sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Holanda, o país do improvável

Café na praça principal de Schiedam
A gente aprende desde pequeno que a Holanda é o país dos moinhos, da terra recuperada do mar, das bicicletas e tudo o mais. Ver isso de perto é outra coisa. O que parece surpreendente assistindo pela televisão faz o queixo cair quando você presencia o milagre dos canais, o Delta Project e, especialmente, a vida que flui sobre duas rodas.
Os números falam por si sós. Cerca de 60% do território ocupado pelos holandeses é área drenada, 20% do total é terra tomada do oceano (ou seja, abaixo do nível do Mar do Norte) e 20% do país ainda é coberto de água.
Bom, isso são só os dados da realidade. O que faz a boca abrir mesmo é observar o sistema em andamento, como a engenharia disso tudo funciona à perfeição, com destaque para o transporte público.
Sim, a Holanda é mesmo o país das bicicletas. Para alguém que vem do Brasil e está acostumado a olhar as magrelas atravessado - quando o ciclista está sobre a calçada achamos que ele deveria andar na rua, quando circula pelo asfalto reclamamos que deveriam andar na calçada -, é um verdadeiro choque.
Na Holanda a bicicleta não é passatempo, é meio de transporte, mesmo. Nas cidades a ciclovias correm paralelas a quase todas as principais vias de deslocamento urbano, com direito a sinalização própria. Pode-se entrar com elas em ônibus, trams, metrô e trens, e existem estacionamentos para bicicletas gratuitos em todas as estações – é amarrar a bichinha e seguir de transporte público, se preferir.
Fora das cidades, mais 6.000 quilômetros de estradas de longa distância exclusivas para bicicletas cortam a Holanda, formando uma rede com 20 rotas, as chamadas LF (Landelijke Fietsroutes), com mapas próprios à venda nas bancas de jornal e livrarias.
Estacionamento de bicicletas, com dois andares, em Leiden
Olhando assim, parece que essa estrutura sempre esteve lá - pior que não. A reconstrução da Holanda após a Segunda Guerra Mundial privilegiou o automóvel, como em todo o resto do mundo. No final dos anos 50, a renda média dos holandeses tinha triplicado e eles podiam comprar mais e mais carros, levando ao movimento típico de transformar praças em estacionamentos e aumentar a malha rodoviária.
A mudança veio após a primeira crise do petróleo, em 1973, quando o país praticamente parou com a escassez e aumento dos preços do óleo, importado em sua imensa maioria. O governo enxergou na crise um sinal de mudança estrutural, percebendo a necessidade de reduzir o consumo de energia não-renovável – daí começou a incentivar o uso da bicicleta e a construir as ciclovias.
Na segunda metade da década de 70 as primeiras cidades, com maciça ajuda do governo central, inauguram algumas trilhas exclusivas para magrelas, a começar por Haia e Tilburg. Com isso, o uso da bicicleta saltou, respectivamente, 60% e 75% nos dois municípios. Era só o começo. Hoje 70% das jornadas abaixo de 7,5 quilômetros na Holanda são movidas a pedaladas.
Tram em frente à Estação Central (de trem), em Rotterdam
Tudo bem, a bicicleta é levada mesmo a sério, mas está longe de ser a única opção. Fiquei mais tempo em Rotterdam, a segunda maior cidade holandesa e porto mais movimentado da Europa. São 600 mil habitantes, espalhados por uma série de canais, à beira do rio Maas. A estrutura de transporte público inclui 12 linhas de trams (espécie de metrô de superfície, mais lento), cinco linhas, 75 quilômetros e 62 estações de metrô subterrâneo (incluindo ligações às cidades vizinhas de Haia e Schiedam), além de três rotas de waterbus (barcos que circulam pela área urbana e vizinhança, onde se pode levar a bicicleta, claro). Só para lembrar, nossa São Paulo, com seus quase 20 milhões de habitantes na região metropolitana, tem 65 quilômetros e 58 estações de metrô...
Como Rotterdam é toda entremeada pelos canais, uma série de pontes levadiças conecta a cidade, erguidas regularmente para dar passagem a barcaças, navios ou mesmo veleiros. O que embasbaca é que por cima da ponte também passa a linha de tram, movida a eletricidade. A ponte sobe, desce e em seguida passa o trenzinho elétrico. Falando assim alguém pode imaginar um processo arrastado, que atravanca a cidade, mas não. Entre parar o trânsito, baixar as cancelas, subir a ponte, passar o barco, descer de novo e liberar o tráfico passam-se não mais que três ou quatro minutos (veja um vídeo disso no final do texto).
OV-chipkaart em ação
Esse sistema de transporte público é todo integrado por um cartão magnético, o OV-chipkaart, semelhante ao Oyster, usado em Londres (Reino Unido). A diferença na Holanda é que o sistema é nacional – ou seja, o cartão vale para qualquer meio (seja ônibus, tram, trem ou barco), em Rotterdam, Amsterdam ou qualquer cidade. A sensação é surreal, você viaja de trem como se estivesse andando de metrô, passa o cartão na entrada da estação (que aliás não tem cancela, os clandestinos são fiscalizados dentro dos trens) e de novo ao sair.
A única exigência mínima para as viagens de trem é ter sempre crédito mínimo de 20 euros no cartão, que é a tarifa máxima ferroviária na Holanda. Assim, se você quiser burlar o sistema, passando o cartão na entrada e se omitir na saída, 20 euros são automaticamente debitados da sua conta. Se for fiscalizado dentro do trem e não tiver crédito no cartão ou passagem, multa de 40 a 50 euros. Nos trajetos que fiz, posso dizer que fui fiscalizado em uma a cada duas viagens.
Gazelle, a minha companheira em Rotterdam
Em Rotterdam, uma das pérolas da engenharia holandesa data dos anos 40, o Maastunnel. É um túnel sob o Rio Maas, com 1,3 quilômetro de comprimento, sendo 1 quilômetro debaixo da água (na parte mais profunda, 20 metros abaixo do nível do mar). Foi a opção holandesa para conectar os dois lados da cidade sem atrapalhar o intenso tráfego dos navios para o porto, que exigiria uma ponte muito alta.
Mas se você está na Holanda, um túnel não pode ser um simples túnel: há uma seção para os automóveis e outra, separada (uma passagem paralela, de onde nem se vê nem se ouve os carros), para bicicletas e pedestres. Essa parte é dotada de duas compridas escadas rolantes, uma de cada lado do rio, para facilitar a descida e subida das pessoas e bicicletas (tem um vídeo de uma travessia minha de bicicleta pelo Maastunnel no final do texto também).
Sobre o Delta Project nem preciso falar muito, vocês já devem ter visto no Discovery Chanel ou algo do tipo. Começou em 1958, na Zelândia, província do sul da Holanda, depois que uma enchente catastrófica inundou a região cinco anos antes. A ideia original era bloquear o estuário e criar uma rede interna imensa de água, mas a consciência ambiental falou mais alto. O que eles acabaram construindo foi uma imensa rede de barreiras móveis (a parte mais extensa tem 3 quilômetros) que podem ser baixadas para fechar a baía e evitar a entrada da água do mar.
É, esse holandês faz coisa...

Os vídeos de que falei, carregados no YouTube, seguem abaixo:

Ponte levadiça de Rotterdam em ação
http://youtu.be/rHrO_9irD2Y

Travessia do Maastunnel de bicicleta
http://youtu.be/G4m9bj8sjio

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