"Sweet lies do not help, while bitter truths can have a healing power."*
Alija Izetbegovic, presidente da Bósnia-Herzegovina (1992-1996)
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Sarajevo, vista das montanhas ao redor da cidade |
Era a tarde de um belo domingo de sol quando chego à estação central de ônibus de Sarajevo, capital da Bósnia-Herzegovina, com o objetivo de comprar uma passagem para Visegrad, no dia seguinte – eu tinha que ver de perto a fabulosa ponte sobre o Rio Drina. Para minha surpresa, descubro que ali não se vende essa passagem, e nem é dali que sai o ônibus. Como Visegrad fica na República Srpska, uma das unidades federativas da atual Bósnia-Herzegovina, seria necessário comprar o tíquete (e embarcar) na rodoviária de Lukavica, a 20 quilômetros dali, no chamado Cantão Sérvio, vizinho a Sarajevo....
O que fazer? Como chegar lá? Como quem não quer nada, eu me aproximo de um grupo de motoristas de táxi para assuntar. Um deles propõe me levar até Lukavica, por 20 euros. Outro oferece uma corrida diretamente até Visegrad, por 140 euros, ida e volta - tudo em uma mistura de sérvio-croata, alemão e algum inglês, mas na língua universal dos taxistas, todos se entendem.
Meu plano de fundo para aquela tarde na verdade era conhecer o chamado Túnel da Vida, a estrutura que manteve Sarajevo viva durante a guerra, quando a cidade permaneceu sitiada por quase quatro anos, entre abril de 1992 e fevereiro de 1996. Já que estava ali, pergunto aos taxistas quanto sairia uma ida até Ilidza, uns dez quilômetros a oeste, onde fica o que restou do túnel, nas proximidades do aeroporto. Um deles se oferece para me levar, esperar por mim lá e me trazer de volta por 15 euros. Fechamos negócio e entro no carro. Só eu ponho o cinto de segurança e ele fuma – definitivamente, a Bósnia me lembra muito o Brasil da minha infância, nos anos 80.
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Mapa do cerco, com o faixa de território que permitiu o túnel |
A corrida leva dois cigarros e uns 25 minutos. Chego a Ilidza pouco depois das 15h, na porta do museu que preserva os restos do túnel. O horário de fechamento é às 16h, mas sou muito bem recebido por Faruk, um bósnio muçulmano nos seus vinte e muitos anos, que em um inglês perfeito me guia pelo lugar.
Ele me conta que os bósnios não esperavam – ou não queriam acreditar – na guerra. Só depois do massacre à população croata de Vukovar por tropas sérvias, no oeste da Croácia, em 1991, a Bósnia começou a abrir os olhos. Mas já era tarde... Quando perceberam, militares e paramilitares sérvios já tinham dominado as posições nas montanhas ao redor de Sarajevo e se preparavam para fechar o cerco, em 1992. Uma representação da ONU (Organização das Nações Unidas) conseguiu manter o aeroporto na neutralidade e uma resistência heroica e obstinada de voluntários bósnios sustentaram um estreito corredor entre a vila de Butmir e o Monte Igman, o único cordão que ligava a capital às outras áreas a oeste, sob controle bósnio.
Enquanto os sérvios lutavam com o apoio de toda a estrutura e armamento pesado do antigo exército da Iugoslávia, os bósnios só tinham armas leves - para piorar, estavam impossibilitados de ir às compras, uma vez que um embargo armamentista estava em vigor para todas as ex-repúblicas iugoslavas durante o conflito. Para piorar, sob constante bombardeio sérvio, era muito arriscado trafegar pelo corredor, para trazer suprimentos a Sarajevo...
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O Túnel da Vida de Ilidza |
A solução encontrada pelos bósnios foi construir um túnel sob o corredor, de 800 metros de comprimento, um metro de largura e 1,60 metro de altura, para trafegar em segurança entre as próprias posições. A estrutura foi cavada a mão, uma vez que eles não tinham equipamentos pesados, e sem qualquer tecnologia de navegação por satélite. As escavações começaram simultaneamente dos dois lados, com o plano de se encontrarem no meio do caminho – mas sem GPS, algo saiu errado e eles tiveram que fazer uma curva subterrânea para conectar as duas partes.
