no YouTube, seguem abaixo:

Ponte levadiça de Rotterdam em ação
http://youtu.be/rHrO_9irD2Y

Travessia do Maastunnel de bicicleta
http://youtu.be/G4m9bj8sjio

terça-feira, 6 de agosto de 2013

No templo dos santos guerreiros

O domo dourado chama a atenção, brilhando no meio dos sobradinhos avermelhados construídos para o proletariado vitoriano no final do século retrasado, no hoje dominado pelos imigrantes bairro de Normanton, a meia dúzia de quadras de distância de casa. Apesar de cercado por grades, tinha o portão aberto. Com certa cautela, atravessei o pátio.
Logo na entrada o aviso era claro: sapatos não eram bem vindos. De meias, deixo meu par na sala reservada e adentro o salão, devagar. No fundo da sala um homem de turbante lilás, aparentando uns 50 anos, levanta e abandona um grupo de outros cinco barbudos sentados em roda, caminhando em minha direção, com cara de poucos amigos. Paro.
Ele aponta para a minha cabeça e depois para fora do salão. Tento falar com o barbudo, mas ele não me dá chance. Ouço apenas um raivoso: “Cover your head! (Cubra sua cabeça)”.
Sala dos sapatos
Vou saindo, assustado, quando na lateral do salão um homem com um lenço na cabeça faz um sinal para mim, aponta para a própria testa e depois para a porta da entrada. Só então me dou conta do aviso pregado na parede: “Please cover your head (Por favor cubra sua cabeça)”.
Dou meia volta, recolho um lenço laranja da caixa de madeira ao lado da entrada e volto para dentro. No fundo da sala, uma enorme cozinha ocupa toda uma lateral do recinto, aberta para o público. No balcão, uma espécie de bandejão é comandado por um homem usando um lenço igual ao meu. Nas panelas, um curry, arroz, bolinhos e, ao lado, chá. Ele me pergunta se quero um pouco.  Agradeço, impressionado com as fotos penduradas nas paredes, mostrando uma série de guerrilheiros barbudos carregando fuzis Kalashnikovs.
Enquanto me distraio tentando avaliar o cardápio, um outro barbudo carregando um balde cheio de cebolas descascadas se aproxima e me pergunta, seco: “What do you want? (O que você quer?)”. Com a viva impressão de que a minha sorte pode estar no fim, decido usar o super trunfo: “I’m from Brazil... (Sou do Brasil...)”.
Ele abre um sorriso: “Really? Have you eaten something? (Mesmo? Já comeu algo?)”. Agradeço outra vez e explico que acabei de tomar café da manhã – eram por volta das 10h. Ele me pergunta se já fui lá em cima e respondo que não. Minha expressão devia estar um pouco assustada, porque ele me assegura que está tudo bem, e que eu deveria dar uma olhada lá em cima.
O refeitório
Dou meia volta e, na saída, o homem de lenço que tinha me oferecido ajuda me chama de novo. O inglês dele era telegráfico, mas consigo entender que o que ele quer é me ensinar como fazer uso do buffet. Agradeço de novo, mas ele insiste: “It’s free! You go upstairs, pray 10 minutes and eat! (É de graça! Vai lá em cima, reza dez minutos e come!)”. Decido subir.
No final de dois lances de escada encontro um enorme salão acarpetado, medindo uns 30 por 30 metros, isolado por duas portas de vidro. Percebo que o som das orações - uma espécie de mantra - que ecoava na área do refeitório era na verdade um vazamento da área superior. Indeciso se devo ou não entrar, vejo uma menininha de uns cinco anos se aproximar do vidro. Ela sorri para mim e abre a porta. Entro.
No fundo do salão um homem barbudo vestido de branco e turbante negro ocupa uma espécie de altar. Atrás dele, um segundo homem, mais velho, de compridas barbas brancas, sacode o que parece um espanador feito de crina de cavalo sobre a cabeça do primeiro. Ao redor deles, espalhados pelo chão, homens e mulheres sentados, alguns em posição de lótus, todos com as cabeças cobertas. Dirijo-me a uma das paredes e sento também, com as pernas cruzadas.
"Por favor cubra sua cabeça"
O som das orações é constante e meio hipnótico. Um chamado é seguido de um coro, uma mistura de vozes masculinas e femininas em sequências encadeadas. Deixo-me ficar por ali, ouvindo, observando, por uma meia hora, até que a sessão termina. O homem de turbante negro se levanta e sai, seguido pelo titular do espanador. Chego perto do altar e vejo que há uma série de pacotes de alimentos, ao lado de uma caixa com notas e moedas, no que parecem ser doações. Em frente a um livro aberto, há uma espécie de lança dourada, com seis espadas de longas lâminas curvas alinhadas, três de cada lado.
