quinta-feira, 6 de março de 2014

Levantados do chão

Ronaldo 7, a camisola mais vendida em Portugal
"Penso que estamos cegos, cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem. Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara."
José Saramago

Nunca fui fã de jogadores estrela, ainda mais como esse, que tira as sobrancelhas e aparece em propagandas de cueca. Mas, como dizia José Saramago, "eu não invento nada. Levanto as pedras e mostro o que está por baixo". E em Portugal o que está por baixo não cabe mais debaixo das pedras... Mendigos pelas calçadas, pedintes no metrô, pichações pedindo “fora FMI (Fundo Monetário Internacional)” e um olhar nas ruas que mistura desesperança e resignação.
Entro em um café simples no Chiado, em Lisboa, onde um casal por volta dos 50 e tantos anos ocupa o balcão. Ao fundo, bem à brasileira, a televisão sintonizada na RTP 1 transmite um programa matutino de variedades. Um homem de meia idade fala sobre uma marca artesanal de chocolates, enquanto a apresentadora faz cara de que os bombons não podem ser nada menos que uma delícia. Aí o inesperado acontece. Escuto ele falar dos próprios chocolates, que aparentemente tinham mantido a pequena empresa viva durante a crise, como se fosse a relação mais lógica possível: "Isso nos faz ver que aqui em Portugal podemos ser os melhores do mundo, como já temos o melhor do mundo"... A mulher ao balcão acena positivamente com a cabeça, enquanto o homem continua enxugando os copos recém lavados.
É o efeito Ronaldo. Ganhador da Bola de Ouro pela segunda vez em janeiro (a primeira foi em 2008), autor dos quatro gols que levaram Portugal à Copa, derrotando a Suécia, Cristiano parece carregar o país nas costas – e o peso não é pequeno.
Instantâneo da vida portuguesa, nas ladeiras da Alfama, em Lisboa
Sem dúvida a relevância do gajo nascido na Ilha da Madeira e formado nas canteiras do Sporting de Lisboa transcende em muito a nação mais ocidental da Europa continental – mas a importância dele para os portugueses assemelha-se à de um bote salva-vidas para um náufrago. Porque depois da ilusão de riqueza e os consideráveis avanços na infraestrutura proporcionados pela entrada na UE (União Europeia), os últimos anos de crise parecem ter devolvido Portugal à deriva, como a surreal descrição de Saramago dos anos 80 no seu Jangada de Pedra, onde a Península Ibérica simplesmente se desprende da Europa e começa a flutuar pelo Atlântico, em direção à América Latina.
Verdade que em Portugal sente-se mais, mas o tamanho do jogador do Real Madrid impressiona, nem que seja só pelos números. Um estudo realizado pelo Ipam (Instituto Português de Administração e Marketing) considerando 26 variáveis avaliou a “marca Ronaldo” em 43 milhões de euros (R$ 139 milhões). Um outro levantamento, feito pela Cision, uma agência de comunicação sueca, estima em 185 milhões de euros (R$ 596 milhões) o potencial midiático do CR7, isso só na internet.
O universo online, aliás, é uma fronteira olhada com cuidado pelo staff do jogador. A página dele no Facebook tem quase 75 milhões de seguidores, mas isso não se mostrou suficiente. Cristiano decidiu criar sua própria rede social, a Viva Ronaldo (www.vivaronaldo.com), onde é possível interagir com outros fãs, responder a sessões de quiz sobre o futebolista, concorrer a um encontro com ele, ver notícias e acessar conteúdos postados pelo gajo (como seu último corte de cabelo, por exemplo...) - além de toda a carga relativa aos seus patrocinadores, é claro. Há uma versão para computadores pessoais e até um aplicativo para smartphones da Apple – a versão para o Android está em produção.
Um dos vários patrocinadores do gajo da Madeira