A construção levou quatro meses e quatro dias e foi terminada em 30 de junho de 1993. Não havia nenhum sistema de exaustão e na maior parte do tempo uma camada de 20 centímetros de água cobria o piso. Ainda assim, uma brisa suave soprava sem parar pelo buraco, algo que os engenheiros da ONU nunca conseguiram explicar... O túnel começou a ser usado no dia seguinte.
Faruk me aponta uma mochila militar verde escura no chão e sugere que eu a levante – é um exemplo do peso que as pessoas carregavam pelos subterrâneos, trazendo munição, comida e remédios para a Sarajevo sitiada. Mal consigo colocar as alças nos ombros, são 50 quilos... Claro que isso era carregado em uma posição de semi agachamento (dada a altura de 1,60 metro entre o piso e o teto), em uma fila ininterrupta, através do chão alagado.
Depois de assistir um vídeo que mostra as incursões pelo túnel durante a guerra, entro nele de fato – ou no pequeno trecho que restou em pé. Na saída, Faruk me espera, fumando um cigarro. Ele me pergunta de onde eu sou e abre um sorriso inevitável ao ouvir Brasil. Explico que estava em Sarajevo no dia da classificação da Bósnia para a Copa e seguimos conversando. Em algum momento, digo a ele que, para nós, brasileiros, é difícil entender essa intolerância racial-religiosa – temos outros milhares de problemas, mas não esse.
Faruk me olha nos olhos e começa a contar uma estória. Ele me diz que sua família é de Pale, uma cidade que fica uns 20 quilômetros a leste de Sarajevo. A infância ele passou ali mesmo, em Ilidza, mas vivia em Pale, ainda criança, quando começou a guerra. Forçados a fugir para as proximidades da capital, conta que não conseguia reconhecer as ruas onde tinha crescido quando chegou, tamanha a destruição causada pelos bombardeios sérvios.
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Saída do túnel do lado de Sarajevo - foto do Museu do Túnel |
Há dois anos, diz Faruk, ele decidiu voltar a Pale – atualmente parte da República Srpska e área de maioria sérvia - e retomar as propriedades da família. Munido de uma marreta, madeira e material para fixar uma cerca plástica, dirigiu até seu terreno. A casa não existia mais, só restaram as ruínas, queimada pelos vizinhos sérvios. Quando ia pelo meio do serviço, com parte da cerca já fixada, ele ouviu uma voz próxima.
“Depois disso tudo eles ainda têm coragem de voltar aqui e colocar cercas na minha terra”, alguém dizia. Era um pastor sérvio, tocando um bando de ovelhas.
“Como o carro estava estacionado atrás das ruínas da casa, que fica protegida por um morro, ele não me viu. Ele estava falando sozinho, ou com as ovelhas, sei lá”, conta Faruk. “Aquilo me irritou bastante, saí de trás da casa e perguntei a ele onde está o papel que diz que aquela terra era dele.”
Pego de surpresa, o sérvio começou a se desculpar de imediato, dizendo que estava só falando sozinho, que passava por ali porque as ovelhas dele já estavam acostumadas, que teria que treiná-las para fazer diferente. Faruk olha para mim e solta a inconfundível expressão em inglês: “Yeah, right... (algo como, “Certo, então tá...”).
Já são mais de quatro horas, está na hora de fechar o museu e o motorista de táxi me espera para o retorno a Sarajevo. Agradeço ao Faruk, me despeço e caminho para o carro tentando fazer algum sentido de tudo aquilo.
Na volta à cidade, envolto na fumaça de mais alguns cigarros, tento organizar as ideias. A história da Bósnia é uma das mais sui generis no planeta... Localizada no meio dos Balcãs, esse território montanhoso sempre foi a encruzilhada da Europa. A divisão religiosa começou lá atrás, entre os romanos ainda. Quando o imperador Theodosius morreu, em 395, os domínios de Roma foram divididos entre seus dois filhos - a linha divisória passava mais ou menos na atual fronteira entre Bósnia e Croácia, com os croatas no lado católico e os bósnios do lado ortodoxo.
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Mesquita na Bascarsija, a parte mais antiga de Sarajevo |
Os turcos conquistaram a Bósnia entre 1386 e 1463 e a conversão para o Islã foi rápida, especialmente por parte das famílias donas de terras, interessadas em manter sua influência sob o domínio otomano. Forças militares bósnias passam a guerrear pelo sultão, promovendo, de tempos em tempos, expedições punitivas sanguinárias em direção ao norte e ao oeste.