Retorno ao andar de baixo, onde sou abordado por um homem que aparenta quarenta e poucos anos, de lenço e barba escanhoada. Com uma voz amigável, ele me pergunta o que estou fazendo ali - digo que estou apenas visitando o templo. A conversa dura uns dez minutos, mas é bastante esclarecedora. Começo a entender um pouco do universo Sikh. O homem me diz que não é muito religioso, mas que sua mulher é – e como ela começou a frequentar o templo, ele acabou vindo junto.
O domo dourado, ele me conta, é na verdade o centro agregador da comunidade Sikh de Derby, um grupo étnico que só é maioria na região do Punjab, ocupando o norte da Índia e parte do Paquistão. A fé (o Sikhismo) é uma religião monoteísta – a quinta maior entre as consideradas “organizadas” do planeta, com cerca de 30 milhões de seguidores. No Reino Unido, o último censo que mediu a presença Sikh, em 2001, apontou cerca de 330 mil deles espalhados pelas terras da rainha.
O grande salão das orações, com o altar ao fundo
O ideal do Sikhismo é que os seus adeptos sejam uma espécie de “santo guerreiro”, com o propósito de equilibrar fé e ao mesmo tempo apresentar coragem e estar sempre pronto para lutar e proteger os mais fracos contra crueldades e injustiças. A religião surgiu no século XV, liderada por dez gurus que transferiam a própria autoridade de líder espiritual ao seguinte, até que o décimo encerrou a sequência, delegando o poder às sagradas escrituras (batizadas de Guru Granjh Sahib). A função do homem de turbante negro no salão das orações, aprendo, é a de interpretar as escrituras – já o barbudo com o espanador que fica atrás dele é responsável por manter o livro sagrado “limpo” durante as orações.
Entre os mandamentos do Sikhismo estão a proibição de cortar o cabelo (daí os turbantes e as longas barbas), além do banimento completo ao consumo de álcool, drogas, tabaco ou qualquer outra substância intoxicante. Superstições ou rituais de purificação (como jejuns, por exemplo) também são proibidos, assim como manter relações sexuais fora do casamento. Ah, a mentira e a fofoca também são muito mal vistos pelos Sikhs.
E os guerrilheiros com os Kalashnikovs a tiracolo que decoram as paredes do refeitório? Bom, há um movimento separatista Sikh que busca desligar a região do Punjab da Índia, criando o Kahlistan. A questão teve seu pico entre os anos 70 e a metade dos 80, culminando na chamada Operation Blue Star, um ataque das forças de segurança indianas ao templo dourado de Amritsar, território sagrado para os Sikhs.
Quadro pendurado na parede do refeitório
Com o objetivo alegado de eliminar um foco de militantes separatistas armados que estariam abrigados no templo, o governo indiano envolveu 10 mil homens na ação, realizada em junho de 1984, incluindo helicópteros, tanques e artilharia pesada. Além do bombardeio e destruição de parte do templo, o resultado foi a morte de quase 500 civis (segundo oficiais indianos), além de 83 militares.
Quatro meses depois veio a vingança. Em 31 de outubro a primeira-ministra indiana, Indira Gandhi, foi assassinada por dois de seus guarda-costas Sikhs. A morte foi seguida de uma onda de violência contra a minoria que se espalhou pela Índia, resultando em mais de 3 mil Sikhs mortos em massacres seguidos.
Nova vingança se seguiu em 1985, quando uma organização Sikh baseada no Canadá explodiu um avião de passageiros da Air India em pleno ar, enquanto sobrevoava a costa da Irlanda, matando mais de 300 pessoas. Nos anos 90 o movimento perdeu força, mas recentemente o governo indiano tem acusado a agência de inteligência do vizinho e rival Paquistão (a ISI – Inter-Services Intelligence) de estar patrocinando o treinamento de jovens militantes separatistas Sikhs em solo paquistanês, com o objetivo de promover ataques terroristas na Índia.
As fotos dos militantes nas paredes mantém o ideal separatista vivo, mas a principal função do templo Sikh de Derby é mesmo a caridade. Mantido pelas doações – de dinheiro e alimentos – da própria comunidade, serve refeições de graça a quem aparecer por lá.
O olhar dos barbudos de fuzil assusta, mas acho que vou voltar para provar a comida...

