sexta-feira, 28 de março de 2014

O ministro, o religioso, alguns curdos e uma ilha

Bandeira turca no Grande Bazaar, em Istambul
Imagine um país com o mesmo grupo político no poder há dez anos, cujo principal governante é acusado de corrupção, incluindo gravações telefônicas que implicariam ele e o filho em movimentações de dinheiro ilícito. Acrescente à mistura a fé muçulmana, separatistas curdos, um grupo ideológico islâmico com um líder auto exilado nos Estados Unidos aparelhando boa parte do organismo estatal e uma antiga questão étnica na terceira maior ilha do Mediterrâneo, que emperra a integração à UE (União Europeia). Pronto, você terá a Turquia.
Comecemos pelo assunto com o qual estamos mais familiarizados: a corrupção. O recente escândalo turco explodiu quando foram postadas gravações no YouTube, em fevereiro, em que o primeiro-ministro Tayyip Erdogan – líder do AK Parti (Partido da Justiça e Desenvolvimento), no poder desde 2003 - supostamente liga para seu filho, Bilal. Nas chamadas, que teriam sido realizadas em 17 e 18 de dezembro de 2013, ele alerta que uma enorme operação anticorrupção foi desencadeada pela polícia, com mandados para revistar as residências de 18 pessoas, incluindo três filhos de ex-ministros do seu governo. Em seguida, ele orienta o filho a buscar ajuda do irmão e do tio, para “dissolver” um volume de dinheiro presente em alguns imóveis. O valor não é citado, mas na quarta ligação, em que Erdogan perguntaria a Bilal se o assunto foi resolvido, o filho o informa ainda haver 30 milhões de euros que não tinham sido “dissolvidos”.
Comércio de rua no centro de Istambul
Nem Erdogan nem Bilal jamais negaram que as vozes nas gravações fossem deles, mas alegam que as conversas tiveram os diálogos editados e montados. O primeiro-ministro acusa um ex-aliado político de realizar os grampos, o escritor, ex-imã e estudioso islâmico Fethullah Gülen, que vive em auto exílio na Pensilvânia (Estados Unidos).
Gülen, de 74 anos, é o principal líder e fundador de um movimento muçulmano chamado Hizmet (Serviço, em turco), criado nos anos 70, mas que ganhou força a partir do fim da União Soviética, em 1991, quando estabeleceu sua base no Azerbaijão. O Hizmet não se enquadra nas categorias usuais de seitas islâmicas. Seu foco não está em resgatar uma sociedade tradicional e reviver uma “idade de ouro” do Islã, mas no futuro.
A proposta de Güllen é ambiciosa: educar uma “geração de ouro” de muçulmanos para mudar o mundo. Para isso, investe em educação – estimativas apontam que eles têm entre 300 e 1.000 escolas na Turquia e presença em 150 países. O movimento não tem uma estrutura formal conhecida, mas a representatividade entre os chamados formadores de opinião o coloca como um poder oculto no interior do Estado turco.
O assunto teria sido discutido em uma reunião do MGK (Conselho de Segurança Nacional), no mês passado. De acordo com uma fonte presente ao encontro e não identificada, citada pelo colunista do jornal turco Daily News, Murat Yetkin, os simpatizantes de Güllen ocupariam um terço dos postos na polícia e no judiciário turco, participação que seria ainda mais elevada quando considerados cargos de chefia (incluindo o Conselho de Estado, tribunais superiores etc), quando alcançaria dois terços. Esses seriam os desencadeadores das investigações anticorrupção e dos grampos, segundo os partidários de Erdogan. O governo inclusive já colocou em andamento uma série de expurgos no aparato de polícia e Justiça para contrabalancear as forças.
Istiklal Caddesi, a rua mais movimentada do Beyoglu, em Istambul
Ainda segundo o colunista, o grampo que revelou as conversas entre Erdogan e o filho é um trabalho interno. Seguidores de Güllen que ocupam posições de especialistas na Tübitak, a agência turca de desenvolvimento científico e tecnológico, teriam criado um software para capturar o conteúdo de todas as 14 mil linhas encriptadas usadas pelo governo nos últimos dois anos – desviando os dados das chamadas para uma conta de e-mail particular.
O líder do Hizmet e Erdogan foram próximos até pouco tempo atrás e o apoio de Güllen teve peso determinante na última reeleição do primeiro-ministro, em 2011. Os desentendimentos, parece, começaram um ano depois, quando Erdogan deu início a uma aproximação com membros do ilegal PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), através da agência de inteligência turca, o MIT (Organização de Inteligência Nacional), com o objetivo de entabular negociações de paz. Aqui chegamos ao terceiro ingrediente-chave do caldeirão turco: a minoria separatista.