O curioso é que, etnicamente, a população que ocupava – e ocupa – Bósnia, Croácia, Sérvia e Montenegro tem a mesma origem, são todos eslavos. A língua que falam é a mesma (sérvio-croata) e os costumes são semelhantes – não há restrição dos muçulmanos bósnios ao consumo de álcool e a tolerância religiosa é a regra.
Na fronteira entre católicos, muçulmanos e cristãos ortodoxos, a Bósnia conviveu durante séculos com uma mistura de credos. O maior exemplo disso era Sarajevo, uma pequena Jerusalém, que teve a quarta fé adicionada a partir de 1492, quando a cidade começou a receber um fluxo de judeus sefardis expulsos da Espanha pelos reis católicos Fernando e Isabela.
No final do século XIX, o Império Otomano começava a se desintegrar e uma série de revoltas de camponeses ortodoxos na fronteira com a Sérvia geram incerteza para a borda do Império Austro-Húngaro. Como resultado, depois de uma conferência em Berlim, em 1878, a Bósnia e a adjacente província da Herzegovina, então um pashaluk (província) turco, são colocadas sob a proteção austríaca.
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Ponte Latina, em Sarajevo |
Vinte anos depois, a Áustria-Hungria anexa oficialmente os dois territórios, gerando insatisfação por parte da população sérvia (que queria juntar a área à Sérvia) e muçulmana (que temia o domínio ocidental). Os nacionalismos exacerbados desembocam no assassinato do herdeiro do trono austríaco, Franz Ferdinand (na Ponte Latina, em Sarajevo, em 1914), por um radical de origem sérvia, que acabaria na declaração de guerra da Áustria à Sérvia e depois na Primeira Guerra Mundial.
Terminado o conflito, a Bósnia integra por pouco tempo o Reino Eslavo dos Sérvios, Croatas e Eslovenos. Durante a Segunda Guerra Mundial, o território bósnio se transforma na fortaleza de Tito e dos partizans comunistas, na luta contra os nazistas. Os iugoslavos foram os únicos a se libertar dos alemães sem a ajuda do Exército Vermelho ou Americano – e em não sendo ocupados pelos soviéticos, garantiram uma certa autonomia. Sob a mão de ferro do Marechal Tito, forma-se uma federação comunista e multiétnica, a Iugoslávia, incluindo seis repúblicas: Sérvia, Croácia, Bósnia-Herzegovina, Eslovênia, Macedônia e Montenegro.
A união durou até pouco depois da queda do Muro de Berlim. Em junho de 1991 o primeiro país a declarar independência da Iugoslávia foi a Eslovênia, obtida após um breve conflito armado contra o exército iugoslavo, o JNA, dominado pelos sérvios. Em seguida foi a vez da Croácia, o que mergulhou o país em uma guerra com as minorias sérvias apoiadas pelo JNA, que durou até 1995.
Sob a liderança de Alija Izetbegovic, a Bósnia também declarou-se independente, em março de 1992 – então o país tinha 43% de bósnios muçulmanos, 33% de população de origem sérvia, 17% de origem croata e 7% de outras nacionalidades. Em abril, os sérvios bósnios, com ajuda do exército da Ex-Iugoslávia, declararam o território sob seu controle como uma república sérvia dentro da Bósnia. Os bósnios croatas, com apoio da Croácia, fazem o mesmo, no lado oeste. Com isso, começa um sangrento conflito tripartite por território, com os bósnios muçulmanos do lado mais fraco, sem armamento pesado. Secretamente, os líderes sérvio (Slobodan Milosevic) e croata (Franjo Tudman) fazem um acordo para repartir o território da Bósnia-Herzegovina, nos moldes do que fizeram alemães e russos com a Polônia, na Segunda Guerra Mundial.
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Ex-Iugoslávia e suas seis repúblicas |
As maiores atrocidades foram vistas no leste da Bósnia, na fronteira com a Sérvia, atual República Srpska, onde paramilitares sérvios, com a ajuda do JNA, colocaram em prática uma violenta campanha de limpeza étnica, baseada em estupros sistemáticos, campos de concentração e extermínio de homens e meninos muçulmanos próximos da idade militar. Pressionada, a ONU envia 7.500 homens para estabelecer alguma ordem para os refugiados na Bósnia.
