quinta-feira, 13 de março de 2014

Em busca do avô

A Ribeira do Porto, o Douro e o casario
"Se a alma que sente e faz conhece
Só porque lembra o que esqueceu,
Vivemos, raça, porque houvesse
Memória em nós do instinto teu."
Fernando Pessoa (Viriato - Mensagem)

Eu não conheci o meu avô. Aliás, não conheci nenhum dos dois, mas aqui me referiro ao pai do meu pai. Quando chego à cidade do Porto, no norte de Portugal, me dou conta do quão pouco eu sei dele.
De frente para o casario que se esparrama morro abaixo, até bem pertinho do rio, no alto do extremo norte da Ponte D. Luís I, eu me deixo divagar. Será que a mão do meu avô algum dia abriu uma dessas velhas janelas com a pintura descascada pela umidade? Debruçou-se a fumar um cigarro em uma dessas varandas? Teve um dia que subir a um desses telhados para trocar uma telha partida? Correu para recolher às pressas as camisolas postas a secar no varal, para escapar de uma das tantas chuvas passageiras que sobem o Douro? Não, isso lá naquela época era trabalho de mulher...
O que eu sei sobre o meu avô é realmente pouco, algumas datas, os nomes do pai e da mãe, o ano de nascimento e o dia em que se casou com a minha Vó Deolinda, já em São Paulo, no dia 5 de fevereiro de 1938, um sábado, vinte dias antes do Carnaval. Eles tiveram dois filhos, meu pai e meu tio Alberto, mas nenhum dos dois também parece saber muito sobre o pai.
Ponte D. Luís I, com o metrô de superfície em direção a Vila Nova de Gaia
Não é que meu avô desapareceu, saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou – sair, ele deve ter saído muitas vezes, porque fumava desbragadamente, e dos sem filtro, o que parece ter sido a principal causa da sua morte, por enfisema pulmonar, seis anos antes de eu nascer. Mas o Vô Joaquim era um daqueles portugueses duros, de pouca conversa e confiança, menos ainda com os filhos.
Sei que ele veio para o Brasil de Vila Nova de Gaia, a cidade que historicamente abriga as caves do vinho do Porto, logo ali do outro lado do rio, separada da segunda maior cidade de Portugal por essa incrível ponte pênsil de metal - ela já estava lá na época do meu avô, já que foi erguida entre 1881 e 1888. O que não sei é se ele nasceu em Gaia...
Atravesso o vão do Douro, de olho nas águas turvas e em uma ou outra gaivota que também cruza rumo sul. Para fugir da canaleta turística, desvio da descida que leva à ribeira, onde se alinham, quase um ao lado do outro, os barracões dos fabricantes de vinho. Subo a avenida que hoje serve de rota para o metrô de superfície, até chegar à sede da prefeitura. Só aí me decido a descer, pelas vielas, para ver o que de fato é Gaia – e o que no fim pode ser eu.
A descida é tortuosa, até chegar ao limite da planície ribeirinha, que desemboca no rio. Antes de chegar ao Douro, me deparo com um boteco que se encaixaria perfeitamente em uma rua do Bixiga, em São Paulo, onde meu avô foi morar depois que se casou no Brasil – e onde meu pai nasceu. Jornal sobre o balcão para quem quiser ler, salgados protegidos pela prateleira de vidro, mesas de madeira espalhadas pelo salão, uma televisão ligada em um jogo de futebol, sem som, e ao fundo uma mesa de sinuca, com uma partida em andamento. Entro, peço um café, recolho o jornal e me sento.
O boteco do Manoel, em Vila Nova de Gaia
Quando me levanto para pedir um segundo, o gajo de cabelos grisalhos do outro lado do balcão puxa conversa, ao perceber que sou brasileiro. Papo vai, papo vem, ele me conta sua história. Manoel foi também um imigrante, cruzou o oceano para tentar a sorte nos Estados Unidos, onde trabalhou de operador de guindaste em depósito de sucata a instalador de interiores de limusines. Voltou com menos dinheiro do que saiu, diz ele, e abriu o boteco em Gaia. Meu avô nunca voltou...
Depois de sete meses na Inglaterra, aliás, visitar Portugal para mim foi um mergulho em ambientes e situações muito familiares, definidoras mesmo do meu Brasil paulistano. Mais do que a língua, a forma de agir, os sorrisos, a atenção e as comidas me levaram quase diretamente para casa – e uma casa que por vezes nem existe mais...
No meu primeiro dia em Lisboa, entro em uma padaria – sim, como as típicas e abençoadas padarias paulistanas – e me deparo com vários potes de arroz doce, com canela salpicada por cima e tudo. Talvez essa seja a lembrança mais forte da minha Vó Dinda, que preparava o doce como não mais eu provei igual. Ela morreu há mais de dez anos e de lá para cá nunca encontrei nada nem parecido. Peço um deles e a cachopa do balcão me entrega, com um sorriso curioso – quem em sã consciência come arroz doce no café da manhã? Na primeira colherada tudo voltou de repente, a escada de ladrilhos vermelhos partidos, o corredor com as tartarugas tomando sol, o sofá laranja da sala acarpetada, o galinho que mudava de cor para prever o tempo sobre a TV (azul para sol e rosado para chuva), e minha pequena Vó Dinda na cozinha, abrindo a velha geladeira que dava choque para me servir de arroz doce...
O arroz doce que trouxe de volta minha Vó Dinda
