Ronaldo 7, a camisola mais vendida em Portugal |
José Saramago
Nunca fui fã de jogadores estrela, ainda mais como esse, que tira as sobrancelhas e aparece em propagandas de cueca. Mas, como dizia José Saramago, "eu não invento nada. Levanto as pedras e mostro o que está por baixo". E em Portugal o que está por baixo não cabe mais debaixo das pedras... Mendigos pelas calçadas, pedintes no metrô, pichações pedindo “fora FMI (Fundo Monetário Internacional)” e um olhar nas ruas que mistura desesperança e resignação.
Entro em um café simples no Chiado, em Lisboa, onde um casal por volta dos 50 e tantos anos ocupa o balcão. Ao fundo, bem à brasileira, a televisão sintonizada na RTP 1 transmite um programa matutino de variedades. Um homem de meia idade fala sobre uma marca artesanal de chocolates, enquanto a apresentadora faz cara de que os bombons não podem ser nada menos que uma delícia. Aí o inesperado acontece. Escuto ele falar dos próprios chocolates, que aparentemente tinham mantido a pequena empresa viva durante a crise, como se fosse a relação mais lógica possível: "Isso nos faz ver que aqui em Portugal podemos ser os melhores do mundo, como já temos o melhor do mundo"... A mulher ao balcão acena positivamente com a cabeça, enquanto o homem continua enxugando os copos recém lavados.
É o efeito Ronaldo. Ganhador da Bola de Ouro pela segunda vez em janeiro (a primeira foi em 2008), autor dos quatro gols que levaram Portugal à Copa, derrotando a Suécia, Cristiano parece carregar o país nas costas – e o peso não é pequeno.
Instantâneo da vida portuguesa, nas ladeiras da Alfama, em Lisboa |
Verdade que em Portugal sente-se mais, mas o tamanho do jogador do Real Madrid impressiona, nem que seja só pelos números. Um estudo realizado pelo Ipam (Instituto Português de Administração e Marketing) considerando 26 variáveis avaliou a “marca Ronaldo” em 43 milhões de euros (R$ 139 milhões). Um outro levantamento, feito pela Cision, uma agência de comunicação sueca, estima em 185 milhões de euros (R$ 596 milhões) o potencial midiático do CR7, isso só na internet.
O universo online, aliás, é uma fronteira olhada com cuidado pelo staff do jogador. A página dele no Facebook tem quase 75 milhões de seguidores, mas isso não se mostrou suficiente. Cristiano decidiu criar sua própria rede social, a Viva Ronaldo (www.vivaronaldo.com), onde é possível interagir com outros fãs, responder a sessões de quiz sobre o futebolista, concorrer a um encontro com ele, ver notícias e acessar conteúdos postados pelo gajo (como seu último corte de cabelo, por exemplo...) - além de toda a carga relativa aos seus patrocinadores, é claro. Há uma versão para computadores pessoais e até um aplicativo para smartphones da Apple – a versão para o Android está em produção.
Um dos vários patrocinadores do gajo da Madeira |
A grande barganha, porém, foi o contrato que o português BES (Banco Espírito Santo) fechou com o jogador em 2003, quando pagou míseros 250 mil euros (R$ 805 mil) por dois anos de anúncios. No final do ano passado, quando o contrato com Ronaldo foi renovado, José Goes, membro do Comitê Executivo do banco, revelou à revista portuguesa Visão que os produtos de poupança promovidos pelo jogador contavam com ativos da ordem de 5 bilhões de euros (R$ 16,1 bilhões) só em Portugal.
Com tudo isso, não é difícil perder de vista que Ronaldo é na verdade um jogador de futebol – e não um qualquer. Neste quesito, o madeirense também leva Portugal na garupa, o que inevitavelmente o coloca na linha de tiro. Após a primeira partida da repescagem europeia de classificação para o Mundial, em novembro do ano passado, quando marcou o único tento na vitória de 1 a 0 sobre a Suécia no Estádio da Luz, em Lisboa, Cristiano transformou-se em alvo.