A esta altura, no alto Vale do Drina, as cidades de Foca e Visegrad já tinham sido “etnicamente limpas” de muçulmanos, restando aos capacetes azuis estabelecer “Safe Zones” (“Zonas de Segurança”) ao redor de Zepa, Gorazde e Srebrenica, para onde os sobreviventes muçulmanos haviam fugido. Dessas três, só Gorazde resistiu, em grande parte por conta das próprias forças bósnias.
Em julho de 1995, os capacetes azuis holandeses não fizeram mais do que assistir a tomada de Srebrenica pelas tropas sérvias comandadas pelo general sérvio Ratko Mladic. Os sérvios amontoaram mulheres e crianças em dezenas de ônibus, sem comida ou água, e as despacharam para território dominado pelas forças bósnias. Os homens e meninos que se renderam foram fuzilados.
Uma coluna de cerca de 10 mil homens e adolescentes entre 16 e 65 anos foi formada, com dez quilômetros de comprimento, marchando pela floresta na direção oeste, perseguidos e dizimados aos poucos pelos militares sérvios. Em uma semana, 8.373 pessoas, a maioria de muçulmanos, foram massacradas e enterradas em covas coletivas. Nos anos seguintes, os sérvios desenterraram os corpos e os transladaram para outros locais, para dificultar a identificação do crime de guerra. Srebrenica é a maior matança coletiva na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.
Em frente à catedral de Sarajevo, uma galeria mantém uma exposição sobre o genocídio. Além de fotografias de centenas de vítimas, uma detalhada apresentação multimídia documenta, dia a dia, o massacre. Ninguém me contou, eu vi, vídeo atrás de vídeo, de pessoas sendo fuziladas pelos militares sérvios.
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A galeria com as fotos das vítimas de Srebrenica |
No dia da tomada de Srebrenica, o general Mladic falou à televisão sérvia (está no YouTube, para quem quiser ver: http://www.youtube.com/watch?v=QfInjlNoT4Q). Com orgulho, ele comemora a integração da “Srebrenica sérvia” à Sérvia e acrescenta: “finalmente, chegou o tempo de trazer vingança aos turcos dessa região”. Preso em 2011, Mladic está sendo julgado pelo Tribunal Internacional de Haia, na Holanda. Em maio seu processo foi suspenso por tempo indeterminado – a expectativa no início do julgamento era que uma decisão fosse tomada até julho de 2016.
De volta ao centro de Sarajevo, reencontro meus anfitriões, Neema e Sead, um casal de muçulmanos nos seus sessenta e tantos anos, donos do hostel em que fiquei hospedado. Ali eu me senti quase em casa – na semana seguinte, com o estabelecimento todo reservado para uma excursão de estudantes croatas, eles me instalaram confortavelmente na biblioteca da família.
Sead, bem magro, de óculos, fuma sem parar. No meu último dia em Sarajevo, dirigindo a caminho do aeroporto, me contaria sua estória. Antes da guerra ele vivia em Ilidza, nas proximidades do túnel, de onde fugiu para o centro da cidade quando os primeiros bombardeios sérvios começaram.
“Eu era um homem rico em Ilidza”, conta Sead. “Eu tinha uma boa casa, com todas as amenidades. Tive que fugir para Sarajevo em 1992, porque estavam matando muçulmanos por lá...”
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Símbolo da diversidade religiosa em Sarajevo, restaurante Dveri |
Ele continua: “uma família sérvia ocupou minha casa por anos e me roubou completamente. Eu tinha uma ótima casa, a maior coleção de arte de Ilidza era minha. Eu tinha um piano, para a minha filha praticar, e eles roubaram isso também. Depois do cerco, minha casa estava destruída. Eu tenho papéis, documentos para provar o que fizeram comigo, mas o que eu posso fazer?”, diz, sorrindo.
Para chegar ao aeroporto é preciso passar pelo Cantão Sérvio, vizinho a Sarajevo. O carro para em um cruzamento e Sead aponta para o outro lado da rua. “É uma coisa maluca, daquele lado é República Srpska, aqui é Bósnia...”
O farol abre e seguimos adiante, entrando na área de maioria sérvia. Sead continua seu relato: “Isso tudo é um grande complexo que eles têm na cabeça deles, os sérvios. É sempre sobre uma vingança contra os otomanos, ou turcos... Mas isso foi há 500 anos!”, diz, rindo.
“Agora eu recuperei a casa e ela está com a minha ex-esposa. Ela tem cidadania americana, vive metade do ano por lá e a outra metade aqui..."