Por falar em patrocinadores, a equipe por trás do camisa 7 da Seleção Portuguesa tenta aproveitar ao máximo seu potencial midiático. O escopo é vasto, de uma chuteira desenvolvida especialmente inspirada nele (a Mercurial IX) e uma coleção completa de roupas esportivas produzidas pela Nike à linha própria de cuecas (batizada de CR7), além de campanhas publicitárias para Armani e Dolce & Gabbana. Mas há mais, do videogame Pro Evolution Soccer aos pães Bimbo, da marca de shakes emagrecedores Herbalife à fabricante de eletrônicos Samsung, sem falar no xampu anticaspa Linic.
A grande barganha, porém, foi o contrato que o português BES (Banco Espírito Santo) fechou com o jogador em 2003, quando pagou míseros 250 mil euros (R$ 805 mil) por dois anos de anúncios. No final do ano passado, quando o contrato com Ronaldo foi renovado, José Goes, membro do Comitê Executivo do banco, revelou à revista portuguesa Visão que os produtos de poupança promovidos pelo jogador contavam com ativos da ordem de 5 bilhões de euros (R$ 16,1 bilhões) só em Portugal.
Com tudo isso, não é difícil perder de vista que Ronaldo é na verdade um jogador de futebol – e não um qualquer. Neste quesito, o madeirense também leva Portugal na garupa, o que inevitavelmente o coloca na linha de tiro. Após a primeira partida da repescagem europeia de classificação para o Mundial, em novembro do ano passado, quando marcou o único tento na vitória de 1 a 0 sobre a Suécia no Estádio da Luz, em Lisboa, Cristiano transformou-se em alvo.
Nas vésperas do jogo de volta, em Solna, que seria realizado quatro dias depois, a Pepsi lançou uma campanha em território sueco que mostrava em fotos um boneco vestido com as cores da Seleção Portuguesa, amordaçado e amarrado a uma linha de trem, sob a frase “Vamos passar por cima de Portugal”. Em outro anúncio, Cristiano aparecia com a cabeça esmagada por uma lata de refrigerante ou em forma de um boneco de vodu.
No jogo, o gajo anotou os três gols que levaram os lusos a bater a Suécia por 3 a 2 e garantiu a ida dos encarnados ao Brasil. Após marcar, ainda no gramado, Ronaldo repetiu a comemoração lançada no embate do Real Madrid contra o Barcelona em fevereiro de 2013, no Camp Nou, quando os merengues eliminaram os catalães por 3 a 1, na Copa do Rei. Em claro e bom português e virado para as câmeras em Solna, ele fala, apontando para o chão: “Eu estou aqui”.
"Eu estou aqui", a frase que virou estampa de cachecol
Mesmo com a vaga na Copa, Ronaldo não esqueceu a provocação da multinacional de bebidas. A má repercussão dos anúncios fez a Pepsi desdobrar-se em desculpas ao português, que aceitou perdoá-la sem maiores repercussões judiciais – mas a um preço. A marca de refrigerantes foi “convencida” a financiar, em parceria com o madeirense, uma nova residência para a Casa dos Rapazes, uma instituição ligada à Segurança Social de Portugal localizada em Lisboa, que acolhe crianças e jovens de seis a 18 anos, maltratados ou abandonados por suas famílias. Em 2005 a sede da organização, então no bairro da Alfama, pegou fogo, e eles foram provisoriamente alojados na freguesia de Marvila, no noroeste da capital, onde permaneciam de forma improvisada. Como resultado do imbróglio de Ronaldo com a Pepsi, eles vão agora se mudar definitivamente para Cascais, na Grande Lisboa, em duas casas contíguas, cercadas por um espaço ao ar livre.
Ao caminhar pelas ruas de Lisboa, logo se vê que não há só a Casa dos Rapazes a precisar de ajuda. Depois de quase quebrar no redemoinho financeiro da crise da dívida da Zona do Euro desencadeada pela Grécia, Portugal tenta colocar a cabeça para fora da recessão já há três anos. Sob o risco de não conseguir honrar sua dívida com a disparada dos juros sobre os títulos públicos, o governo português jogou a toalha e entregou o comando de sua política econômica à chamada Troika, formada pela Comissão Europeia (órgão executivo da UE), Banco Central Europeu e FMI.
