Logo na entrada o aviso era claro: sapatos não eram bem vindos. De meias, deixo meu par na sala reservada e adentro o salão, devagar. No fundo da sala um homem de turbante lilás, aparentando uns 50 anos, levanta e abandona um grupo de outros cinco barbudos sentados em roda, caminhando em minha direção, com cara de poucos amigos. Paro.
Ele aponta para a minha cabeça e depois para fora do salão. Tento falar com o barbudo, mas ele não me dá chance. Ouço apenas um raivoso: “Cover your head! (Cubra sua cabeça)”.
Sala dos sapatos |
Dou meia volta, recolho um lenço laranja da caixa de madeira ao lado da entrada e volto para dentro. No fundo da sala, uma enorme cozinha ocupa toda uma lateral do recinto, aberta para o público. No balcão, uma espécie de bandejão é comandado por um homem usando um lenço igual ao meu. Nas panelas, um curry, arroz, bolinhos e, ao lado, chá. Ele me pergunta se quero um pouco. Agradeço, impressionado com as fotos penduradas nas paredes, mostrando uma série de guerrilheiros barbudos carregando fuzis Kalashnikovs.
Enquanto me distraio tentando avaliar o cardápio, um outro barbudo carregando um balde cheio de cebolas descascadas se aproxima e me pergunta, seco: “What do you want? (O que você quer?)”. Com a viva impressão de que a minha sorte pode estar no fim, decido usar o super trunfo: “I’m from Brazil... (Sou do Brasil...)”.
Ele abre um sorriso: “Really? Have you eaten something? (Mesmo? Já comeu algo?)”. Agradeço outra vez e explico que acabei de tomar café da manhã – eram por volta das 10h. Ele me pergunta se já fui lá em cima e respondo que não. Minha expressão devia estar um pouco assustada, porque ele me assegura que está tudo bem, e que eu deveria dar uma olhada lá em cima.
O refeitório |
No final de dois lances de escada encontro um enorme salão acarpetado, medindo uns 30 por 30 metros, isolado por duas portas de vidro. Percebo que o som das orações - uma espécie de mantra - que ecoava na área do refeitório era na verdade um vazamento da área superior. Indeciso se devo ou não entrar, vejo uma menininha de uns cinco anos se aproximar do vidro. Ela sorri para mim e abre a porta. Entro.
No fundo do salão um homem barbudo vestido de branco e turbante negro ocupa uma espécie de altar. Atrás dele, um segundo homem, mais velho, de compridas barbas brancas, sacode o que parece um espanador feito de crina de cavalo sobre a cabeça do primeiro. Ao redor deles, espalhados pelo chão, homens e mulheres sentados, alguns em posição de lótus, todos com as cabeças cobertas. Dirijo-me a uma das paredes e sento também, com as pernas cruzadas.
"Por favor cubra sua cabeça" |
Retorno ao andar de baixo, onde sou abordado por um homem que aparenta quarenta e poucos anos, de lenço e barba escanhoada. Com uma voz amigável, ele me pergunta o que estou fazendo ali - digo que estou apenas visitando o templo. A conversa dura uns dez minutos, mas é bastante esclarecedora. Começo a entender um pouco do universo Sikh. O homem me diz que não é muito religioso, mas que sua mulher é – e como ela começou a frequentar o templo, ele acabou vindo junto.
O domo dourado, ele me conta, é na verdade o centro agregador da comunidade Sikh de Derby, um grupo étnico que só é maioria na região do Punjab, ocupando o norte da Índia e parte do Paquistão. A fé (o Sikhismo) é uma religião monoteísta – a quinta maior entre as consideradas “organizadas” do planeta, com cerca de 30 milhões de seguidores. No Reino Unido, o último censo que mediu a presença Sikh, em 2001, apontou cerca de 330 mil deles espalhados pelas terras da rainha.
O grande salão das orações, com o altar ao fundo |
Entre os mandamentos do Sikhismo estão a proibição de cortar o cabelo (daí os turbantes e as longas barbas), além do banimento completo ao consumo de álcool, drogas, tabaco ou qualquer outra substância intoxicante. Superstições ou rituais de purificação (como jejuns, por exemplo) também são proibidos, assim como manter relações sexuais fora do casamento. Ah, a mentira e a fofoca também são muito mal vistos pelos Sikhs.
E os guerrilheiros com os Kalashnikovs a tiracolo que decoram as paredes do refeitório? Bom, há um movimento separatista Sikh que busca desligar a região do Punjab da Índia, criando o Kahlistan. A questão teve seu pico entre os anos 70 e a metade dos 80, culminando na chamada Operation Blue Star, um ataque das forças de segurança indianas ao templo dourado de Amritsar, território sagrado para os Sikhs.
Quadro pendurado na parede do refeitório |
Quatro meses depois veio a vingança. Em 31 de outubro a primeira-ministra indiana, Indira Gandhi, foi assassinada por dois de seus guarda-costas Sikhs. A morte foi seguida de uma onda de violência contra a minoria que se espalhou pela Índia, resultando em mais de 3 mil Sikhs mortos em massacres seguidos.
Nova vingança se seguiu em 1985, quando uma organização Sikh baseada no Canadá explodiu um avião de passageiros da Air India em pleno ar, enquanto sobrevoava a costa da Irlanda, matando mais de 300 pessoas. Nos anos 90 o movimento perdeu força, mas recentemente o governo indiano tem acusado a agência de inteligência do vizinho e rival Paquistão (a ISI – Inter-Services Intelligence) de estar patrocinando o treinamento de jovens militantes separatistas Sikhs em solo paquistanês, com o objetivo de promover ataques terroristas na Índia.
As fotos dos militantes nas paredes mantém o ideal separatista vivo, mas a principal função do templo Sikh de Derby é mesmo a caridade. Mantido pelas doações – de dinheiro e alimentos – da própria comunidade, serve refeições de graça a quem aparecer por lá.
O olhar dos barbudos de fuzil assusta, mas acho que vou voltar para provar a comida...
Carreguei no YouTube dois vídeos curtos do templo Sikh, o primeiro do refeitório e o segundo do salão de orações.
Os links seguem abaixo:
Refeitório
http://www.youtube.com/watch?v=Z7Qwy1RUYfc&feature=youtu.be
Salão das orações
http://www.youtube.com/watch?v=X_3JZ3Fd7tE&feature=youtu.be
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