Carreguei no YouTube dois vídeos curtos do templo Sikh, o primeiro do refeitório e o segundo do salão de orações.
Os links seguem abaixo:

Refeitório
http://www.youtube.com/watch?v=Z7Qwy1RUYfc&feature=youtu.be

Salão das orações
http://www.youtube.com/watch?v=X_3JZ3Fd7tE&feature=youtu.be

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Um dia no pub

O beco
Nem sei por que me aventurei a entrar na viela que partia do Sadler Gate. Fazia um calor feroz em Derby (acreditem, 28 graus) e a sombra do beco parecia agradável. Eram duas e meia da tarde e no meio do beco havia um pub.
A porta estava aberta e o sol da tarde entrava com gosto, iluminando pela metade um cachorro esparramado no chão, lá dentro. O balcão cheio de torneiras reluzentes pareceu irresistível. Entrei.
No que coloquei o pé na soleira do pub o cachorro levantou a cabeça e olhou pra mim, prontamente advertido pelo dono do lugar, sentado em uma mesa encostada à parede, oculto para mim até então: “Tobby!”.
No interior do pub só havia três seres: o proprietário, um homem de uns 70 anos, cozido pelo calor, observando um pint de Coors Light esquentando no balcão, e o Border Collie branco, com uma mancha no meio das costas e uma máscara negra que tomava todo um lado da cabeça, preteando um olho e uma orelha, dando um ar maroto ao bicho.
As torneiras e o balcão
Do lado de lá do balcão, uma garota de vinte e poucos anos chega da cozinha, usando um shorts jeans preto e um biquíni listrado sob a regata, de cabelo preso em um rabo de cavalo. Em seguida aparece outra, de idade semelhante, também de shorts e regata, bem magra e com um olhar sorridente.
A primeira garota me pergunta o que eu vou querer. Escolho uma lager britânica, a Carling. Tudo parece congelado por um instante, o dono do pub recostado à parede, Tobby cochilando no sol e o senhor cozido pescando no balcão, enquanto meu pint é servido.
Mas antes de eu alcançar a metade do copo eles começam a chegar.
Tobby, à vontade entre os amigos
O primeiro usava um estranho capacete de rugby na cabeça, calças pretas e uma pesada jaqueta de nylon, apesar do calor. Depois de cumprimentar o dono, ele se senta na ponta do balcão e começa a se divertir ensinando truques ao Tobby, com uma agilidade notável para a terceira idade.
Logo em seguida aparece um senhor distinto, pouco além dos 60 anos, cabelos grisalhos e um elegante blazer de cor bege, com um ar de Paul Newman nos seus melhores dias. Ele afaga a cabeça do Tobby e se senta à mesa do dono.
O terceiro elemento a adentrar o pub usava óculos quadrados - no que alguém poderia enxergar um artigo vintage, mas claramente não ele. Encosta-se ao balcão, do meu lado, e pede “half a pint” de Strongbow (uma cidra que infelizmente já tive o desprazer de confundir com uma cerveja) e uma dose de whisky. O shot, generoso, é bebido rápido, em dois goles. A cidra ele faz durar, deixando o líquido gasoso descer devagar pela garganta.
O dono do pub (à esq.), entretendo seus convidados
O quarto é um homem gordo, trajando uma camisa de listras horizontais azuis, cinzas e brancas, com um generoso bigode embranquecido estilo leão marinho, óculos e um boné azul escuro. Ele se senta também na mesa do dono e pede uma cidra (Thatchers).
Nesse meio tempo já se passaram alguns minutos e Tobby desfila, faceiro, pelo pub, recebendo atenção hora de um, hora de outro visitante, inclusive de mim. Minha Carling está quase no fim e a loirinha magra me pergunta: “What are you waiting for? (O que você está esperando?)”
Absorvido pelo ambiente, não entendo de primeira e solto o clássico: “I beg your pardon? (Me desculpe?)”.
O que ela queria era me servir o segundo pint. Peço uma McEwan’s, que um folheto no balcão apresenta como uma “Extra cold authentic Scottish lager”, em promoção “all day” por 1,75 libra. Infelizmente, ela me diz que tem, mas acabou. Na promoção, mesmo, só a Coors Light, que o senhor cozido do lado ainda deixava esquentar à sua frente.
Coors Light, na promoção "all day"
Ela me pergunta se eu conheço e eu digo que sim, claro, “American lager” e tal. A loirinha parece sentir a minha desconfiança: “It’s actually brewed across town... (“Na verdade é produzida do outro lado da cidade...”). O argumento – e o preço – são suficientes para vencer meu preconceito contra as cervejas americanas e peço um pint.
Nisso chega o quinto personagem, corcunda, de camisa polo azul clara, bermuda cinza e mocassins azuis – ele parece o mais adaptado ao calor entre todos. Ocupa uma cadeira na mesa do dono, que nesse momento pede à loira magrinha um pint de Coors Light.
Ele só estava esperando o time ficar completo. Do silêncio pensativo, passa sem estágio intermediário a uma atividade frenética, falando sem falar, dirigindo-se alternadamente a cada um dos presentes, como que preocupado em entreter seus convidados. Tobby caminha calmamente até o pé da mesa e se deita, atento a cada movimento do dono.
Assim eles seguem tarde adentro. Meu segundo pint já vai pela metade e a indecisão me domina: voltar à rua ou partir para o terceiro e continuar por ali...