O PKK é um dos principais representantes dos curdos na Turquia, um povo que soma em torno de 30 milhões de pessoas espalhadas pelo leste do país (além do nordeste da Síria e a área de fronteira entre o norte do Iraque e oeste do Irã) e que busca formar uma nação soberana na região. Só em território turco são cerca de 11 milhões, o equivalente a algo em torno de 15% da população. Criado em 1978, com uma plataforma que misturava nacionalismo curdo e socialismo revolucionário, o PKK promove atentados terroristas desde 1984. O último grande ataque aconteceu em outubro de 2010, quando uma bomba foi explodida por um suicida ao lado de um estacionamento da polícia, na Praça Taksim, bem no centro de Istambul, ferindo 22 policiais e dez outras pessoas que passavam pelo local.
A tentativa de entendimento de Erdogan com os curdos é apontada como o grande fator de desentendimento que o afastou de Güllen e levou o religioso à oposição. Solucionar a questão curda, aliás, é um dos nós que o governo turco precisa desatar no caminho sonhado de um dia integrar a União Europeia – mas não é o único. Ao lado desse, há ainda outro entrave geopolítico histórico a separar a Turquia da Europa, enraizado em uma ilha da sua costa oriental. Vamos à quarta variável do problema: o Chipre.
Praça Taksim, local do último grande atentado terrorista curdo, em 2010
A ilha é a terceira maior e mais populosa do Mediterrâneo e país-membro da União Europeia desde 2004. O conflito envolvendo os turcos, porém, é bem mais antigo. O território era dominado pelos venezianos até 1570, quando uma invasão otomana massacrou parte das populações armênia e grega, assumindo o controle. Os turcos perdem o controle da ilha para os britânicos como resultado de uma guerra com a Rússia, três séculos depois - o Chipre alcançaria independência, mesmo, só em 1960.
Em 1974 um golpe militar tenta tomar o poder e unir o território à Grécia, ao que a Turquia responde com uma invasão militar e desembarca 30 mil solados no norte da ilha. Mesmo depois do acordo de paz assinado em Genebra (Suíça), a divisão norte-sul permaneceu, com cerca de 150 mil turcos vivendo na porção norte, deslocando parte da população grega para a parte sul e desrespeitando resoluções da ONU (Organização das Nações Unidas).
O desejo turco de fazer parte da UE vem sendo condicionado à solução da questão, não só pelos próprios cipriotas, parte do bloco, mas também pela Grécia, país de origem étnica da população em conflito com os turcos na ilha. A favor da Turquia, porém, alinha-se a profunda crise econômica atravessada pelo Chipre, que recebeu uma ajuda de 10 bilhões de euros em março do ano passado do chamado Eurogrupo – formado por Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional -, para evitar a moratória da dívida pública.
O governo cipriota foi obrigado a fechar o segundo maior banco do país (o Laiki Bank) e impor limite de saques em outras instituições financeiras. Se há um lado positivo na falência, a bancarrota econômica aumentou o interesse do Chipre em solucionar o conflito histórico com o vizinho, de olho no capital e investimentos turcos que podem cruzar o Mediterrâneo em seguida ao acordo.
Gatos de Istambul, com a Hagia Sophia ao fundo
Com tudo isso dito, pode-se imaginar a Turquia em um estado de confusão generalizada – mas não é o que se vê nas ruas de Istambul. À parte o boom da construção civil que revolve os quatro cantos da maior cidade do país (e de onde os opositores de Erdogan identificam a principal fonte do alegado enriquecimento ilícito do político) e do inacreditável volume de gatos pelas ruas (nunca vi tantos em um só lugar), a metrópole parece levar uma vida normal – para o padrão do “mundo turco”, claro.
Incluindo os dois lados do Estreito de Bósforo, Istambul concentra 14 milhões de habitantes, não muito distante da população da Grande São Paulo, e a confusão é fator natural no dia-a-dia: trânsito pesado, buzinas em excesso, alguma poluição atmosférica, taxistas com inclinação homicida e um fluxo impressionante de gente para cima e para baixo.
Considerando a conjuntura política e geopolítica da Turquia, porém, era de se esperar algo pior. O que chama a atenção é a forte presença policial nas ruas do centro, em especial na Praça Taksim, local do último atentado terrorista. O caldeirão turco segue em fervura controlada – mas talvez não por muito tempo. A partir de domingo (30 de março) o país entrará em um ciclo de disputas eleitorais locais, desembocando nas eleições gerais parlamentares de 2015.
No Brasil tendemos a achar nossa situação política complicada, radicalizada e irreconciliável, talvez porque poucos têm o hábito de observar com mais atenção o que se passa ao redor do mundo. A conjuntura turca é um enredo de thriller político pronto para ser filmado...

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