Depois da conversa com Manoel, tomo o rumo de volta ao Porto. Subindo as escadas para chegar ao meu quarto, cruzo com a dona do hotel, Dona Maria do Carmo, uma senhora em torno dos 60 anos. Ela pergunta sobre o meu dia e conto minha travessia a Gaia, para tentar encontrar um pouco do meu avô. O rosto dela se ilumina e sou convidado para tomar um café.
Dona Maria também faz parte de uma família de imigrantes. Em Portugal só restou ela, os pais já faleceram e o único irmão foi jovem viver na França – onde acabou por se tornar campeão mundial de dardos, como me mostra em uma série de fotos e recortes antigos de jornal. Ela se encoraja e começa a me contar uma história, de quando levou o pai, já velhinho, de volta à terra natal. É uma cidadezinha de Trás-os-Montes, a província que fica logo ali, Douro acima, encravada entre o Porto e a Espanha.
O pai nunca mais tinha voltado lá, desde criança, mas ao descer do carro saiu caminhando com desenvoltura pelas ruelas, até chegar a uma pequena praça, onde ainda havia o forno público em que se assava o pão – ali, menino, ele ia diariamente a mando da mãe, para cozer o alimento da família. Estavam os dois a observar a boca enegrecida pela fuligem quando uma senhora de idade próxima ao pai de Maria do Carmo se aproxima e o reconhece, ela também uma menina que naqueles anos passados apresentava a massa ao assador e voltava com o filão. Neste ponto Dona Maria começou a chorar e devo dizer que também não me contive.
Conto a ela a minha história, a tentativa de encontrar um pouco do meu avô ali no Porto. Ela me sugere uma visita ao Registro Civil, dizendo que se eu tinha a data de nascimento e o nome dos pais, talvez eles me informassem até o endereço da casa onde ele nasceu... Era sábado e isso só poderia ser feito na segunda-feira, dia em que eu tinha um voo para Londres a tomar, às 17h. Mas por que não?
Rua do boteco do Manoel, em Gaia
Na segunda, 8h55, cinco minutos antes do horário de abertura da repartição, já estou lá em frente. As portas se abrem pontualmente às 9h e faço minha consulta. A atendente, amável, me explica que ali estão informatizados os registros de 1911 para diante – a data provavelmente é reflexo da mudança de regime em Portugal em outubro de 1910, que pôs fim à monarquia e estabeleceu a república. Como meu avô nasceu em 1906, os arquivos deste período estão em outro lugar, na Torre do Tombo, no centro do Porto. Lá vou eu...
Lá a situação se mostra mais elusiva. Eu imaginava que com o nome completo, data, nome do pai e da mãe, seria fácil localizar o registro de nascimento – mas falta o distrito. A moça de óculos se levanta da frente do computador, desaparece pela porta no fundo da sala e volta com um livro encadernado em couro, as folhas amareladas pelo tempo.
Ela abre em uma página aleatória e me mostra. Naqueles anos as pessoas eram registradas pelo primeiro nome, em uma coluna da esquerda, e à direita se inseria os nomes completos de pai e mãe. Isso não está em ordem alfabética, os nascimentos eram registrados na ordem cronológica.
Coincidência? Placa com meu nome em Gaia (esq.)
Considerando toda a região do Porto – que inclui Vila Nova de Gaia -, são mais de 300 livros como aquele a ser checados, nome a nome, comparando o da esquerda com os progenitores, lançados na coluna da direita. E como a burocracia raramente trabalha a favor de algo que não seja ela própria, ali na Torre do Tombo só é permitido consultar dez livros por dia. Fazendo uma conta rápida, percebo que, no pior dos casos, eu teria que passar mais de um mês no Porto para vasculhar o arquivo todo...
Talvez percebendo o meu desânimo, o olhar por trás dos óculos me oferece uma alternativa. Não sei o ano em que o Vô Joaquim chegou ao Brasil, mas sei que foi obrigatoriamente antes de 1938, quando se casou. Nesse período já não era mais possível aos portugueses entrar em território brasileiro (pelo menos legalmente) sem um passaporte. Seguinte a essa informação ela me dá, enfim, uma boa notícia: a Torre do Tombo tem um arquivo informatizado, disponível na internet, com fotocópias de todos os passaportes emitidos no Porto. E nesse arquivo, se eu conseguir encontrar o do meu avô, consta o número do livro em que ele foi registrado.
O porém – e sempre há um – é que este arquivo também não está organizado em ordem cronológica (e pelo que a moça de óculos me mostrou na tela, nem lógica...). Mas já é um começo, um ponto de partida.
Levemente reconfortado, volto para o hotel. Já são quase uma da tarde, tempo para jogar as roupas dentro da mala, almoçar, me despedir da Dona Maria do Carmo e tomar o metrô para o aeroporto. De qualquer maneira, sinto que vou ter que voltar ao Porto...

Um comentário:

  1. Ôi Lucio, li seu post e lembrei-me que talvez ajude, enquanto você não volta a Portugal de novo, dar uma olhada neste site pois creio inclusive que pode solicitar o envio de certidão on-line, após pagamento indicado no site:

    https://www.portaldocidadao.pt/PORTAL/pt/informacao+geral/FAQ/certidoes_online/

    Espero ter sido útil, envio m/ cumprimentos.
    Clementina Garrido

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