Nas vésperas do jogo de volta, em Solna, que seria realizado quatro dias depois, a Pepsi lançou uma campanha em território sueco que mostrava em fotos um boneco vestido com as cores da Seleção Portuguesa, amordaçado e amarrado a uma linha de trem, sob a frase “Vamos passar por cima de Portugal”. Em outro anúncio, Cristiano aparecia com a cabeça esmagada por uma lata de refrigerante ou em forma de um boneco de vodu.
No jogo, o gajo anotou os três gols que levaram os lusos a bater a Suécia por 3 a 2 e garantiu a ida dos encarnados ao Brasil. Após marcar, ainda no gramado, Ronaldo repetiu a comemoração lançada no embate do Real Madrid contra o Barcelona em fevereiro de 2013, no Camp Nou, quando os merengues eliminaram os catalães por 3 a 1, na Copa do Rei. Em claro e bom português e virado para as câmeras em Solna, ele fala, apontando para o chão: “Eu estou aqui”.
"Eu estou aqui", a frase que virou estampa de cachecol |
Ao caminhar pelas ruas de Lisboa, logo se vê que não há só a Casa dos Rapazes a precisar de ajuda. Depois de quase quebrar no redemoinho financeiro da crise da dívida da Zona do Euro desencadeada pela Grécia, Portugal tenta colocar a cabeça para fora da recessão já há três anos. Sob o risco de não conseguir honrar sua dívida com a disparada dos juros sobre os títulos públicos, o governo português jogou a toalha e entregou o comando de sua política econômica à chamada Troika, formada pela Comissão Europeia (órgão executivo da UE), Banco Central Europeu e FMI.
Há quem não aceite tudo calado... Cartaz de protesto no Porto |
A ironia, aliás, parece andar pelas próprias pernas em Portugal. Após três duros anos, o governo se prepara para a saída da Troika, programada para 17 de maio. A liberdade, ainda que tardia, virá menos de um mês depois de uma data chave na história lusa, o 25 de abril. Dentro de menos de três meses, os portugueses vão comemorar os 40 anos da Revolução dos Cravos, que encerrou os 41 anos da ditadura salazarista, em 1974.
Se a ironia se deixa ver em qualquer esquina de Portugal, a solidariedade mostra-se mais arisca. Ao descer a Rua Augusta, a principal artéria da Baixa em direção ao Tejo, no centro de Lisboa, sou atraído por um cântico. Acomodado sobre as pedras pretas e brancas da calçada portuguesa, lá está ele, cercado pelos quatro amigos.
Seu Joaquim Simões se diz “salmista” e percorre as ruas de Lisboa a cantar a mensagem da Bíblia. Não vai sozinho, leva sempre consigo Elias, Eliseu, Ismaela e Nica, a “mãe de todos”, os quatro vira-latas que carrega diariamente na garupa da bicicleta, trazidos no ferry de Cacilhas, do outro lado da Baía do Tejo. Eu me aproximo e puxo conversa, depois que ele termina de cantar.
Joaquim Simões, o salmeiro, e seus quatro amigos |
Sobre a situação portuguesa, o salmeiro é ainda mais direto: “A vida está muito cara, há muita gente perdendo casa, fruto do trabalho de uma vida inteira. Vejo muita gente aflita... Acho que Portugal tem uma bota muito difícil de calçar”.
A bota de Cristiano Ronaldo certamente calça bem mais fácil, mas o gajo terá um desafio difícil para mostrar que de fato chegou a um patamar acima. Dos 43 ganhadores da Bola de Ouro da Fifa desde que o prêmio foi estabelecido, em 1956, só 11 levantaram a Copa do Mundo com seu país... Portugal estreia no Grupo G contra a Alemanha, no Estádio da Fonte Nova, em Salvador, no dia 16 de junho. Estados Unidos e Gana também fazem parte da chave.
Carreguei no YouTube um vídeo com um pouco da cantoria de Seu Joaquim, o salmeiro:
http://youtu.be/08XyQ5RbZAk
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