A guerra terminou há quase 18 anos, depois de duas semanas de bombardeios da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) convencerem os sérvios a negociar a paz. Em novembro de 1995 o Tratado de Dayton é assinado, pondo fim ao conflito e criando uma colcha de retalhos com dez governos diferentes, chamada Bósnia-Herzegovina. Há duas grandes “áreas de influência”, uma reúne bósnios e croatas e a outra os sérvios, a República Srpska. A presidência é obrigatoriamente rotativa, passando pelas mãos das três etnias, alternadamente.
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Memorijal Kovaci, um dos muitos cemitérios muçulmanos de Sarajevo |
Ao final, a Guerra da Bósnia deixou cerca de 100 mil mortos e 2 milhões de refugiados, dos quais 1,2 milhão imigraram e outros 800 mil foram deslocados de suas regiões de origem – o que representa mais da metade da população do país.
A Sarajevo que encontrei pós-cerco está em franca recuperação, apesar de toda a carga emocional da guerra, que ainda deve levar algumas gerações para ser aliviada. Mas, pelas ruas, as cicatrizes de balas nos prédios e as chamadas “rosas de Sarajevo”, as marcas que os morteiros sérvios deixaram no asfalto, ainda estão por todos os lados, assim como os cemitérios muçulmanos, com as lápides bem brancas brilhando ao sol.
É claro que inúmeros problemas ainda estão aparentes, incluindo uma taxa de desemprego por volta de 40%, mas a classificação da seleção para a Copa do Mundo no Brasil, de certa forma, estabelece um ideal a ser perseguido pelo país. Em abril de 2011 a Uefa (União das Associações de Futebol Europeias) tinha imposto sanções à Bósnia-Herzegovina, impedindo-a de disputar partidas oficiais enquanto não reformasse a estrutura política da sua própria associação de futebol. A situação era semelhante à inoperância presente no governo do país, com desentendimentos frequentes entre representantes bósnios, croatas e da República Srpska. Esses mesmos desentendimentos faziam com que muitos jogadores se negassem a jogar pela seleção.
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"Mais que o Brasil", diz a revista Dani sobre a seleção |
Como dizia Nelson Rodrigues, sem sorte você não chupa nem um Chicabon – e a sorte interveio. Em 2012, pela primeira vez desde a criação da liga de futebol da Bósnia-Herzegovina, o Borac Banja Luka, da República Srpska, conquistou o campeonato, garantindo vaga na fase classificatória da Uefa Champions League. Quando ficou claro que sem as mudanças na federação bósnia o time seria proibido pela Uefa de disputar a grande liga, um acordo foi firmado e as reformas aprovadas de imediato.
Dentro de campo, a reconciliação também caminhou. O passe para o primeiro gol contra Liechtenstein, no dia 11 de outubro, que aproximou a Bósnia da Copa, saiu dos pés de Zvjezdan Misimovi, o recordista em participações na seleção, de origem sérvia, para a conclusão de Edin Dzeko, etnicamente muçulmano, o artilheiro do time.
Na defesa, a zaga é formada por Emir Spahic, um muçulmano bósnio que cresceu na Croácia, ao lado de Boris Pandza, de origem croata. No gol, Asmir Begovic, um muçulmano bósnio, criado no Canadá. A recuperação da seleção fez até com que jogadores cobiçados por outras seleções nacionais optassem pela Bósnia, caso do meio-campista Izet Hajrovic, a revelação do time, com apenas 22 anos. Ele nasceu e cresceu na Suíça, onde joga no Grasshopper, mas filho de bósnios muçulmanos de Bijelo Polje, preferiu tomar parte na seleção bósnia.
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Comemoração dos bósnios no BBI Center, pós-classificação para a Copa |
A reconciliação futebolística deu frutos. A Bósnia-Herzegovina está no Mundial, enquanto Sérvia, Montenegro, Eslovênia e Macedônia estão fora. Das seis repúblicas da antiga Iugoslávia, só a Croácia ainda tem chance de ir à Copa, via repescagem europeia, no mata-mata contra a Islândia, que começa na próxima semana.
Ainda há tudo por fazer no país, mas é impossível não associar o ressurgimento da seleção bósnia com o caminho a seguir depois da guerra. É, como se diz lá em Floripa, “esse futebol faz coisa”...
*"Doces mentiras não ajudam, enquanto verdades amargas podem ter um poder curativo."