Há quem não aceite tudo calado... Cartaz de protesto no Porto
A ajuda de 78 bilhões de euros (R$ 250 bilhões) não veio de graça e uma série de medidas de austeridade – incluindo privatizações, aumento de impostos, corte de gastos públicos e até de aposentadorias – colocou os portugueses em contato com uma pobreza e carestia que eles pensavam ter ficado no passado. Quando se observa de perto, essas coisas parecem semelhantes em todo lugar, em especial quando se trata de siglas... No Brasil conturbado dos anos 90, ainda no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, criou-se a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras), que tungava qualquer transação, incluindo saques na conta corrente, – durou 11 anos e alguns dias (de 1996 a 2007). Em Portugal, por sua vez, o governo estabeleceu a CES (Contribuição Extraordinária de Solidariedade), que taxa qualquer pensão ou aposentadoria acima de 1.000 euros (R$ 3.220) mensais em 3,5%, podendo chegar a 40% no caso de pagamentos acima de 7.545 euros (R$ 24.292). Pode-se acusar os criadores dessas siglas de qualquer coisa, menos de falta de humor – afinal, há uma ironia fina no uso das palavras “Provisória” e “Solidariedade” em ambos os casos.
A ironia, aliás, parece andar pelas próprias pernas em Portugal. Após três duros anos, o governo se prepara para a saída da Troika, programada para 17 de maio. A liberdade, ainda que tardia, virá menos de um mês depois de uma data chave na história lusa, o 25 de abril. Dentro de menos de três meses, os portugueses vão comemorar os 40 anos da Revolução dos Cravos, que encerrou os 41 anos da ditadura salazarista, em 1974.
Se a ironia se deixa ver em qualquer esquina de Portugal, a solidariedade mostra-se mais arisca. Ao descer a Rua Augusta, a principal artéria da Baixa em direção ao Tejo, no centro de Lisboa, sou atraído por um cântico. Acomodado sobre as pedras pretas e brancas da calçada portuguesa, lá está ele, cercado pelos quatro amigos.
Seu Joaquim Simões se diz “salmista” e percorre as ruas de Lisboa a cantar a mensagem da Bíblia. Não vai sozinho, leva sempre consigo Elias, Eliseu, Ismaela e Nica, a “mãe de todos”, os quatro vira-latas que carrega diariamente na garupa da bicicleta, trazidos no ferry de Cacilhas, do outro lado da Baía do Tejo. Eu me aproximo e puxo conversa, depois que ele termina de cantar.
Joaquim Simões, o salmeiro, e seus quatro amigos
Seu Joaquim era carpinteiro, mas abandonou a profissão há sete anos, porque “já não compensava”. Seu grande sonho é visitar Jerusalém em Israel - com os cães, claro, mas para isso ele diz que precisaria de uma moto, para o que sonha com um patrocínio, uma ajuda... Pergunto o que pensa de Cristiano Ronaldo e ele não titubeia: “é um bom jogador, mas essa coisa de bola... Será que era preciso envolver tanto dinheiro naquilo”?
Sobre a situação portuguesa, o salmeiro é ainda mais direto: “A vida está muito cara, há muita gente perdendo casa, fruto do trabalho de uma vida inteira. Vejo muita gente aflita... Acho que Portugal tem uma bota muito difícil de calçar”.
A bota de Cristiano Ronaldo certamente calça bem mais fácil, mas o gajo terá um desafio difícil para mostrar que de fato chegou a um patamar acima. Dos 43 ganhadores da Bola de Ouro da Fifa desde que o prêmio foi estabelecido, em 1956, só 11 levantaram a Copa do Mundo com seu país... Portugal estreia no Grupo G contra a Alemanha, no Estádio da Fonte Nova, em Salvador, no dia 16 de junho. Estados Unidos e Gana também fazem parte da chave.

Carreguei no YouTube um vídeo com um pouco da cantoria de Seu Joaquim, o salmeiro:
http://youtu.be/08XyQ5RbZAk

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